Um Cãoto escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 1
Capítulo 1




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Semana 1

Caminhar era difícil. Eu sentia muito frio e muita fome, acho que quase o tempo todo. Meus irmãos eram muito fortinhos e eu sempre tinha que arrumar um jeito de empurrá-los para o lado ou não conseguia mamar. Ainda não enxergava nem ouvia nada.

Parecia que era normal, ninguém fazia nada a respeito.

É, devia ser normal.

Às vezes eu chorava muito porque não encontrava minha mãe.

Não sei onde ela ia, mas meu Deus, ficava muito frio quando ela saía de perto da gente.

Semana 2

Eu já escutava e já abri os olhinhos, mas ainda não enxergava muito bem, ainda estava tudo meio embaçado. Já era mais fortinho e não me preocupava com os meus irmãos mamando tanto. Estávamos mais “civilizados”. Pelo menos foi o que a nossa tia humana disse, então deve ser.

Queria correr e brincar, só que em vez de me ajudarem, eles — a tia e seus filhotes — riam da minha cara e eu me divertia muito porque os filhotes da tia também caíam; mais do que eu! Ah, é mesmo! A tia tinha dois filhotes, eram esquisitos, pelados e gritavam bem mais que nós. Tinham cheirinho gostoso de filhote, por isso sei que eram como eu.

Ontem fui tentar correr atrás da tal bolinha. Sei lá o que isso queria dizer, mas a tia ficou felizona quando eu tentei.

Não demorou pra eu cair do degrau da cozinha, eu sempre tropicava nele. A tia disse que eu estava ficando mais forte a cada dia e mais bonito também! Então devia estar no caminho certo.

Semana 3

Tomei esporro. Sei lá porquê! Mamãe me olhou feio também, mas poxa, eu estava apertado! Desde quando era errado se aliviar?! Ainda não conseguia controlar bem essas coisas, até parece que mamãe e a tia nunca foram filhotes. Ou comeram pouco hoje e estavam mal humoradas, vai saber? A tia me colocou de castigo, não era pra tanto também. Decidi não fazer mais xixi onde mamãe não fazia. É, devia resolver, pelo menos eu peguei a maldita daquela bolinha hoje. Certeza que ela zombava com a minha cara rolando por aí!

Semana 4

Minha tia chorou hoje. Não entendi o que houve. Mamãe disse que é coisa de humanos e devemos só apoiar e ficar por perto nessas horas, caso precisem, então eu e meus irmãozinhos demos várias lambidas nela. Não resolveu muito. Daí fui brincar com os filhotes dela pra ver se ela ria um pouco. Resolveu!

Os filhotes da tia não pareciam crescer na mesma velocidade que eu e meus irmãos. A gente já corria pra todo o lado, cheirava tudo e eles ficavam lá, sentados, com umas coisas coloridas de encaixar e boas de morder, olhando aquele treco que emite umas cores — não sabia bem o nome das coisas todas, mas estava aprendendo.

Semana 5

Nossa tia nos colocou num tipo de caixa, quer dizer, eu conheci uma coisa do tipo que chamaram de caixa, mas aquilo era diferente. Parecia que tudo tinha uma lógica parecida, então era tudo meio igual, mas funcionava diferente, sei lá. Ela não disse em momento algum pra onde íamos, nem pegou nossa mamãe. Meus irmãos estavam ansiosos, mas eu estava era confuso.

AI MEU DEUS! Essa joça faz barulho! ESTAMOS SAINDO DO LUGAR MAS EU NÃO TO SENTINDO!

Consegui ir pro colo de um dos filhotes da tia, tentei ver o que estava acontecendo do lado de fora. Tinha um monte de coisa lá, mas eu não consegui ver direito, era muito pequeno ainda, precisava crescer mais!

A tia tirou um por um daquela coisa, os filhotes dela ficaram com a gente, mas não estávamos na rua. Era tipo uma caixa praquela caixa! Eu ouvi algo como "estamento". "Estamento"? Muita coisa estava acontecendo ao mesmo tempo, deu saudade daquela cadeira que a tia diz que eu roí. Eu só queria ter ficado em casa com a mamãe e a bolinha. A bolinha não levava a gente pra lugares esquisitos.

