Tratado dos Párias escrita por Isabela Allmeida


Capítulo 5
Casta penúltima Procriadores




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Eles eram os penúltimos. Os procriadores. A casta que fornecia crianças em maior quantidade para a preparação da encomenda. Meninas para a sacerdotisa que as encaminharia para  seus destinos, meninos para o monge que os encaminharia para as funções geralmente no exército.

A cada menina entregue um ano de subsídios do império. A cada menino, um ano de isenção de impostos e por cada gravidez confirmada uma pensão extra e um ano de cesta de alimentos básicos.

Era um negócio lucrativo ter filhos. A penúltima casta sobrevivia fornecendo quantas crianças pudessem. Sem nome. Era engraçado não termos nome, nenhum filho tinha.

O meu variou desde que me lembrava, o primeiro de que me lembro foi seis, depois era passado para o mais novo e eu ganharia um novo, sete.

Meu último nome foi Próxima. Ganhei ele depois de me chamar quatorze. Então eu sabia que tinha quinze anos. O nome Próxima correspondia ao limite aonde meus pais podiam me nomear. A partir daí eu não teria um nome final até que meu senhor o desse. Eu não poderia pedir um, ele me daria quando quisesse ou eu merecesse.

Sai de meus pensamentos quando percebi Eva se aproximando. Me encolhi novamente, não queria ser rebelde nem queria ofendê-la mas era mais forte que eu aquela reação, era meio irracional. Já tinha sentido o peso de sua mão e poderia sentir de novo ou até pior, podia sentir o corte de seu chicote. Meus pais me ensinaram e mostraram o que um senhor poderia fazer comigo, cresci ouvindo isso.

Ao contrário do que minha mente apavorada me dizia, ela me levantou com delicadeza e me guiou até uma pequena porta. — Fique aqui, vai entrar alguns criados para me ajudar com o seu banho, ficará assustada com a movimentação, então entre aqui no vestíbulo que logo virei buscá-la.

Ela fechou a porta e fiquei ali no escuro. O minúsculo cômodo tinha um cheiro agradável de roupa limpa, não tinha espaço para eu me deitar, somente se encolhesse as pernas, não importava, eu me sentia bem ali dentro. Me sentia protegida.

Logo novamente a porta foi aberta e Eva me tirou dali. Era involuntário, meu coração disparou assim que a porta abriu e me encolhi, mas não resisti dessa vez, deixei que me levasse pela mão.

Eva me levou para outro cômodo do quarto e ali tinha uma imensa banheira no meio, muitas coisas para higiene em cima de uma mesa polida em um canto e um pano imenso cobria um espelho em cima da mesa.

Me deixou olhar tudo em silêncio e então segurou minha mão. — Me desculpe pelo tapa. Não era punição nem nada disso, era para acalmar sua histeria, aquele sangue todo que viu é uma coisa normal e vai ter que conviver com ele todos os meses.

Então entendi que era meu ciclo, apenas não entendia como ele tinha chegado assim tão estranhamente e porque era tanto sangue.

Ela continuou. — Está entendendo o que digo?

Afirmei silenciosa. Eram conversas tão normais entre os da minha casta que não tinha como não participar e entender. Minha mãe esperava o ciclo como uma dádiva quando estava grávida e como um castigo quando não estava.

Se não estivesse grávida teria que tentar engravidar o mais rápido possível, se estivesse queria que nascesse logo para engravidar de novo, e se demorasse mais de dois meses então ela começava a receber clientes. Era um meio de engravidar mais rápido e ainda ter algo a mais para ajudar na sobrevivência.

Os clientes pagavam de várias formas, pequenos animais que caçavam ou criavam, cestas de legumes de suas hortas, as veze sacos de aveia ou trigo. Eram tantas coisas, mas raramente moedas.

Eram clientes em abundância até a confirmação da gravidez. Meu pai cuidava das crianças. Mantinha todos vivos pelo menos porque éramos investimentos caros, ele não trabalhava mais, era muito velho para o exército e não tinha outro recurso pela idade, não recebia nada do império pelo seu histórico de covarde, ferido enquanto fugia da morte. Mas também somente por consideração aos seus serviços no exército foi que não fomos direto para a ultima, só por isso não éramos escravos.

