Lusco Fusco escrita por isa


Capítulo 7
Lusco Fusco




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And it's hard to write about being happy, cause the older I get I find that happiness is an extremely uneventful subject and there would be no grand choirs to sing… No chorus could come in about two people sitting doing nothing

 

Eu encarei a fachada azul-tardis da livraria, ainda incerta sobre o que fazer. Sim, incerta. Você não leu errado, mas estava esperando o narrador anterior, certo? Um cara mediano, com uma insuperável cara de neném, cabelos muito escuros e insubmissos, mas charmoso daquele jeito introvertido de quem não tem ideia de que, enfim, é charmoso.

Bom, nós dois decidimos, de comum acordo, que seria de bom tom se eu assumisse a voz nessa última parte de uma história que, na verdade, esperamos que seja de algum modo interminável. Mas essa sou eu me precipitando. Como eu ia dizendo, ali estava eu, num lugar que, há três anos atrás, tinha um visual muito diferente.

A primeira vez que as minhas andanças me guiaram até aquela rua, eu estava perdida em mais sentidos do que gostaria ou poderia assumir. Acho que ninguém sabe muito quem é ou o que está fazendo aos vinte. Nem em qualquer outra idade, para ser sincera. A construção de identidade é um eterno canteiro de obras. E eu havia decidido construir algo bonito ao apostar todas as minhas fichas na cinza e velha Inglaterra, aonde eu tinha o bônus de ficar de olho em vovó e fugir dos olhos – um tanto quanto preocupados em relação ao meu futuro – dos meus pais.

A lembrança me fez sorrir.

De lá para cá, muita coisa: agora eu já não me perdia mais por Londres, o inglês escorria pela boca com a mesma naturalidade que o português e eu havia concluído em um tempo impressionante uma graduação que me deixava satisfeita comigo mesma. Em muitos sentidos eu ainda estava tateando as bordas das minhas perguntas essenciais – quem eu gostaria de ser, como e com quem eu queria estar no mundo, de que modo minhas paixões poderiam ser usadas profissionalmente – mas eu estava contente com tudo que havia descoberto até então, inclusive com a vontade inédita (e insuspeita até aquela manhã) de que eu gostaria de rever Albus.

Havia sido um assunto delicado para mim. Nós havíamos namorado por quatro meses em um momento que os dois estavam cruzando a esquina da adolescência rumo a vida adulta. O contexto por si só era de travessia. Talvez por isso tivesse tanto peso, mesmo com o passar dos anos. Ele tinha sido um divisor de águas, de uma maneira positiva e negativa ao mesmo tempo. Porque se era verdade que eu lembrava com carinho o modo como eu me sentia confiante quando ele me olhava e como eu havia dedicado todo o meu tempo, cérebro e coração em nosso namoro, também era verdade que eu nunca me sentira tão ferida quando descobrira que ele mentira para mim sobre detalhes pequenos e grandes de sua identidade.

Eu entendia a sua posição delicada; o fato de que Olivia também era bruxa – o que nós descobrimos com muita surpresa quando ela recebeu uma carta de Castelobruxo, muitos anos atrás – facilitava a minha consciência sobre todo o contexto difícil. Eu não saia por aí expondo minha irmã para as pessoas, por exemplo. Eu tampouco era ingênua de achar que uma realidade fantástica assim, bem diante de nossos olhos, não seria vista como espinhenta, ou como um tabu. Mas isso não justificava o modo como ele tinha mentido, diariamente, enquanto olhava nos meus olhos. Colocava em xeque todas as coisas que eu supunha serem verdades.

Ali estava eu, no entanto. Em frente ao lugar onde o conheci pela primeira vez.

Se a Izzie de três anos atrás não podia sequer ouvir o nome dele à época dos fatos, a do ano seguinte já conseguia encarar a realidade com alguma distância. Finalmente a do ano passado havia feito as pazes com a própria história e então, eu, a versão que estava parada ali, em frente a antiga loja de um senhor alemão, pronta para assumir o meu devido lugar como protagonista de um possível enredo novo. Eu havia dito a Albus que eu não seria um recurso narrativo barato.

Respirei fundo e atravessei a porta. A despeito do resto, o sininho vermelho continuava anunciando a clientela. Ao ouvir o barulho, ele ergueu os olhos e me viu. Havia outros clientes na livraria, mas pareceu, por um instante, que estávamos a sós. Era estranho perceber os efeitos que ele ainda causava em mim – eu havia namorado outras pessoas no meio tempo em que não nos vimos, uma, inclusive, por muito mais tempo do que ficamos juntos –, mas ali estava o velho formigamento provocado por aqueles olhos verdes em especifico.

Seu cabelo estava mais curto e agora ele usava roupas que indicavam que era mais do que funcionário do lugar. Havia livros por toda parte – nas prateleiras, pendendo em fios pelo teto como parte da decoração e enfeitando uma escadinha em espiral que não existia antes e que dava para um segundo piso que eu estava certa de nunca ter visto.

— Travis, assuma aqui, tudo bem? – ele pediu a um rapazote com cara de quem estava em seu primeiro emprego de meio período, sem tirar os olhos de mim.

Eu coloquei as mãos dentro do casaco vermelho sangue, na esperança de que elas não me denunciassem.

— Oi. – ele me cumprimentou, a uma distancia segura.

— Oi. – eu respondi, na falta de outra coisa para dizer. Quando eu encontrara Rose pela manhã e ela me contara a história de como o antigo dono da loja havia falecido no ano anterior e, ainda, de como ela, Albus e Scorpius haviam juntado forças e economias para comprar o lugar e transformar numa livraria, eu tinha me sentido genuinamente feliz por eles. Fora assim que eu percebera que estava pronta para vê-lo. Mas entre me sentir contente e pensar que poderia encará-lo e decidir de fato encará-lo havia um abismo e talvez eu tivesse me precipitado rápido demais.

