Start escrita por Queen Of The Clouds


Capítulo 9
Fuga da realidade




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Anastasia

Depois de uma noite tão conturbada, parecia que alguém estava brincando comigo quando saí para o jardim e dei de cara com um sol brilhante e céu azul. Acabei cedendo ao pedido dos gêmeos e decidi ficar para o almoço. O problema era que os dois estavam ocupados e nenhum dos dois aceitava minha ajuda. Mas, por fim, depois de Alexy praticamente me expulsar da cozinha, Armin pareceu ficar com pena e me chamou para regar as plantas enquanto ele consertava e lavava o carro.

Eu abri a porta para a varanda no momento que uma brisa suave passou por mim. Eu fechei os olhos e respirei fundo. Além de bonitas, as flores de Vitória também emanavam um aroma extremamente agradável no jardim. Em contrapartida, quando abri os olhos, encontrei Armin de braços cruzados e com uma expressão de quase repulsa encarando o céu.

—Como eu odeio ficar ao ar livre.—Suspirou.

—Tá de brincadeira, né?

—Mas agora é pior.—Ele continuou reclamando.—Vou ficar ao ar livre, no sol e trabalhando.

—E comigo.

—E com você. Tem coisa pior do que isso?

Eu revirei os olhos e me sentei para descalçar os tênis.

—Quanto mais cedo começar, mais cedo termin...—Eu parei de falar quando o vi recuando lentamente para dentro de casa outra vez.—Ei, onde está indo? Você precisa consertar o carro!

—Sem condições. Eu vou derreter aí fora!

—Não está tão quente assim, Armin. 

—Se o inferno for assim, eu começo hoje mesmo a mudar minhas atitudes e...

—Pare de reclamar, você é homem, é só tirar a blusa.

—Machista.—Brincou, me olhando como se me julgasse. Eu o encarei enquanto ele tentava segurar o riso.

—Para a garagem. Agora.

Ele suspirou e arrastou os pés até a garagem. Eu procurei um regador e logo comecei e terminei minha missão com as flores. Armin ainda estava debaixo do carro, consertando o sei-lá-o-quê, então decidi adiantar o serviço e começar a lavar o carro. Encontrei uma esponja e um balde, enxaguei o carro com a mangueira e comecei a esfregar as janelas. Quando me inclinei para limpar os retrovisores, Armin tocou meu pé. Eu tentei esconder o meu susto.

—Pode pegar a chave de boca para mim? Está na caixa sobre a prateleira.

Eu peguei a caixa pesada e analisei o monte de chaves, sem fazer a mínima ideia do que seria uma chave de boca. Apoiei a caixa inteira debaixo do braço e levei até ele. Puxei o carrinho esteira com o pé, fitando-o. Ele fechou os olhos e balançou a cabeça com o monte de sol que acabou acertando seu rosto. Ele pareceu incomodado com algo a mais ao olhar para mim, mas não perguntei o que era. Torci para que, no mínimo, não houvesse nada no meu dente.

—Você espera mesmo que eu saiba o que é uma chave de boca?—Perguntei, escolhendo algumas dentro da caixa e erguendo para que ele visse.

—É-é essa aí na ponta. Da esquerda para a direita.—Ele esticou o braço para que eu o entregasse, ainda, sem olhar para mim, mas eu recuei.—O que foi?—Ele perguntou, claramente desconfortável.—Me dê a chave.

—Eu fiz algo de errado?—Questionei. Ele franziu o cenho, finalmente me olhando nos olhos.—Por que está agindo estranho?

—Eu não estou agindo estranho, me dá logo a chave.—Ele tentou alcançar a caixa, mas eu a ergui no ar, o que fez com que ele parecesse ainda mais incomodado.

—Não faz is... Annya, pelo amor de Deus, sua blusa está transparente.—Ele falou tudo de uma vez e fechou os olhos, o rosto vermelho como um pimentão.

Eu olhei para baixo, assustada, e tentei me cobrir com os braços. As ferramentas escorregaram da minha mão e a caixa desequilibrou debaixo do meu braço, acertando em cheio a barriga dele. Armin se contorceu e pareceu perder o ar por um segundo.

—Ai, meu Deus! Me desculpe!—Eu me ajoelhei e coloquei a caixa de lado.