Minha vez de sair! Não entendi bem o que significava aquilo, mas já fiquei feliz. Talvez eu não voltasse pra lá como os azarados dos meus irmãos. Ou talvez voltasse, mas, pelo menos, tinha saído daquele troço um pouco. Que alívio!

Não, pera.

Fui colocado numa mesa gelada e estava muito frio naquela sala. E olha que já estava ficando peludo igual a mamãe!

SOCORRO! ESSA ESTRANHA TÁ COLOCANDO ALGUMA COISA NA MINHA BUNDA! TIA, ME AJUDA! Humpf! Bom mesmo, dona moça. Isso é muito feio! Sua mãe não te deu educação? É pra CHEIRAAAAR! Nada de intimidades com objetos e... que isso? Mas que...!

Só coisas geladas! Quentinho que é aconchegante e…

AI! ELA ME ESPETOU, TIA!

Depois dessa tortura toda, a tia me pegou e levou de volta pra caixa. Odiei sair de casa. Não quero nunca mais. Está decidido! Odeio rua e nunca mais vou sair na MINHA VIDA!

 Semana 6

Aconteceram muitas coisas nesses últimos dias. Vou tentar resumir: mamãe foi pro hospital. Parece que tem algo a ver com o leite dela. Acho que tomamos demais! Ou de menos? Não entendo muito de humanês ainda. Mamãe que traduzia as coisas pra gente. E eu estava com uns tios diferentes. Eles tinham um bicho estranho, mas nada de filhotes deles, vai ver eram muito novos pra isso, que nem eu! O que aconteceu é que eu e meus irmãos fomos pra rua de novo e cá estou eu, provavelmente porque mamãe foi pro doutor, mas não entendi porque meus irmãos não estavam comigo. Não sabia se era temporário até mamãe voltar.

O estranho é que eles não me chamavam de bebê como a tia e os filhotes dela, e sim de "Fred". E o bicho estranho respondia por "Luz". É, também achei esquisito, mas o bicho todo era bizarro, então ok. Às vezes eu corria até ele pensando que estava morrendo, mas era só vômito, maior fiasco — dá pra ouvir do outro lado da casa. Tentei comer aquilo também, mas parecia mais um monte de… pelo.

Semana 7

Eu queria poder dizer que estava me acostumando com os tios novos, gostava muito deles, mas ainda me sentia sozinho: queria minha mãe, meus irmãos, os filhotes da tia pra brincarem comigo, sentia saudade deles caindo o tempo todo comigo; nessa casa, eu caía sozinho e aquele tal de Luz ainda ria de mim — isso quando não era ele quem me derrubava. Não sabia quanto tempo ficaria aqui, só queria ir logo pra casa.

Essa comida que eles me davam era estranha, seca, ruim, machucava a gengiva pra mastigar. Eu não tava pronto pra largar o leite da mamãe! Me levaram naquele lugar frio e horrível de novo, onde me deram a espetada. Tá, não o mesmo lugar, era parecido. Disseram que eu era muito novo pra ficar longe da mamãe, que talvez a tia que me "doou" — sério, como assim? O QUE ISSO SIGNIFICA? O QUE ELA FEZ COMIGO? — não soubesse. Eles explicaram pra esse moço a minha história. Eu fiquei quietinho, prestando atenção.

Mamãe foi encontrada grávida, com uma coleira onde dizia "cuide de mim" e essa mulher (a tia) ficou com pena do estado de fome e sujeira da mamãe, acabou resgatando. A saúde dela estava ok, mas ela decidiu cuidar da mamãe e doar os filhotes — "doar os filhotes", o que diabos é DOAR? DÓI POR ACASO? A GENTE MACHUCA? ACHO QUE NÃO!

Éramos seis. Seis? Hm. Humanês é confuso.

Mas esse moço do lugar frio disse que ela só poderia separar a gente depois dos noventa dias por causa de um treco com nome difícil que eu não sabia falar, mas tinha algo a ver com social, e coisa e tal. Tentei explicar que eu era um bom menino e que eu só queria a minha caminha; claro que ninguém me ouviu. Tios e tias não entendiam cães muito bem, mamãe havia me dito algo sobre isso.

Ainda não conseguia comer aquela bolacha horrível. E me dava muita sede quando tentava!

Voltamos e ganhei um tal de patê para filhotes. Beeeeem melhor!


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