Um Cãoto escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 2
Capítulo 2




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CAPÍTULO 2

4 meses

Já me acostumei com aquela coisa seca e esquisita que me davam pra comer, ração, o nome.

Meus tios estavam sempre muito alegres e diziam estar ansiosos pra começar os passeios. Não sabia o que era isso, mas se eles achavam bom, eu também achava! E ansioso é bom!

Quando eu chorava na porta pela minha mamãe, eles me pegavam no colo, me colocavam onde eles dormiam e diziam que ia passar. Acho que estavam se referindo à saudade que eu sentia.

Suspeito que não voltarei a ver mamãe e meus irmãos, mas tinha uma casa só pra mim, uma cama só minha e UM LUZ SÓ MEU! Na verdade, descobri, esses tempos, que é uma menina. Parecia que meninas eram diferentes de meninos, então ele disse que era pra eu usar termos no feminino. Não entendi bem, estava mais preocupado em morder tudo que conseguia, porque meus dentinhos estavam começando a trocar e credo, como isso incomodava!

O bom é que meus tios — um se chama pai e a outra mãe, igual minha mamãe, só que versão sem pelos! — me davam lanchinhos também. Gostava muito daquela coisa, como era? Ah, é! Carne! O moço do lugar frio disse que tudo bem eu comer isso, que era da minha natureza. Não sei, mas era muito bom, então comia sempre que podia. Ok, admito, às vezes eu roubava umas coisinhas do lixo pra comer ou brincar, dependendo do que eu achava; afinal não dava pra comer uma caixa de papelão — já tentei. Meus tios ficavam bem bravos toda vez que notavam, mas nunca me colocaram de castigo como a outra tia fazia, então acho que tudo bem!

Pensando bem, eu acho muitas coisas. Queria saber tanto quanto mamãe nessas horas.

Luz me disse que, se eu quisesse, podia pegar um pouco da comida dela, que era diferente e bem melhor que a minha! Mas sem pai e mãe verem. Aí eles colocariam comida nova pra ela e ela ficaria feliz, eu ficaria feliz, todos ficariam felizes! E feliz também é bom!

Essa semana ganhei brinquedos novos e a mãe estava tentando me ensinar uns truques. Ela fazia uns sinais loucos e sem sentido pra eu ficar sentado e eu até tentava, mas meus brinquedos novos eram muito mais legais! Tinha uma coisa com nome engraçado pra colocar comida dentro e isso SEMPRE SERÁ MUITO MELHOR QUE FICAR SENTADO! Sem contar que tinha mais comida nele do que eu ganhava sentando, então mãe teria que se esforçar mais pra conseguir isso de mim.

Se bem que a reação dela era a melhor, toda vez que eu sentava ela emitia sons engraçados, me sacudia e apertava, então, às vezes, eu obedecia só pra agradar. Acho que eles me amam mais que a minha outra tia!

8 meses

Eu estava maior, mais forte e mais peludo.

Não entendi porque me deixaram sozinho. Luz disse que eles foram pra praia e me explicou que é um lugar bem quente, com um chão esquisito e uma água ruim que não dá pra beber. Por que nos trocariam por um lugar horrível assim? Voltaram dois dias depois. DOIS DIAS. Eles quase me mataram do coração! Achei que nunca mais ia saber deles igual minha mamãe! Fiquei tão feliz que até fiz xixi no tapete da porta, mas foi sem querer, não consegui segurar.

Nesse tempo que ficamos sem eles, uma moça esquisita veio nos dar comida e trocar a água, mas nem deu oi, por mais que eu tentasse chamar sua atenção, ela simplesmente não me olhava! Eu pulei, lati, peguei a bolinha e nada. 

Então, enquanto ela servia comida e abria a casa, já que eu não tinha nada melhor pra fazer e a Luz não queria brincar comigo, fui morder a cama gigante — eles chamavam de sofá, se não me engano. Quando mãe e pai viram, não gostaram nadinha. Mas eu deixei mais confortável pra eles! E porque era divertido! Brinquedos não brincavam comigo, eram coisas! Me deixaram na tal área de serviço sozinho uma noite inteira por isso. Óbvio que eu chorei, gritei por perdão a noite toda, mas ninguém veio. Luz disse que foi porque humanos eram diurnos, então estavam dormindo. Não sei o que é diurno, parecia ter algo a ver com o horário de dormir. E, bem, era noite. Torci pra que eles não me odiassem por eu ter gritado.

12 meses

Os pais disseram que eu já era um mocinho, me elogiaram muito durante o almoço.

Entre um lanchinho e outro que me deram, ouvi "veterinário" e "castração". Meu humanês já estava bem melhor do que quando cheguei, mas não entendi essas coisas, então fui falar com a Luz — ela é mais velha e sábia, seus bigodes que o digam, chegam a ser tortos. Luz me explicou que isso quer dizer ir ao moço do lugar frio e que "castração" — ela riu muito nessa hora — significava tirar algo de mim.

