Start escrita por Queen Of The Clouds


Capítulo 33
Farol




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Anastasia

Eu acordei num lugar iluminado por uma luz forte. Pisquei repetidas vezes até finalmente me acostumar com o ambiente claro. Eu estava num hospital. Havia cortinas ao redor do meu leito mas, entre as frestas, eu ainda conseguia ver os jalecos brancos caminhando de um lado para o outro. Quando olhei para o lado, descobri que havia algo injetado na minha veia. Devia ser soro fisiológico. Eu tentei me levantar mas me senti tonta.

—Ei... não se mexe.—Ouvi a voz de Armin murmurar ao meu lado. Eu bati a cabeça no travesseiro, furiosa.

Mas... que... droga! O que diabos ele ainda estava fazendo ali? Quanto tempo mais iria demorar aquela atuação ridícula de amigo-super-preocupado?

Ele respirou fundo antes de falar:

—Desculpe por ter gritado com você.

Eu virei o rosto, fazendo-o bufar, frustrado.

Você não facilita, sabia?—Reclamou, trincando os dentes. Um médico abriu as cortinas e se aproximou da minha cama, anotando algo numa prancheta.

—Como está se sentindo, Anastasia?

Eu suspirei.

—Melhor, eu acho. Talvez um pouco tonta.

—Entendo... nada demais, você deve ter levantado um pouco rápido, certo?

Eu assenti.

—Certo. Eu fui informado de que você não tem se alimentado corretamente, então imagino que essa síncope tenha sido causada por desidratação ou queda de pressão... não é nada muito grave, mas você precisa mudar esses hábitos.

—É, eu sei...

—Está sentindo mais alguma coisa?

—Hum... não.

Para sair dali, eu diria qualquer coisa. Eu não suportava hospitais.

Armin se mexeu, desconfortável, e cruzou os braços.

—Na verdade, doutor, eu queria pedir que a examinasse também porque... está vendo o rosto dela? Está avermelhado, abatido, os olhos estão lacrimejando. Acho que ela pode estar doente.

—Eu estou ótima, Armi..!

Eu mal havia acabado de falar e tive uma importuna crise de tosse. Que raiva!

O médico pediu licença e se inclinou na minha direção, apertando meu rosto com os polegares.

—Sente dor aqui?

—Eu...

—Não minta para o doutor, Annya.

Eu revirei os olhos.

—Sim, está doendo.

O médico citou uma série de sintomas e perguntou se eu sentia algum deles. Dores atrás dos olhos, congestão nasal, irritação na garganta, cansaço, dor de cabeça... eu sentia tudo isso e até mais. Ele me preescreveu um monte de remédios, suspeitando de sinusite. Quando estava prestes a sair, Armin o chamou outra vez.

—Ela também costuma ter algumas crises...

—Armin.—Eu o repreendi, irritada.

Ele não falou comigo por meses e agora decidiu que precisava cuidar de mim?!

—Que tipo de crises?—O doutor perguntou. Armin me lançou um olhar de soslaio.

—Bem, ela fica paralisada, como se estivesse em pânico. Fica pálida, começa a hiperventilar, tremer, suar e... chora bastante. Leva alguns minutos até ela se acalmar e voltar ao normal.

O médico se voltou para mim

—Você já teve acompanhamento psicológico alguma vez?

—Sim, mas... parei quando me mudei para cá.—Respondi, sem jeito.

—Talvez devesse voltar. Não sou especialista na área, mas aconselho que procure um psicólogo. Pode estar desenvolvendo síndrome do pânico. Já passou por alguma experiência traumática?

Eu engoli em seco e desviei o olhar. Armin respondeu por mim, sem dar muitos detalhes, e os dois continuaram a conversar. Quando o médico disse que eu deveria preencher uma ficha, preferiu entregá-la a Armin, já que eu não podia mexer o braço.

—Me desculpe perguntar, mas qual é o seu parentesco com ela? Não posso entregar a você se não forem próximos.

—Nós estamos noivos.—Armin abriu um sorriso e pegou a ficha. O médico pareceu contrariado, mas não teve tempo para contestar. Uma enfermeira se aproximou e pediu para que ele a seguisse. 

Noivos?—Rosnei assim que o doutor se afastou.

—Eu precisava dizer alguma coisa para convencê-lo.

