Profundezas escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 9
Fenda Iwari


Notas iniciais do capítulo

*Iwari: provém de Iwiri, que vem da frase "miyala iwiri" e significa "duas rochas" em Chicheua (de acordo com o Google tradutor).
Pronúncia: I-uá-ri



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Ela soltara seus longos cabelos enquanto os olhos escléricos negros e críticos percorreram o âmbito assombrosamente silencioso, analisando milimetricamente o lugar. Podia ouvir o sangue correndo pelas veias de seus ouvidos, pulsando a cada batida de seu coração e suas guelras tensionadas, quase inconscientemente.

As ruínas já não lhe eram mais estranhas e sua arma tornara-se terna companheira, tendo sido entalhada com seu nome em escritas haporianas e com um pequeno símbolo da colônia, levando consigo também o símbolo de sua família, juntamente de sua herança guerreira, como seu pai fora um dia.

Rire pegava alguns pequenos siris transparentes, arrancava suas pequenas cabecinhas e guardava o corpo na sua bolsinha, à cintura. O desconforto causado pela sensação de estar sendo vigiada, porém, era latente durante todo o tempo, causando a vaga impressão de estar sob constante ameaça. Como se algo, ou alguém, a espreitasse. Seu instinto e sexto sentido apitavam sempre que ficava sozinha, o que já havia se tornado costumeiro, porém nunca agradável. Por vezes, obrigava-se a acalmar, forçando devaneios e fugindo à realidade, mas isso nunca durava muito tempo e sempre algum som ou movimento que via de esguelha lhe chamava a atenção, deixando-a temerosa. Há muito sua colônia e proximidades deixaram de ser seguras, entretanto, a maior causa do perigo, sabia, era a insegurança intrínseca em sua carne.

Aproximara-se do pilar destruído que começava a ser tomado por um musgo escuro, contrastando com sua pedra clara, juntamente de pequenas criaturas que ela via somente de relance, que formavam lar e reproduziam-se rapidamente ali, lembrando-a sutilmente de que mesmo ruínas ainda podiam ser uma casa. Percebera, então, o cheiro de sangue envelhecido inundando suas brânquias e aguçara sua audição, fechando delicadamente a bolsinha e segurando firme sua arma. Não identificar a origem do odor lhe causava náuseas, sua pressão sanguínea aumentava gradativamente com a tensão e, instintivamente, cerrava repetidas vezes o punho livre. A dor dos músculos enrijecidos em sua cauda lhe subiam pela espinha, causando-lhe pequenos arrepios que reprimia dentro de si, olhando com cautela para trás e para os lados, perguntando-se se aqui não poderia ser somente o medo lhe enlouquecendo aos poucos.

Finalmente, um rugido estridente cortara o oceano e consumira suas escamas intensamente, arrepiando-lhe de ponta a ponta. Porém, quando virara-se para olhar atrás de si, não encontrara nada, constatando — tentando convencer-se, sem sucesso — de que a fonte do som, de alguma forma familiar, deveria estar distante dali. Olhara mais uma vez à sua volta, seu coração acelerado consumindo-lhe a garganta, e a respiração inconstante rasgando-lhe o peito, enquanto procurava por algo que não sabia bem o que era.

Engolira em seco e segurara a arma com força, erguendo-a próxima ao corpo. O zumbido em seu ouvido, latejando com toda a ansiedade que seu coração emanava, era apenas mais um tormento mediante a situação em que se encontrava.

Podia perceber a água deslocando-se com velocidade à sua volta, devido a um movimento brusco, feito por alguma coisa, todavia, não conseguia acompanhar, vislumbrando um pouco menos do que poderia chamar de uma sombra ou vulto. O cenho franzido e tensionado começara a doer, mas Rire não conseguira relaxar.

Em uma fração de segundos que pareceram um espaço de tempo muito mais prolongado, Rire pôde sentir seu corpo perdendo temperatura, o pânico roubando-lhe o fôlego e um pouco de seus pensamentos; ela estava entrando em choque. Ela baixara o olhar quando ouvira um rosnado, quase como um sussurro, atrás de si. Virara-se devagar, mesmo não havendo motivo para tal. Rire encarara aqueles olhos esbranquiçados e a pele crespa da criatura pelo que parecera um bom tempo, enquanto a verópodes a farejava, dilatando suas brânquias. Lentamente, erguera a arma e apontara, trêmula. Tudo o que queria era fugir, esconder-se e sumir dali; apertara os lábios com o maxilar tensionado e respirara fundo, tentando clarear os pensamentos e focar-se em atirar, talvez, no olho do animal com garras quase do tamanho do corpo dela, envoltas em membranas.

