Profundezas escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 7
Arco de Atlanta




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Ser algoz exigia talento, esforço, estrutura e preparação, não era para qualquer um. Neste momento, os capturados estavam sendo reunidos e tendo seus ferimentos cuidados, um grupo preparava-se para a viagem pacífica de volta a Aurien, mas os globies precisavam estar bem para aguentar até lá.

Tudo o que Rire ouvia era o som da verópodes passando por cima de onde ela estava, cercando-a, rosnando, farejando-a. Gritos, mortes e sangue. O ninho bagunçado era reflexo de seu sono descontinuado e agitado. Rire rolara, com certo drama. Os olhos, pesados e ardidos, lhe irritavam e toda vez que os fechava teimavam em abrir-se, focando sua atenção em um ponto qualquer. Passara a mão por trás de sua bacia e apertara um pouco a cintura tentando, inutilmente, aliviar a dor de seu corpo rígido. Mudara de posição novamente e percorreu as mãos por entre seus cabelos, desesperada por alguns minutos de sono.

No instante em que Rire ouvira o clambor para o que seria mais uma das reuniões de Ihoy, suspirara profundamente. Olhara em direção a mais velha, que nem havia se mexido.

— Auho? — chamara, espreguiçando-se com dificuldade. Auho respirara fundo e esticou-se sem abrir os olhos. Rire chamou seu nome novamente e a mais velha franzira o cenho.

— Estou acordada. — gemera em resposta, passando a mão na testa.

— Temos que ir para a reunião. — Rire sentara-se. Auho assentira, forçando seu cérebro a manter-se acordado.

Rire tentara levantar, mas seu corpo parecia negar-se a sair do conforto de seu ninho; seu pesadelo ainda ecoava em sua mente. Na segunda tentativa sentira uma fisgada na coluna e seus ombros imploraram clemência.

— Você está bem? — perguntara finalmente para a mais velha.

— Já estive melhor. — ela abrira os olhos e esticara a cauda. — Dormiu bem?

— Não dormi nada, na verdade e ainda tive pesadelos com a verópodes. — explicara, coçando a cabeça. Aquilo parecera chamar a atenção de Auho para a realidade.

— Nunca mais a vimos. Será que estava mesmo com os globies? — Auho bocejara e olhara a caixinha de comidas, pensativa.

— Auho, nós não conversamos ainda. — interromper o assunto não era algo que Rire gostava de fazer, mas falar de suposições não era necessário.

— Sobre o quê? — ela levantou do ninho e dirigira-se à caixinha, articulando os ombros. Tirara algumas ostras e virou-se para Rire enquanto assaltava alguns lanchinhos.

— Descobri algumas coisas. — Auho a encarava, de boca cheia. — Mas preciso de tempo pra confirmar outras. Só não acho que devemos confiar em todos aqui.

— Você pediu — começara a mais velha, engolindo com dificuldade as ostras todas de uma só vez. — para eu descobrir quem é o tal G alguma coisa e Kahan parece ter notado magicamente em mim. — comentara, pensando alto. — Talvez eu consiga me aproximar de Apo pelo Kahan. Só que os arquivos ficam na sala de Ihoy. Nunca entrei lá, mas você já, então… — Auho comera um pequeno camarãozinho.

— O quê? — Rire não sabia se o sono de Auho estava dificultando a comunicação ou se ela estava mais confusa por ter dormido pouco.

— Temos que ter um plano, Ri.

— Certo. E qual seria? — Auho a olhara espantada.

— Geralmente quem gosta de pensar em tudo é você! Mas veja, acho que consigo me aproximar de Apo e tentar conquistar a confiança dele, ver o que ele sabe como melhor amigo de Kahan. Só que o guerreiro G alguma coisa deveria ficar por sua conta.

— E como eu entrarei na sala de Ihoy?

— Ri, você é amiga dele e já está sempre por perto, ele gosta muito de você! Não precisa ser nada para agora. Me dê um tempo de conseguir algo também. — Auho sorrira. — Tenha paciência.

Rire fizera uma cara feia.

— Não estou com pressa, estou ansiosa, é diferente.

— Já comeu? — Auho perguntara enquanto jogava as casquinhas para fora da toca.

— Auho! — exclamara a mais nova, ajeitando seu coque e não acreditando no que ouvira.