Armin virou a cadeira para mim e repousou o tornozelo sobre o joelho, tranquilo. Parecia satisfeito por mostrar que eu dependia dele.

—Seus dados pessoais, por favor.

Eu suspirei.

—Anastasia Bernardi, nasci em 25 de novembro de 1999, na...

Eu continuei citando todos os meus dados e informações mecanicamente, sem olhá-lo nos olhos. Por fim, ele chegou no meu ponto fraco.

—Filiação.

Eu hesitei em responder. Já fazia anos que eu não falava aqueles nomes em voz alta e eu preferia que continuasse assim. Eu não gostava de lembrar dos meus pais porque me fazia mal. Era uma mistura de terríveis saudades do meu pai e mágoa esmagadora da minha mãe... eu nem sabia onde ela estava. Eu nem sabia se ela ainda estava viva.

Eu sentia Armin me observar, ainda esperando por uma resposta. Respirei fundo.

—Charlie e Laura Bernardi.—Murmurei. Ele terminou de escrever e se levantou.

—Eu vou lá dentro entregar a ficha ao médico.—Ele me lançou um olhar preocupado.—Eu sei que está com raiva de mim, mas tente não fugir do hospital, está bem?

Eu revirei os olhos.

 

Armin

—Come.

—Eu não quero.

—Você precisa.

—Eu não quero!

Annya empurrou o prato de sopa, cruzou os braços e recostou na cadeira. Já havia se passado horas desde que saímos do hospital. Eu deixei Annya no carro e corri até o mercado para comprar ingredientes para a sopa. Eu estava com medo de que ela fugisse, mas torci para que o seu senso de moda falasse mais alto: ela jamais saíria na rua vestindo pijamas.

—Você precisa comer alguma coisa.

—Eu preciso que você vá embora e me deixe em paz.

Eu peguei o prato e me sentei na sua frente. Não desistiria tão fácil assim.

—Quer que eu faça aviãozinho?—Provoquei, recebendo um olhar merecido de puro ódio como resposta. Eu respirei fundo.—Tudo bem, Annya. Eu sei que errei... errei feio. Eu te abandonei exatamente como prometi que não abandonaria... mas, caramba... eu não sabia que era tão importante para você. Na verdade, pelo jeito que você está me tratando, eu nem sei se ainda sou, mas...

Ela me analisou de cima a baixo, pelo canto dos olhos. Pensei que fosse dizer alguma coisa, mas ela apenas voltou a olhar para frente. Eu suspirei.

—Eu estou aqui agora. Eu quero cuidar de você, mas preciso que você me deixe fazer isso. Por favor. Eu não me importo de te carregar no colo toda vez que você desmaiar ou tiver uma crise de pânico, mas eu adoraria evitar isso... e você bem que poderia adorar não me deixar preocupado, não é?

Eu ergui a colher de sopa próxima ao rosto dela.

—Você pode me perdoar?

Seu olhar permanecia duro mas, para a minha surpresa, ela olhou para cima e abriu a boca. Eu mordi o lábio, escondendo um sorriso.

Eu consegui!

Estava prestes a dar a segunda colher, quando meu celular começou a tocar. Lily. Com tudo que aconteceu, eu havia esquecido completamente dela e do nosso encontro. Ela devia estar furiosa.

Eu recusei a ligação, fazendo Annya demonstrar uma pequena expressão de surpresa. Eu teria que lidar com a namorada estressada mais tarde, mas naquele momento, eu não podia estragar o meu progresso com Annya.

Só que o celular voltou a tocar. Annya pegou o prato e a colher das minhas mãos e me entregou o celular.

—Eu sei comer sozinha.

Eu peguei o celular e deslizei a tela, me preparando psicologicamente para o pior.

—Hum... oi, Lily.

Armin, eu te esperei a tarde inteira, onde você está?

Eu fechei os olhos.

—Estou na casa de Annya.

Silêncio do outro lado da linha.

Ah.—Ela fez uma pausa enorme antes de voltar a falar.—Diga à ela que mandei um beijo.

—Annya, hum, Lily mandou um beijo.

—Manda ela ir...

—Ela mandou outro, Li.—Eu interrompi Annya. Ela fez uma careta.

Sei. Já que não pudemos nos encontrar, você pode vir aqui em casa pelo menos?

—Agora? À noite?

Sim.