—Relaxa... n-não está doendo.—Balbuciou, apesar das sobrancelhas claramente franzidas de dor.

—Eu acho que está sangrando!

—Está o quê?!—Armin tentou se levantar para olhar e bateu com a testa no para-choque traseiro. Eu cobri a boca, espantada. Ele voltou a deitar, com os olhos cerrados.—Okay, tudo bem... agora está doendo.

Eu o ajudei a se levantar e o levei para dentro de casa. Pedi ajuda à Alexy mas ele supostamente desmaiava quando via sangue e disse que não poderia ajudar. Encontrei uma caixa de remédios e curativos no armário do banheiro e voltei para a sala.

—Como enfermeira, você é uma ótima designer de moda.—Armin murmurou, com uma bolsa de gelo na testa, enquanto eu limpava o corte em sua barriga com o algodão.

—É melhor você calar a boca ou o próximo ferimento será proposital.—Murmurei, começando a limpar o corte em sua barriga com o algodão.

Ai!

—Desculpe!

—Está ardendo!

—Fique... quieto!—Pedi, tentando tratar do ferimento.—Se não tivesse falado sobre a minha blusa não estaria ardendo!

—Se não tivesse soltado as chaves não estaria ardendo!—Ele me lançou um sorriso sarcástico.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu soltei um suspiro profundo. Estava me segurando para não fazer nenhum comentário bobo sobre o seu corpo. Segure a língua, Anastasia, ele está debilitado, faça-me um favor!

O problema é que eu ainda não conseguia entender como um cara que passava o dia inteiro trancado no quarto jogando videogame e estudando poderia ter aqueles músculos.

Ele parecia esculpido à mão... e talvez realmente tivesse sido... por anjos. Deus, aquilo não era para mim!

—A sala sempre girou assim mesmo?—Balbuciou, olhando fixamente para o teto.

—Não que eu saiba.

—Então acho que estou tonto. Ai...—Ele sussurrou quando deslizei o algodão sobre o corte outra vez.

—Desculpe.—Falei automaticamente. Ele sorriu.

—Não precisa pedir desculpas a cada "ai" que eu dou.

—É automático.

—Percebi. Ai.

—Desculpe.—Ele olhou pra mim e eu sorri.—Certo, eu me esqueci. Pronto, terminei aqui embaixo. Me deixe ver sua testa.

—Eu só bati, não é nada demais.

—Quero ver mesmo assim.

Eu ergui seu queixo gentilmente para examinar o ferimento. Havia um corte pequeno, com uma área roxa ao redor. Eu conseguia ouvir sua respiração, tranquila, e sentia seu olhar sobre mim.

—Quer parar de me observar?—Falei, evitando o contato visual com o mar azul em seus olhos.

—Hum... por quê? Estou te deixando nervosa?—Provocou, erguendo as sobrancelhas repetidamente. Eu dei uma risada quando ele sibilou de dor por fazer isso.

—Na verdade, está sim!

Armin se calou e desviou o olhar, mas não demorou muito para voltar a falar.

—Nunca tinha reparado que você usava anel. Deixou algum namorado para trás quando se mudou para cá?

Eu fiquei em silêncio. Meu coração disparou.

—Se estiver precisando de conselhos para relacionamentos, fique sabendo que não sou a pessoa mais indicada pra isso.

Ele esboçou um sorriso.

—Também não sou. Só perguntei por curiosidade.

Eu demorei a responder. O anel dourado já estava escurecido e quase opaco de tantos arranhões. Realmente, parecia uma aliança. Era fino, simples e tinha uma única estrelinha de cinco pontas entalhada no centro, de forma quase imperceptível.

—Meu pai me deu esse anel.—Expliquei, relutante, esperando que ele não me perguntasse nada além disso.—Eu uso desde que era criança.

—Ah, isso faz bem mais sentido. Acho que não consigo imaginar você gostando de alguém.

Senti algo se fechar dentro de mim. Não vejo como essa conversa poderia caminhar para um lugar bom. 

—Nem eu. Pelo menos, não mais. Não pretendo cair nessa besteira outra vez.—Respondi, rispidamente, e me afastei.—Bem, terminei os curativos. A boa noticia é que você vai sobreviver.