— O quê? — perguntara Auho, efusiva.

— Isso é importante!

— Comer também é!

Rire abrira a boca para responder a amiga, mas fora interrompida pelo segundo toque do clambor. A amiga fora até a caixinha novamente e retirou mais algumas frutinhas para irem comendo no caminho.

— Rire — soltara Auho, de repente, com cenho franzido e a boca entreaberta. —, o que aconteceu enquanto você voltou para Aurien? — elas saíram da toca e partiram em direção ao Salão Central. A outra deu de ombros.

— Bom, eles abandonaram a colônia. Está tudo evacuado e os que ficaram têm medo de outras subespécies. Aurien é pequena, então não foi muito difícil encontrar documentos.

Documentos de quê? — Auho soltara, rouca de curiosidade.

— Eu não entendi o que estava escrito e não passei pra Kia, achei melhor evitar. Só as assinaturas.

— Me diga que trouxe com você!

— Trouxe, mas…

— Então Kia pode nos ajudar, com certeza! — Auho dissera. Sentira a mão fria de Rire pressionando seu braço com firmeza, fazendo-a parar.

— Auho, isso é sério, eu não sei até onde podemos confiar no pessoal daqui.

A mais velha piscara algumas vezes, confusa. Sentira a pressão do olhar da outra, que exalava determinação. Quando brincavam no único coral que sobrevivia àquela profundidade, onde os filhotes ficavam, Rire sempre brigava com ela por confiar em todos, o que tornava-a vítima de brincadeiras maldosas. E agora, Rire chamava sua atenção novamente para uma inocência boa que podia custar sua vida.

— Então o que faremos?

— Seguiremos o plano e tentaremos achar a verópodes. Falarei com Whakaaro, eventualmente. — ela suspirara. Encontrar Whakaaro disponível era sempre um desafio. Auho assentiu. Perceberam que podiam atrasar-se caso continuassem a conversar e dirigiram-se apressadas ao Salão Central, sem trocar mais nenhuma palavra.

Quase todos estavam reunidos quando as duas adentraram o Salão, com os últimos chegando e ocupando seus lugares à mesa, sentando-se na longa pedra baixa que servia como banco. Todos estavam com expressões tensas e caras amarradas. O cotidiano não estava fácil, muitos feridos ainda recuperavam-se e a maioria deles morreu; vários ficaram aleijados. Com os desaparecimentos das crianças, algumas cuidadoras tomaram a liberdade de removê-las para outras sedes de Hapori. Nada sabiam sobre a verópodes, tampouco onde encontrá-la. Muitos corpos ainda precisavam ser velados. A maioria dos nereides estava deixando a colônia, com medo.

Algumas nereides suspiravam, outras abanavam suas caudas de leve, ansiosas. Os tritões, de cabeça baixa, aguardavam Ihoy, que mantinha sua pose inalterável, começar.

Quando o último lugar fora preenchido, o líder levantou-se. Todos pararam o que estavam fazendo e o olharam com atenção. O Salão ficara em pleno silêncio e Rire prendera o fôlego instintivamente. Quando dera-se conta, havia feito isso pelo clima tenso em que o ambiente se encontrava.

Ela olhara de esguelha para Auho, que mantinha sua face rígida e o maxilar firme, concentrada.

— Como vocês sabem — começara o tritão mais velho, em uma das pontas da longa pedra, tendo seu rosto iluminado pelas pequenas ondinas que nadavam tranquilamente no Salão. —, a nossa invasão não foi tão bem-sucedida quanto poderia. — ele observara cada rosto antes de continuar. — Os globies que encontramos, aprisionamos e torturamos cruelmente — ele encarara o filho, que desviara o olhar e voltara-se para os outros. — eram inocentes.

Alguns soltaram exclamações e trocaram olhares surpresos. Ihoy esperou acalmarem-se e ficarem em silêncio novamente.

Rire percebera a tensão refletida na artéria saltada do pescoço de Ihoy, seus olhos cansados e a veia que insistia em saltar em sua têmpora não passaram despercebidos pela jovem. Seu instinto gritava por conversar com o tritão, porém o momento inoportuno incitava-a a permanecer quieta.

Ihoy pigarreou.