Então, puxara o gatilho, e a lâmina em formato de triângulo alongado voara em direção ao rosto do réptil.

Errara.

A lâmina cortara o supercílio, causando a investida veloz da criatura que, graças a isso, havia identificado sua localização. Atirara novamente, errando as outras duas lâminas, recuando desajeitadamente até deixar a arma cair.

Jogara-se por trás do pilar à sua frente e rolara, brusca, enquanto a verópodes fêmea passara, não arrancando sua cauda por muito pouco. A jovem puxara sua arma e atirou sua última lança, mas o couro grosso do animal jurássico impedira que qualquer ferimento fosse feito de forma tão fácil; percebera que somente nas proximidades dos olhos ou em tecidos epiteliais, como a gengiva, suas lâminas poderiam ser eficazes, largando sua arma de vez.

A criatura deu meia volta tão rápida e silenciosamente quanto sua fama de fantasma-do-mar lhe dizia respeito, indo em direção a Rire, com suas guelras arrepiadas, de boca aberta.

Setenta e oito dentes afiados prontos para dilacerá-la.

Ela prendera a respiração e pressionara o corpo contra o pilar caído, sentada, inutilmente.

Fechara os olhos com força, esperando pelo que seria a certeza de uma morte dolorosa.

Não havia escapatória. Ela não tinha para onde ir.

Abrira os olhos e tudo o que vira fora Weri passar por cima de si, jogando-se contra a verópodes, que contra-atacara ferozmente mordendo-a. Weri, empurrara-a para mais longe de Rire, dando cabeçadas no pescoço musculoso da criatura e em partes de seu peito, repetidas vezes, fazendo-a perder equilíbrio e debater-se tentando acertar mordidas na raia-rainha.

A jovem sentira o medo e a raiva tomarem conta de suas escamas, mais por Weri do que por si mesma. Antes que pudesse pensar em agir, porém, Ihoy aproximara-se dela, ofegante. Assustara-se, pois não havia percebido a presença do grande tritão, que parecera ter vindo atrás de Weri; sabia, no entanto, que dava para ver aquele lugar de sua toca.

— Fique aqui. — dissera, apenas. Rire segurara seu braço.

— Não! — Desembainhara a adaga de Ihoy, entalhada com o símbolo da colônia em seu punhal, de lâmina encurvada e nadara até Weri e a verópodes, que rosnara ferozmente quando investira outra mordida na raia. Rire sentia a adrenalina percorrer seu corpo e a tensão percorrer suas escamas eriçadas. Decidida, parara acima da verópodes que mantinha-se distraída com Weri e dera uma apunhalada no lombo da verópodes, afundando toda a lâmina em seu couro grosso, enquanto Ihoy via-se, pela primeira vez, sem reação.

De relance, Rire pôde ver Ihoy indo em sua direção.

A grande criatura urrara, mais de descontentamento que de dor efetivamente; Rire não alcançara sua carne com a faca. A criatura, então, parecera mudar de ideia repentinamente, nadando a grande velocidade para longe dali — com Rire agarrada à adaga em seu lombo —, em direção à grande fenda. Uma viagem que, sozinha, Rire levaria algumas dormidas para chegar; no entanto, verópodes eram muito maiores e ágeis, dessa forma, as duas chegaram rapidamente por entre às grandes rochas.

Assim que dera-se conta, a jovem soltara a adaga quando adentraram a cavidade. Tinha consciência de que não saberia voltar sozinha se fosse levada para muito mais longe. A verópodes, entretanto, parecia dominar aquele território e Rire sentira-se arrepiar outra vez. Passara por ali mais de uma vez sem perceber nada estranho além da sensação que aquele lugar lhe transmitia. O lugar, sombrio e de pedras estranhamente limpas, sem vida subindo por elas, parecia à Rire mais estranho do que antes e, enquanto a grande criatura adentrara em uma das áreas cavernosas em uma das paredes rochosas mais acima, focara-se em acalmar-se.

Olhara para trás, percebendo a longa distância que percorrera em tão pouco tempo e voltara seu olhar à volta. Era como se aquelas duas grandes e enegrecidas rochas que formavam a estreita fenda não pertencesse àquele lugar. O chão, a alguns metros dela, era a única coisa com plantas ali, mas notara, não haviam animais vivendo ali. Fechara os olhos, concentrando-se em sua respiração, tentando conter seu coração que batia com força em seu peito, conscientizando-se, aos poucos, de que ainda estava viva e a ameaçara fora embora, por enquanto. Seu corpo negava-se a relaxar, mesmo assim.