—E a má notícia?

—O carro ainda precisa ser consertado.

Ele revirou os olhos e nós dois rimos.

Mais tarde, o carro estava pronto, mas eu ainda não havia terminado de lavá-lo. Apesar de sua genuína aversão ao ar livre e da minha insistência para que ele fosse descansar, Armin ficou para me ajudar. Ele não parava de reclamar dizendo que, se soubesse que iria chover tanto, não teria colocado o carro na garagem.

—O Alexy me disse que você morou nos Estados Unidos por uns anos.—Ele iniciou um assunto depois de um tempo.—Como era lá?

Eu não só não queria falar sobre os Estados Unidos, como também não tinha o que falar.

—Era... normal. Nada muito interessante. Eu morava com os meus avós em Montana e frequentava a escola. E você? Já saiu do país alguma vez?

—Não. Acho que o mais longe que já viajei foi para a casa de praia dos meus avós.

—Ah, a casa que sua avó está reformando?

—Isso aí.

—E você tem vontade de viajar para o exterior?

Eu ainda não estava pronta para me abrir sobre a minha vida então precisava fazê-lo falar sobre a dele.

—Você se assustaria se eu dissesse que não?

Eu fingi espanto.

—Que tipo de monstro é você?

Ele deu um sorriso fraco.

—Alexy sempre fala sobre sair de casa, viajar por dias, conhecer novos lugares e novas pessoas... e eu me sinto cansado só de pensar.

—Eu entendo. Nem todo mundo gosta de viver uma vida agitada.

—Exato. Eu sou um homem de prazeres simples.—Brincou.—Tudo que eu preciso está dentro do meu quarto, para que sair de lá?

—Mas não é possível que você não tenha nenhum lugar no mundo que não deseje conhecer...

Ele pensou por alguns segundos.

—Tóquio, talvez. É como o meu quarto, só que maior. Tudo que eu gosto parece ter vindo de lá.

—E desde quando você começou a se interessar por todas essas coisas que vieram de lá?

Ele hesitou em responder.

—Os animes e mangás vieram bem depois, mas não foi uma fase que durou muito... no máximo um ano, eu acho. Já os videogames... difícil dizer. Eu já devia ter uns sete ou oito anos na época. Não tenho muitas lembranças do orfanato, mas lembro que o meu principal passatempo era procurar dinheiro... nos corredores, no caminho para a escola, no refeitório... em todo lugar.

Eu franzi o cenho.

—Porque você fazia isso?

Ele se abaixou para lavar a esponja no balde e olhou para mim. O sol batia em seu rosto e, por um segundo, seus olhos se tornaram quase brancos.

—Porque depois da escola, eu corria até o fliperama e gastava tudo que havia encontrado.—Ele fez uma pausa e voltou a olhar para baixo. Sua voz soava melancólica.—Não sei explicar, mas... eu dividia um quarto com meu irmão, dividia a mesa com outras dezenas de crianças, estudava numa sala lotada e ali, só ali... eu me sentia livre. Naquelas histórias, eu era um piloto de corrida, um samurai, um viajante do espaço, um lutador de boxe... nos videogames eu poderia ser qualquer coisa... mas não era um garoto órfão.

Eu conseguia ver o brilho em seu olhar ao contar a história. Os jogos eram sua fuga da realidade, é claro que ele iria escolher trabalhar com isso. Senti um nó se formar na minha garganta.

—Eu... nem sei o que dizer, Armin.

Ele suspirou e abriu um sorriso largo.

—Não precisa dizer nada, nem sei porquê estou te contando isso, na verdade... essa época já passou. Eu amo meus pais e amo a vida que tenho agora.

Às vezes eu esquecia que ele e Alexy foram adotados. Vitória, sem dúvidas, nasceu para criá-los. Eles podiam não ter o mesmo sangue, mas o amor que os unia era bem mais forte do que isso.

—No entanto...—Ele murmurou.—Eu agradeceria se não contasse essa história trágica do pobre menino órfão para ninguém... pode guardar o segredo?

E para quem eu iria contar? Não conheço ninguém!

—Vou pensar se atendo o seu pedido.—Eu coloquei as mãos na cintura, olhando para o céu. Ele riu e atirou a esponja em mim.