MAS POR QUÊ? EU SOU PERFEITO, ELES DISSERAM QUE EU SOU! O QUE EU FIZ DE ERRADO DESSA VEZ?

Mas não deu pra conversar muito, porque entre o meu chilique e a resposta da Luz, ouvi o barulho da caixa de comida —armário, acho — abrindo; e isso eu sabia muito bem o que significava: PATÊÊÊÊÊ

Depois de comer uma lata inteira de patê, me mostraram uma corda junto de um cinto de colocar no pescoço; nunca vi aquilo na vida. Acho que só coisa parecida, mamãe usava uma corda no peito que ela chamava de coisa-de-segurança, pra não perder o humano na outra ponta. Luz contou que cães usavam muito isso pra irem à rua. Estranho ela saber disso, porque nunca a vi ir pra rua, muito menos presa. Mas tudo bem, deixei colocarem porque era um bom menino, como mãe dizia! Pai e mãe falaram que eu estava pronto pro meu primeiro passeio. Entrei em pânico, achavam que eu era bobo? Luz falou que era pra ir pra rua. Ir pa-ra-a-ru-a! Lembro muito bem da vez que fui, daquela caixa encaixotada! Chamavam de carro, aquele monstro! E fui pra onde?

PRO MOÇO DO LUGAR FRIO, POIS ME NEGO!

Eles puxaram, me carregaram no colo e me colocaram na calçada. Fiquei lá paradão por um tempo. Ouvi várias coisas que ouvia de dentro de casa e não sabia o que eram, como um troço de duas coisas redondas — como bolinhas, só que magras — com uma tia sentada, passaram uns tios caminhando e, conforme pisavam no negócio verde espetado do chão, fazia um som engraçado. Senti cheiro de outros cachorros, alguns como a Luz também tinham passado por ali, mas tinha outros cheiros que eu não sabia definir, então soquei o focinho numa coisa cheia de cheiro de outros cachorros; mãe disse que era uma árvore daquele jeitinho agudo que só ela sabia fazer.

Eles caminharam comigo, no meu ritmo, daí por consideração — e somente isso, nada mais! — decidi explorar. Sim, consideração, porque eu odeio rua. Mas, pensando bem, até que é uma rua diferente daquela primeira, né? Não teve caixa-monstro-carro e, no fim, voltei pra casa são e salvo.

É, é melhor.

Gostei! Quero mais!

13 meses

Aprendi na pele o que é "castrado". Se eu gostei? NÃO! COÇA E DÓI DEMAIS! Esses fiapos incomodavam e ainda era obrigado a usar um tubo na cabeça, onde já se viu? Eu queria dar uma mordida na canela de quem criou essa coisa. Fiquei batendo o tempo todo pelos cantos e tropeçando, me senti um filhote de novo, nem comer direito eu conseguia e eu amo comer! Saco. Aliás, NADA DE SACO PRA MIM! Humpf.

15 meses

Os pais estavam indo quase todo o final de semana pra praia. Agora que estava crescido e me comportando — disseram — eles podiam ficar por lá mais tempo. Luz disse que é assim, mesmo e que eles nos amavam de qualquer jeito, longe ou perto. Que bonito, né? Pois não parecia! Quem ama fica perto, ué! Ou não?

Ah, é! Descobri que a Luz é uma gata. É, não parece, mas quando reclamei que ela não brincava e ela disse que não era um cachorro pra brincar como eu queria, perguntei por quê.

Lembro dela ter dito algo como “ser um felino é muito mais do que os seus pífios olhinhos caninos podem ver”. Pois é, também não entendi.

Importante é que agora eu podia brincar por tudo sem aquele tubo horrível na cabeça de dois meses atrás.

18 meses

Fui levado novamente ao moço do lugar frio. Horrível! Sofrível! Odeio!

Depois que saímos, disseram que eu estava enorme. Fiquei orgulhoso, estava parecido com minha mamãe: grande e peludo!

Ouvi eles falarem também sobre peso: estava pesando lindos 28kg. Mas o tom da conversa não era muito bom, 28kg é ruim? Luz disse que gostava de dormir em cima de mim, então acho que talvez tivesse perdido algum detalhe da conversa. Se bem que um dia Luz me chamou de pacote-gordo e ontem mesmo me chamou de tapete de mufufa. Ué.

Ainda bem que não demoramos para chegar em casa! Queria contar tudo pra Luz, mas ela rosnou e subiu na árvore de corda — que ela chamava carinhosamente de coiso, é, com o; os pais chamavam de "arranhador" — dela e ficou lá, disse que queria dormir e que era pra eu tentar a sorte com aquele brinquedo de colocar comida.

É CLARO QUE EU FUI!


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