Voltar era a decisão mais racional e inteligente que ela poderia tomar, mas ter atitudes inteligentes não era o que Rire fazia. Respirara fundo e abrira os olhos, focando-se nas múltiplas entradas em ambos os lados. Decidira averiguar o que havia na entrada que a verópodes transpora.

Aproximara-se, cautelosa, passando pelos outros buracos que não havia notado das outras vezes, pois abaixo, onde já havia passado, não tinham buracos cavernosos como aqueles, localizados mais acima.

Encolhida à entrada, olhara devagar para dentro enquanto seu coração teimava em não acalmar-se, gritando-lhe para fugir dali e encolher-se quieta em seu ninho, brigando com o seu cérebro que, banhado por adrenalina, ansiava de curiosidade. Ela vislumbrara o grande corredor que, a poucos metros, virava para a esquerda. Nadara até sua curva, parando à parede e olhando novamente para mais fundo. Desarmada, sabia que estava sendo inconsequente e ria por dentro, prevendo, sabendo o que Ihoy diria sobre isso.

Respirara fundo e nadara devagar pelo lugar que subia, descia e virava, pronta para fugir a qualquer sinal de perigo. Por vezes, parava um pouco para prestar atenção aos sons dali, mesmo o silêncio consumindo as paredes de rochedo. O cheiro de sangue lhe incomodava e era tão sutil que não soube definir de antemão o que era até aprofundar-se mais, chegando finalmente a uma bifurcação. Entendera, então, porque as rochas eram escuras, quando percebera o sangue envelhecido boiando, inerte, ali, carregando consigo o que um dia foram centenas de vidas torturadas e tiradas de criaturas que Rire sabia, provavelmente desconhecia.

Engolira em seco, franzira o cenho e respirara fundo, como que inspirando coragem, seguindo pelo primeiro caminho.

Nadando lentamente, virara à esquerda outra vez. “Talvez o outro caminho vire para o outro lado”, pensara consigo mesma. Vira-se em um lugar comprido, com celas e associara imediatamente à sala de torturas que havia em Hapori, sentindo seu estômago embrulhar em agonia com a lembrança do lugar abominável que deixara. Gemidos de sofrimento ecoavam junto de choros infantis, perturbando-a. Não haviam guardas ou qualquer coisa semelhante, dando-lhe a vaga impressão de que não era o momento de trabalharem ainda, se é que havia alguém encarregado daquilo; porém, seu instinto gritava que o responsável não ficava muito tempo longe.

As primeiras celas, manchadas de sangue e possuindo um odor fétido, estavam vazias.

Conforme fora aproximando-se das outras, no entanto, vira crianças, jovens e prisioneiros assustados de todos os tipos e subespécies, inclusive globies com suas escamas cinzentas e guelras murchas, enfraquecidos e feridos; outros jaziam já sem vida. Os filhotes, encolhidos ao fundo das celas, não a encaravam, desviando o olhar, amedrontados por um trauma incutido em suas almas e os jovens pareciam fora de si.

Então, ela a vira.

Agarrara-se às grades, segurando o ar que ameaçava lhe faltar e sentira sua cabeça girar por um momento. Trêmula, procurara em seu cinto de utilidades os seus pequenos gravetos para destrancar a enorme trava das grades que compunham a entrada da cela.

Ansiosa, começara a trabalhar naquela tranca como se sua vida dependesse disso e, habilmente, conseguira ouvir o som da liberdade, guardando os gravetinhos e invadindo a cela.

Nadara até o corpo inconsciente da amiga, sacudindo-o e chamando baixinho repetidas vezes, sem resposta. A nadadeira, percebera, estava presa com cordas de algas trançadas que cortavam-lhe o couro. Procurara seu pequeno canivete, que carregava sempre consigo, e começara a cortar o grosso nó feito após as inúmeras voltas dadas na cauda, passando em seguida para o nó nos pulsos de Auho.

Virara ela de barriga para cima para averiguar sua respiração e sentira o pânico doer-lhe a cabeça. Ela estava viva.

— Auho, temos que sair daqui. — murmurara. — Acorde. — Sacudira-a mais um pouco. — Por favor. — sua voz falhara. — Veja, eu trouxe alguns siris mortos, prontos pra comer e… — apelara. Auho gemera algo ininteligível e respirara fundo, franzindo o cenho. — Eu sei que você não gosta tanto de siris quanto de ostras ou frutinhas, mas foi o que achei e você deve estar com fome. — ela colocara um siri na mão de Auho que, com esforço e muita dor, tentara levantar-se. Abrira os olhos e encarara o siri em sua mão e os grandes olhos de Rire ao seu lado, concentrados nela.