— É bom ver você. – ele disse, como se pudesse adivinhar o que eu estava pensando. – É bom de verdade. – ele frisou e eu soube intimamente que ele estava solteiro. De outro modo ele não poderia ter me olhado com tanto desejo e com tão pouca vontade de esconder isso de mim.

Eu desviei os olhos e encarei mais uma vez o lugar, pensando no que eu poderia dizer.

— Isso aqui está incrível, Albus. – eu murmurei. – Parece... Mágico. – e deixei que a palavra pendesse entre nós.

— Obrigado. – ele disse após um instante, sem se abalar. – Você gostaria de ver o resto?

Eu fiz que sim com a cabeça e ele me guiou em direção a escada de ferro pintada de roxo que eu já havia notado antes. Nós subimos mais degraus do que eu teria suposto olhando de baixo e quando finalmente alcançamos uma porta, ele murmurou algo baixinho, antes de abri-la. No novo ambiente, mais livros e mais clientes, só que muito distintos dos que se encontravam no primeiro pavimento. Pessoas circulavam com chapéus cônicos na cabeça e trajavam capas bonitas. Os livros que pendiam no andar inferior, voavam livremente pelo teto.

 - Aqui, ao contrário, parece muito comum. – eu disse, tentando não parecer tão surpresa e maravilhada quanto estava. Albus riu, encolhendo os ombros.

— Eu não devia ter mentido para você. Eu sinto muito, Isobel. – Não era a primeira vez que ele me dizia isso, mas definitivamente era a única que eu estava ouvindo.

— Está tudo bem. – eu me peguei dizendo e, mais do que isso, percebendo que era verdade. E acho que ele percebeu também, porque ousou pegar minha mão e me guiar novamente, dessa vez em direção a uma porta de saída que dava direto para um terraço de onde se podia ver muitos telhados britânicos.

Havia plantas e flores dispostas no lugar que, eu desconfiava, eram encantadas. E bancos onde as pessoas podiam tomar café e ler, eu supunha. Nós nos sentamos em um deles em silêncio. Não me pareceu providencial que o sol estivesse indo embora no horizonte. Eu havia escolhido estar ali naquele horário. No lusco fusco. Só não contava com todo o resto.

— É um pouco patético o quanto eu imaginei cenas como essa depois daquele dia em Notting Hill. – Albus quebrou o silêncio e eu abri um sorriso irônico.

— Você ficou imaginando nós dois num banco enquanto escutava músicas tristes e bregas do Elvis Costello? – provoquei.

— As vezes sim, as vezes não. – ele riu. Nenhum de nós ousou olhar para o outro. Além disso, o céu era realmente um espetáculo à parte. – Não me entenda mal, eventualmente eu fiquei bem.

Eu sorri, concordando com a cabeça.

— Você parece... Bem também.  

— Eu estou. – e o fitei de relance. – Depois daquele dia... Olivia me explicou sobre a sua família. O peso do seu sobrenome, essas coisas. Eu... entendi porque isso tornava as coisas um pouco mais complicadas, no fim das contas. Você é famoso como Julia Roberts em Um Lugar Chamado Notting Hill.

Ele me encarou por um instante.

— A coisa sobre a fama... É que ela não é exatamente real, sabe? – eu sorri, reconhecendo a fala. Já estava prestes a girar os olhos quando ele tocou o meu braço com uma delicadeza que me impediu de fazer qualquer coisa. - E não se esqueça que eu sou só uma garota parada na frente de um cara... Pedindo que ele a ame. – Albus ficou em silêncio, depois de roubar a fala do filme. Então eu senti, simultaneamente, nele e em mim, a primeira onda da gargalhada que nós soltamos juntos. Era estranho estar ali, ao por do sol, rindo com o meu ex namorado. Mas também era confortável, de algum modo.

— Oh céus... – eu enxuguei uma lágrima depois que consegui me conter. – Nós dois... Tudo isso... Seria uma péssima comédia romântica.

— Não é verdade – Albus protestou, ainda rindo. – Estou certo de que é só uma questão de adaptação da fala.

— Ah, é?  

— É. Por exemplo... – ele pigarreou, me encarando de verdade. – Se fosse o nosso filme... E se essa fosse uma nova chance, antes dos créditos finais subirem... Eu diria que é um prazer te conhecer de novo, Isobel. E que eu esperaria, eu sinceramente esperaria que você fosse a personagem principal desse ponto em diante.

— Você quer saber de uma coisa? Também é um prazer te conhecer de novo, Albus. – eu estendi a mão. Ele a apertou.

Nada mais do que isso aconteceu naquele dia. Mas nós nos vimos outras vezes. E gradualmente, aos pouquinhos, nós retomamos o relacionamento. De um novo jeito, com outras cores e todas as cartas na mesa. Porque o amor é, também, um eterno canteiro de obras. Nunca se fixa em um sentido último. E que bom, já que de outro modo, nunca nos renderia tantas histórias.


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Notas finais do capítulo

ACABOU! ACABOU MESMO! Se por qualquer razão você chegou até aqui, eu espero sinceramente que você não tenha sentido como se tivesse perdido muito do seu tempo.

Eu pensei muito sobre esse final e se ele deveria ser mais romântico, mas a verdade é que eu gosto muito de personagens que terminam rindo de si mesmos. Tem uma música do Caetano que a Gal canta (sim, gente, eu sou formada em letras português, sempre tive um espírito velho e estou começando a ficar velha de verdade... haha) que diz "respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada". É um pouco meu lema, e é um pouco o lema que eu gostaria que todos os meus personagens tivessem.

É isso. Um abraço!