— Esses indivíduos não fazem parte do grupo que nos atacou, como alguns aqui descobriram, infelizmente, antes de nossa equipe de investigação. — Ihoy lançara outro olhar de reprovação a Kahan, que já não olhava mais para o pai. — Dessa forma, as investigações tomarão outro rumo e Kahan liderará as próximas buscas. Descansem por hoje. Estão liberados. — sentou-se finalmente.

Todos acataram logo a orientação, cumprimentando-o e partindo para suas tocas ou outros afazeres.

Rire voltara-se à amiga.

— É impressão minha ou Ihoy está bravo com Kahan? — murmurara enquanto alguns poucos que restaram iam embora. Auho franzira o cenho, olhando para a mesa à sua frente.

— Acho que sua confiança está abalada. Parece que Kahan está fazendo o que acha melhor sem consultá-lo, não é? — cochichara de volta a mais velha.

— Pois é. O problema parece ser o fato de que Kahan e Ihoy são muito diferentes, no fim das contas. — Rire apoiara seus cotovelos na pedra, encarando Auho.

— Sim, exatamente isso. E suas ideologias são completamente diferentes, até porque, Kahan não tem toda a paciência e conhecimento que Ihoy, não é?

A nereide de longos cabelos presos concordara e levantara-se, convidando Auho a saírem do local; não sem antes lançar um olhar sutil a Ihoy e o filho.

Ambas saíram cheias de dúvidas sobre a nova etapa das investigações e marcadas por opiniões fortes, decidiram nadar pelos restos do Arco de Atlanta.

— Acho que agora, com Kahan próximo das investigações, conseguirão descobrir algo. Talvez até parte do que já sabemos. — Auho brincava ao redor de algumas pilastras quebradas próximas ao Arco.

— Esperemos que sim. — Rire olhava para o arco. Notara, pela primeira vez, em gravações ao longo do corpo dele.

— “Esperemos que sim”? Rire! — Auho chamara sua atenção, encostando-se em uma das pilastras e colocando uma mão na cintura. — Estamos falando do futuro da colônia.

— Só estou pensando.

— Em quê?

— Nessas gravações. Você sabe o que significam? — Auho aproximara-se da mais nova.

— Não. Mas a lenda é muito bonita. — incentivara o assunto assim que percebera que Rire precisava fugir um pouco dos problemas.

— Não conheço as lendas da colônia. Ando descobrindo que sou péssima nereide. — Rire suspirara, decepcionada.

— Ri, você é muito boa com outras coisas. A história do Arco é balela perto do que você sabe fazer com uma arma!

— Poderia ser melhor. Mas qual é a lenda, afinal? — ela olhara para a amiga, tentando não focar em sua frustração consigo mesma.

— Esse arco foi encontrado em um lugar muito, muito longe daqui. Alguns dizem que podia levar algumas gerações para chegarmos. Foi um grupo nômade de nereides que encontrou e o trouxe. Encontraram ruínas do que parecia outra colônia e a palavra Atlanta escrita em algumas partes, esse arco era a única coisa inteira lá.

— A maldição do arco. — Admirava a estrutura daquele arco de pedra clara, como nunca antes vista em Hapori, tão misterioso e majestoso. Sua lapidação, delicada e detalhada, era encantadora. Alguém havia lapidado o que um dia fora uma pedra bruta, entalhado, enfeitado, dispendido energia e tempo. Tempo era vida. E vida era algo muito precioso. Aquele arco não era só o Arco de Atlanta; era uma representação da vida.

— Quê? — Auho inclinara a cabeça e franzira o cenho.

— Parece, não é? — Rire pensava na existência do arco supostamente mágico como uma relíquia histórica em uma civilização próspera, até algum desastre acontecer e tudo ser destruído, não muito diferente do que estava acontecendo em Hapori; Auho entendera a linha de raciocínio dela e calou. Ninguém sabia a sorte ou azar que o Arco de Atlanta carregava consigo. Ela sentara-se ao lado de Rire, embaixo do arco e pedira em segredo, que nada de ruim acontecesse à sua amiga.

— Acho que vou comer alguma coisa e ir atrás de Apo. Talvez ele vá nessa expedição investigativa e não quero perder a chance de descobrir algo. Tudo bem? — Auho falava docemente, quase com cuidado. Sua cabeça estava levemente abaixada e ela olhava para Rire com uma delicadeza quase preocupante. Rire assentiu.