Finalmente terminamos de lavar o carro. Eu entrei para tomar banho, enquanto Armin ficou para trás para guardar o carro na garagem. Eu subi até o banheiro no quarto de Armin e assim que terminei meu banho, me lembrei do grande problema: não havia toalhas no banheiro.

Qualquer pessoa com um pouco de inteligência teria providenciado a toalha e as roupas antes de entrar num banheiro que não é dela. Às vezes sua burrice me assusta, Anastasia!

Eu avaliei minha situação. Eu poderia ficar trancada aqui, me sacudindo como um cachorro por horas. Talvez desse certo.

É claro que não daria certo.

Tentei tirar o excesso de água com as mãos e vesti minhas roupas. A sensação do tecido colando na minha pele era tão desconfortável que eu precisava me concentrar muito para não pensar nisso.

Antes de sair do banheiro, espiei com a porta entreaberta para ter certeza de que não daria de cara com Armin outra vez. Se antes minha blusa estava transparente, não sei como poderia descrevê-la agora.

Escutei o motor nem um pouco silencioso do carro de Armin roncar em algum lugar e assumi que era seguro procurar Alexy pela casa para pedir uma bendita toalha. Desci até metade da escada, mas não o encontrei na cozinha ou na sala. Fui até o seu quarto e bati na porta.

—Pode entrar, eu já estou saindo!—Ele respondeu, num tom abafado. Eu entrei no quarto evitando olhá-lo, envergonhada pela minha estupidez.

—Desculpa, Alexy. Você teria uma toalha pra me emprestar? É que eu só me dei conta de que não tinha nenhuma no banheiro quand...

Quando finalmente olhei para frente, tive apenas um vislumbre de Armin no banheiro do Alexy. Ele estava apenas com uma toalha enrolada ao quadril e seu cabelo estava meio preso de forma terrivelmente bagunçada. Não tive tempo para perceber nada além disso, porque logo ele empurrou a porta. Num sobressalto, levei as mãos aos olhos. 

—E-e-eu não sabia que você estava aqui, pensei que fosse o Alexy!—Praticamente berrei, em desespero.

—Eu pensei que você fosse o Alexy!—Escutei-o dizer, claramente tão surpreso quanto eu.

—D-desculpe, e-eu... e-eu vou sair!

Eu dei meia volta e corri para o seu quarto, me trancando no banheiro.

Um acerto! Só isso! Eu só queria acertar, pelo menos uma vez na vida! Devo estar tentando bater meu record pessoal de passar o máximo de vergonhas em menos de 24 horas! Não é possível!

Me sentei no chão e abracei meus joelhos de encontro ao peito. Permaneci ali, em choque, por sei lá quanto tempo. Com que cara eu poderia olhá-lo agora?

Sem aviso e para piorar a situação, a imagem de seu torso completamente nu me veio à mente. Não é hora para isso, Anastasia!

—Annya?—Alguém me chamou do lado de fora do quarto. Imaginava que fosse Armin, mas agora não tinha mais certeza de nada!

Ele bateu na porta do banheiro.

—Posso entrar?

Não, espere só um segundo enquanto eu bato com a minha cabeça no azulejo até perder a consciência!

—Sim...—Murmurei, a contragosto. A porta se abriu e eu juntei coragem para olhar pra cima. Armin inclinou a cabeça e deu um sorriso sem graça, como se estivesse com pena de mim.

—Eu deveria ter imaginado que não era o Alexy, desculpe.

—Ah, é? Como? Por telepatia? A culpa não é sua, Armin.

—E nem sua. Esquece isso.—Ele me ofereceu uma toalha e roupas secas. Eu sustentei seu olhar e suspirei, aceitando. Como se fosse fácil.—Vou te esperar lá embaixo. Dessa vez juro que vou estar vestido.

Era nítido que ele estava brincando para aliviar a tensão, mas isso não impediu o meu corpo de se tensionar por inteiro ainda mais. Meus músculos pareciam feitos de pedra. Armin, por outro lado, apenas riu da minha expressão envergonhada e tornou a fechar a porta, me deixando sozinha com uma estômago embrulhado e uma imaginação fértil.


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Notas finais do capítulo

:D