Era uma parca recompensa por ele arriscar sua vida para proteger o rabo do rei. Ele sempre dizia isso quando estava bravo. O que acontecia de hora em hora.

Quando ele e minha mãe brigavam e ela o acusava de ser o culpado pela vida que vivíamos, meu pai sempre a acusava de gostar daquela vida, aonde ela era a matriarca e dela vinha todo o sustento da casa.

Mesmo se matando de brigar todos os dias eles não podiam se separar, nenhum casal do império poderia. A não ser que um dos dois morresse, então o viúvo ou viúva teria sua segunda chance. Um direito garantido que poderia ter outra principal sem precisar pagar por ela no dia da entrega. As mulheres também tinha esse direito, mas só conseguiam um marido se um homem reclamasse o direito sobre a viúva.

As viúvas poderiam ser reclamadas por qualquer homem independente da casta, no caso dos viúvos, se fossem de castas supremas poderiam reclamar a mulher de qualquer casta.

Os viúvos de castas inferiores poderiam reclamar a mulher de sua casta e de castas menores. O problema era que no caso das viúvas sempre acontecia de quase nunca serem reclamadas. Mesmo que reclamassem seu direito de segunda chance ainda dependiam de ser reclamadas por alguém, o que era quase impossível, pois sempre já estavam velhas ou praticamente acabadas de ter tantos filhos.

Então por mais que brigassem, separar não era aceito, e nem mesmo um matar o outro poderia acontecer eles sendo de castas tão inferiores. Tinham que se unir e tentar sobreviver o mais que pudessem não passando fome e juntando o que conseguissem para comprar um direito de degrau.

Era uma lei escrita no código de conduta Humanis criada no tratado dos Párias e seguida desde então. Isso fazia com que muitos senhores da alta casta encomendassem a morte de suas velhas esposas para poder reclamar seu direito de segundo no dia da entrega aos humanos, onde muitas garotas novas estariam ali para ser compradas e desposadas.

— Menina está me ouvindo?

Acordei de meus pensamentos de um pulo e novamente confirmei em silêncio.

Ela sorriu mostrando dentes manchados e completos. — Vejo que já está mais confortável comigo, ficou ai pensativa enquanto eu arrumava as coisas e não encolhida de medo em um canto.

Ela tinha razão, com ela eu não me sentia mais tão apavorada, apenas amedrontada pelo que poderia acontecer comigo sem ela por perto.

— Venha, vamos lavar você, tirar toda essa sujeira.

Sem muitos rodeios ela tirou minha camisola e me ajudou a entrar na banheira, logo começou a me esfregar com força enquanto falava.

— Vejo que você era uma promessa de dias vindouros para seus pais.

Eu acenei que sim porque era verdade, ela continuou:

— Então você foi cuidada para ser comprada e não entregue né menina, não te deixaram cicatrizes e seus dentes são esmeradamente cuidados.

Era verdade. Aquele comentário me fez me lembrar de todas as vezes que meu pai tentou me espancar e minha mãe intercedeu por mim, não porque me amava, mas porque eu era segundo ela a melhor chance deles em anos para melhorar os recursos.

Ao ser lembrado disso meu pai não me batia, indo atacar o primeiro filho que aparecia em seu caminho.

Então minha mãe se virava para mim. — Me agradeça por isso Quatorze e não irei cobrar essa gratidão agora, mas quando você for comprada terá que me pagar por todas as vezes que a protegi, por todos os cuidados e gastos extras que tivemos com você.

Tem que ser comprada está me ouvindo? E quando isso acontecer, você será uma dama, mulher de homem de posses, não importa quantas mulheres ele tiver você o agradará mais que as outras para ganhar muitos presentes. Tudo que conseguir dele terá que me mandar escondido para pagar o que me deve. Se ele for sovina você se empenhará ainda mais para conseguir algo e me mandar sempre que conseguir. Não pude ter errado em apostar minhas esperanças em você bonequinha, esses olhos cor de avelã e esse rostinho lindo não podem me decepcionar.

Essa conversa me acompanhou desde que me chamei Oito até o Quatorze e então quando passei a me chamar Próxima era uma ladainha de quase todos os dias.