Ela levantara-se e fora embora, para longe, já que todo o campo com possíveis comidas e corais foi destruído pelas bombas. Rire ficara sozinha.

Percebera que estava sendo egoísta, ou pelo menos, sentia-se assim. Egoísta por deixar Auho sozinha com uma responsabilidade tão grande. Olhara para cima, para as algas e musgos que prendiam-se firmemente ao topo daquele arco, com algumas folhagens pendendo e movimentando-se calmamente conforme a maré. Pensara na saudade que estava de Weri, sua raia-rainha, que vinha evitando desde as bombas e, com a consciência pesada, decidira vê-la. Seria mais produtivo do que ficar admirando o passado incerto de uma pedra.

Saíra do seu lugar com esforço e nadara até os fundos do CT, onde alguns animais ainda mantinham-se por território, afeto, alimento e conforto. Avistara Kia de relance, alimentando-os com alguns peixes da caça do dia.

A jovem dirigiu-se para o centro do que parecia um vasto pátio com vegetação farta; plantas longas, verdes e finas dançavam sincronizadas.

— Kia. — cumprimentara a mais nova que, um dia, já fora sua protegida.

— Querida! — Kia sorrira e a cumprimentara com um tungou, o cumprimento comum entre nereides, caracterizado por um movimento sutil feito com a cabeça. Desde que tudo começara, poucos estavam ligando para certos hábitos culturais como esse e Rire deu-se conta de que Kia estava mais calma desde que as crianças foram removidas de Hapori.

— Posso ajudá-la? — perguntara, sentindo-se inútil sem conseguir ajudar Auho. Algumas lulas brincavam à sua volta e uns filhotes afundavam-se nas gramas marinhas.

— Claro. Você pode ir dar atenção a Weri que está sentindo muito a sua falta. Aqui, leve alguns peixes. Mas faça-a comer — Kia engolira em seco. —, o grupo de caçadores está reduzido devido ao grande número de mortos e feridos, então estamos dando a quantidade mínima, caso contrário iremos todos passar fome. — explicara, mexendo em uma de suas finas tranças com a mão livre, sem graça, enquanto peixes enormes e águas-vivas passeavam tranquilamente, colorindo o ambiente em tons de rosa, lilás, azul e amarelo. Rire respirou fundo e sorrira.

— Fico feliz que esteja aqui. — era tudo o que poderia dizer, já que enfrentavam consequências gravíssimas que seriam resolvidas somente a longo prazo. Cavalos marinhos enormes, possuidores de grandes barbatanas em formato de meia lua e flor em suas caudas, brancos, pretos e cinzas passaram por Rire quando ela tentou nadar até Weri. Eles gostavam de nadar em cardumes e exibir-se, alguns com manchas bioluminescentes. Weri, porém, dormia confortavelmente mais afastada. A jovem chamara seu nome e a raia levantou seu corpo pesado, espalhando areia como de costume e aproximando-se da nereide, emitindo alguns sons de felicidade, ansiosa por carinho e companhia.

E então Rire notara: ela esteve ferida de puxar rochas para resgatar os soterrados e a cicatriz em sua nadadeira era a prova. As cordas haviam cortado seu couro e Rire sentira seu coração apertado. Weri era sua melhor amiga, depois de Auho. Ela tocara o rosto da raia-rainha, que fechara os olhos em contentamento.

Dera alguns dos peixes para a raia que demonstrava afeto tocando-a de leve.

— Eu nunca sei — Kia havia aproximado-se sem Rire perceber. —, se isso que ela faz é carinho ou apenas pede por mais.

— Geralmente é carinho, mas depende do contexto, é claro. — Rire riu.

— Ela não anda comendo muito bem, sabe? Emagreceu desde que você parou de vir e acho que está com medo de nadar pela colônia como antes. Como os outros. — a cuidadora não fazia questão de esconder seu descontentamento e a tristeza que sentia com as mudanças. — Mas, onde você a encontrou?

— Faz algum tempo, acho que ela é órfã. Estava presa em alguns corais-de-fundo, mas a mãe não a deixaria só por isso. E, você sabe, o couro de raias são muito usados para algumas vestimentas do Hallula. — Weri não parecia incomodada com o assunto.