— O que você — ela hesitara de dor. — está fazendo aqui? — sua respiração, dificulta, parecia prejudicar a formação de frases que tentava dizer.

— A pergunta é: o que você está fazendo aqui? Vamos, precisamos ir embora! — Auho colocara o pequeno siri na boca e, puxada pela amiga que ignorara qualquer sinal de dor emitido, fora puxada rapidamente para fora dali com todo o esforço que Rire conseguia fazer, já que a mais velha estava com dificuldades para se mover.

— E aquelas crianças? — perguntara Auho, agarrada à outra, forçando que Rire nadasse mais devagar para fora da caverna.

— Veremos com Ihoy mais tarde.

— Elas estão morrendo, Rire, precisamos fazer algo agora! — Auho parecia desesperada e Rire estranhara sua atitude.

— Eles podem surgir a qualquer momento, seja lá quem forem, e se eu fosse pega, não poderia tirar você de lá e voltar para resgatar esses filhotes. E precisamos ver isso aí. — finalizara, observando os ferimentos profundos e os hematomas de Auho, que consentira em silêncio.

Ihoy fora até elas com Weri, que não era tão veloz quanto a verópodes, mas conseguira levar o líder a tempo de, juntos, facilitarem o deslocamento de Auho.

— Você podia ter morrido. — ele comentara baixinho com Rire que lançara-o um olhar teimoso.

— Mas não morri. — sorrira levemente a jovem, escondendo seu nervosismo, causando-lhe um leve arrepio na cauda enquanto observava-a agarrar-se à Weri junto de Auho. Ele respirara fundo, juntando-se às duas e, em silêncio, seguiram de volta para sua colônia.

Weri os levara para o terreno das criaturas acoplado ao CT e pousara delicadamente no chão, enquanto Auho era ajudada por Ihoy a nadar até o chão, sentando-se com ajuda dele e fazendo uma cara feia devido a dor da terra raspando em seus ferimentos. Kia aproximara-se com Whakaaro em seu encalço.

— O que aconteceu? Por que Weri está ferida? Auho, você está bem? Onde vocês estavam? — explanara Kia sem saber para quem olhar ou quem questionar.

Rire olhara para Ihoy, passando-lhe o dever de resposta.

— Foi apenas um acidente na fenda. — respondera brevemente e Kia entendera que não saberia muito mais do que isso. Ela aproximara-se delicadamente de Auho, levando-a lentamente para tratar os ferimentos. Whakaaro encarava, curiosa, Rire e sorrira quando esta notara, cumprimentando-a com um breve tougou e afastara-se sem dizer nada.

A jovem franzira o cenho.

— Ihoy — chamara, virando-se para o tritão. — Eu… meio que perdi sua adaga. — dissera, sem saber o que esperar.

— E podia ter perdido a vida. — rebatera. Ela olhara para a grande árvore marinha próxima a eles.

— Ou Auho. — murmurara.

Ihoy aproximara-se dela, segurando levemente seus braços, muito sério.

— Eu não posso perdê-la agora, Rire. Você precisa tomar cuidado. — Ela sentia a tensão em seu olhar firme.

— Precisamos saber o que está acontecendo, Ihoy. — dissera enquanto o tritão soltava seus braços.

— Por ora, cuide de Auho e Weri e descanse. A criatura pode voltar quando menos esperarmos.

Sem mais delongas, ele afastara-se em direção às tocas, deixando Rire sozinha com Weri e as outras criaturas que descansavam por ali, mesmo assim, a sensação de segurança em Hapori apenas esvaía-se de sua mente.

Ela olhara para Weri, que não demonstrava dor e tinha apenas alguns arranhões. Sua pele grossa a protegera da verópodes e, Rire tinha certeza de que após um descanso, o animal estaria revigorado. Rire fora até o grande baú com peixes reservado ao canto para alimentar os animais que viviam ali, pegara um cacho de peixes — peixes variados presos uns aos outros com algas — e removera dois dos grandes para Weri, guardando o cacho novamente.

A raia parecia feliz com o petisco e comera os peixes em uma mordida só.

Rire agradecera imensamente, em silêncio, por ela ter salvo sua vida.

— Acho que — Weri a olhara, como que compreendendo a importância do que a nereide dizia. — as coisas a partir de agora só vão piorar.

 


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