Eva esfregava com cuidado ao redor de minha cicatriz quase azulando.

— Por pouco hein. Teve muita sorte do senhor Nicolae a encontrar. Você chegou aqui praticamente em seus últimos minutos, se não fosse por ele e o senhor Dimitri você teria morrido na primeira noite, contudo, o que te salvou foi a decisão do senhor Rael que arriscou em você a mistura.

Eu não entendia muito bem o que ela estava dizendo, mas isso me preocupou imensamente. Então eu devia a vida a três homens, senhores com posses e nas mãos de um deles com certeza eu teria meu destino.

Eva percebeu que eu ouvia atentamente e que estava somando as chances de meu destino com aquela conversa.

— Eles não irão te fazer mal garota. Não irão judiar de você se é o que esta pensando. Salvaram sua vida, nem precisavam fazer isso, arriscaram muita coisa fazendo isso na verdade.

São três irmãos, e são os senhores de nossa cidade, governam o reino com dedicação para manter o que sobrou de sua raça. Você é do império Humanis, o maior dos três reinos párias. Mas agora você está sobre a proteção dos Sombrios e eles têm uma maneira muito diferente de agir em vista dos humanos.

Eu queria perguntar quem eram e o que faziam e porque eu não sabia de nenhum reino além do meu. Sempre disseram que fora das muralhas do reino Humanis havia apenas a floresta e os Leviatãs. Uma raça paralela a nossa. Sempre havia focos de guerra contra eles em todo nosso território florestal além-pilastras.

Nos ensinaram desde sempre que eles eram os predadores e nós as presas. E era ali também um destino mais comum entre as meninas preparadas pela sacerdotisa.

Quem não era comprada, escolhida como criada, cortesã ou mesmo escolhida como procriadora na penúltima casta, tinha seu destino selado, ia para fora do reino servir como prostituta nos vários prostíbulo dentro da mata próximo a estrada.

Estes prostíbulos serviam para os soldados que faziam sua ronda do lado de fora. Segundo muitas lendas os filhos dessas prostitutas eram sequestrados pelos leviatãs ainda muito cedo para servirem de alimento.

Era uma conversa tão comum entre as famílias que preparavam seus filhos para seu destino que era até um costume entre eles, quando a filha tentava fugir de casa no dia que se começava a se chamar Próxima, eles sempre ameaçam de entregá-la aos guardas do portão para que estes a levassem diretamente ao prostíbulo mais próximo se fugissem novamente. Era um destino cruel ser deixada para fora do reino.

Olhei diretamente para Eva, queria perguntar se estava fora do reino Humanis. Saber se esse reino do qual ela dizia era perto ou era um tipo de prostíbulo aonde as rejeitadas eram entregues.

Eva simplesmente sorriu e continuou sua esfregação infinita. — Se pensa que esta perto do reino dos humanos pode ficar calma querida, está há muitos, muito quilômetros de distância. Seguramente não corre perigo aqui.

Não conseguia mais me concentrar no que ela falava, queria olhar pela janela, verificar se não veria uma muralha de pedras recoberta de ervas de três tipos com gigantes lanças retorcidas para fora todas de prata. Ou então a vila dos procriadores, prédios tortos finos e imensamente altos, onde moravam empilhados varias famílias.

Tinha muita coisa feia no bairro, mas a aparência dos prédios era o que havia de pior. O espaço nas vielas eram totalmente ocupados por esgotos abertos, roedores e insetos por todos os lados. Ambulantes que vendiam suas esposas por preços razoáveis, guardas que passeavam por todo lado nos dias de folga procurando a melhor mulher naquela imensa demanda de ofertas, homens que ofereciam seus serviços também.

Mas era um mercado negro, homens nunca poderiam vender seu corpo, e outros homens jamais poderiam comprar uma mercadoria dessas, mas havia muito disso nos becos da vila da procriação.

Hoje eu sei que era para ser chamado o lugar mais promíscuo daquele reino, e também sei que não devia ser chamado de reino de humanos. A humanidade tinha abandonado aquele lugar há muito tempo, ali havia apenas três coisas sendo oferecidas, mulheres baratas, homens baratos e encomendas para a sacerdotisa e o monge a mando do rei.


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