— Entendo. — a outra soltara um suspiro longo e pesado. — E como está sendo trabalhar com o pessoal de Ihoy? Animada com isso? — Kia parecia querer mudar os ares da conversa.

— Não muito. Ainda está tudo muito confuso, sabe? — ela olhara para Kia enquanto acariciava Weri. Não sabia até onde podia dizer a Kia, apesar de confiar muito nela.

— Confuso é uma palavra perfeita para como tudo está. Nunca vi Ihoy tão cansado e estressado. Está cada vez mais quieto e isolado, inclusive. — ela soltara um peixe para Weri que era a única criatura feliz entre as três.

— Kia, eu posso confiar em você, certo? Quer dizer, se você quisesse mentir e dizer que sim, me enganaria facilmente, mas, mesmo assim, você guarda segredos, não é? — Rire podia sentir seu corpo estremecer com a possibilidade de sua cuidadora lhe trair.

— Rire! Você é como uma filha para mim, é claro que eu estou com você acima de tudo! — Kia arrepiou-se.

— Você também cuidou de Kahan…

— Ele é diferente. Sempre foi mais afastado e nunca mais me procurou, como a maioria. Você pode contar comigo! — dissera veementemente.

— Ok, eu preciso invadir a sala de Ihoy. Não hoje, eu só… precisarei fazer isso. — a nereide de longos cabelos densos e pesados fitara a jovem com curiosidade. — Você pode me ajudar?

— Rire, você vai se meter em encrenca. — exclamara, em tom de sermão.

— Você disse que podia confiar!

— E pode. Eu é que não estou confiando que isso é o melhor a ser feito.

— Mas…

— Pensarei no seu caso. E trate de visitar Weri mais vezes! — Kia sorrira gentilmente e afastara-se. Sem tungou.

— Talvez… — Rire virou-se para Weri. — eu tenha ido longe demais dessa vez.

A grande criatura cantou. Se entendia qualquer palavra, não poderia fazer muita coisa para ajudar Rire. Mesmo assim, deitara-se de barriga para cima, abanando as nadadeiras, fazendo os olhos da jovem arderem com a areia.

Não demorou muito para deixar a raia voltar a dormir e sentar embaixo de uma árvore marinha conhecida como Nui. Como tudo ali, ela também era cercada por alguma lenda ou história que Rire não conhecia. As algas de seus ramos, em tons de terracota, balançavam delicadamente, densas e caídas. Rire tocara seu tronco para mexer no musgo fino que preenchia todo o seu exterior em vários tons de verde, contrastando com as algas que brotavam de seus galhos. Até onde sabia, Nui eram muito raras, por isso era a planta favorita de Rire.

Em algum momento, entretanto, deveria voltar para a toca e enfrentar a realidade, viver e fazer o que precisava ser feito. Ou fazer nada e deixar que tudo se ajeitasse conforme o destino preferisse, deixando nas mãos de Kahan e Ihoy. Mas algo dentro dela pulsava em negação a essa opção.

Logo mais voltaria. No próximo soar do clambor já sabia o que tinha que ser feito.

Mesmo assim, a última vez que sentira-se tão insegura foi quando uma Auho criança tentara incluí-la em uma brincadeira num grupo de nereides que regulavam com ela. Não havia problema fugir naquelas condições. Mas agora as coisas mudaram. Ela sofreria as consequências de suas decisões.

Já não importava as cores e os animais ali, as plantas, a maré. Estava com frio e sabia, em seu íntimo, que aquele frio era o medo tomando conta de seu corpo, apesar das baixas temperaturas.

Encolhera-se embaixo de Nui, respirando pesadamente.

Queria apenas sumir dali. Dormir e, quando acordar, descobrir que tudo não passou de um pesadelo. Que Marama estava vivo, os animais continuavam brincando e iluminando por tudo, juntamente das crianças, sãs e salvas. Weri estaria intacta, a comida seria farta. Todos estariam felizes.

— Parece que dessa vez eu perdi. — dissera baixinho, indefesa. Sua teimosia e intromissão incentivaram-na de forma quase infantil a buscar por algo que não lhe dizia respeito, que não lhe pertencia. Ela já havia sido avisada sobre as consequências de suas atitudes, agora, tudo estava em jogo. — Não tem mais volta. — ela apoiara o rosto nos braços em cima de uma das imensas raízes de Nui e permanecera ali, sozinha.


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