Eu observei Annya. As covas em sua bochecha pareciam mais profundas e seu rosto estava mais fino. Não era impressão minha, ela realmente havia emagrecido. Eu sabia que ela estava mal... e também sabia que a sinusite era o menor dos problemas.

—Não, Lily. Eu não posso ir. Me desculpe.

Sua voz estava carregada de decepção, quando ela voltou a falar:

Armin, eu tinha planos para hoje. Pensei que eu e você poderíamos finalmente... hum... você sabe.

Eu limpei a garganta e olhei para Annya, antes de me virar de costas. Ela com certeza havia escutado o que Lily falou, porque sua expressão de nojo dizia tudo. A verdade era que eu estava evitando esse assunto há muito tempo. Eu gostava da Lily e com certeza a achava atraente, mas havia algo que ainda me segurava.

Eu cheguei perto de beijar Annya tantas vezes, já a desejei tanto que... pensei que já estivesse pronto para amar alguém outra vez. Mas, pelo visto, não estava. Lily nem mesmo sabia tudo que havia acontecido comigo. Eu não mencionei o nome da Íris em nenhum assunto e, para ela, Rachel foi apenas um relacionamento que não terminou bem. Eu sabia que estava sendo injusto com ela, mas ainda assim não conseguia ser transparente. Eu não conseguia me abrir e dizer o que eu sentia. Talvez eu ainda não estivesse totalmente recuperado de tudo que aconteceu.

Eu passei a mão pelo rosto, inquieto.

—Lily, eu realmente não posso. Preciso ficar aqui hoje.

Ela deu uma risada.

Espera um minuto, você vai passar a noite na casa dela?

—Sim.

Armin, eu pensei que esse assunto já estivesse encerrado!

Eu abaixei meu tom de voz.

—Lily, ela está doente. Eu não posso...

Não me interessa se ela está doente! Ela poderia estar morrendo e eu ainda não iria querer você perto dela! Que morra sozinha!—Ela explodiu.—Não entendeu ainda que eu não gosto dessa mulher? Como você pode ser tão estúpido?!

Eu ergui as sobrancelhas, surpreso.

—Você tem noção do que acabou de falar?

Ela deixou escapar um suspiro.

Amor, me desculpe, eu...

—Depois a gente se fala, Lily.

Tem certeza que não vai vir? Eu já estou na cama...

—Ótimo, então vá dormir.

Eu desliguei a chamada e coloquei o celular em cima da bancada.

—Fico feliz em saber que meu funeral vai ser divertido para mais alguém... além da minha mãe, da Rachel e do Viktor.

—Ela não falou por mal.—Menti, tentando acalmar as coisas. Eu franzi a testa.—Você nunca falou muito sobre a sua mãe.

Annya fingiu não escutar.

Eu já estou na cama...—Ela afinou a voz para imitar Lily.

O sorriso que deixei escapar a encorajou a continuar. Preferi não pressioná-la sobre a sua família.

Oh, Armin, você vai me trocar por ela? Não quer ficar abraçadinho e nu comigo pelo resto da noite?—Ela colocou a mão no rosto, dramática.

—Quer parar com isso, mademoiselle?—Perguntei, rindo e levando o prato vazio até a pia.—Apesar de tudo, ela ainda é a minha namorada. Só... estava irritada.

Ela se calou por alguns segundos.

—Eu pensei que vocês dois já tivessem...

—Não.—Neguei rapidamente.

—Por quê?—Ela perguntou, sem rodeios. Eu a olhei. Seu rosto não transparecia emoção alguma, mesmo fazendo uma pergunta tão importante.

Uma pergunta que eu não poderia responder. Se eu dissesse tudo que passava pela minha cabeça, eu estaria frito.

—Porque... eu sou areia demais para o caminhãozinho dela.—Me debrucei sobre a bancada com um olhar cínico.

—Pobrezinho de você.—Resmungou, debochada, apesar do rubor em suas bochechas. Ela deixou a cozinha e se trancou num quarto ao lado do seu. Eu nunca havia reparado que existia aquela porta. Acho que ela sempre esteve fechada, então passava despercebida aos meus olhos.

Eu lavei a louça e passei o tempo jogando no celular. Havia dezenas de mensagens de Lily, mas eu ainda não estava com paciência para respondê-la. Na verdade, eu nem sabia como iria fazer isso. Eu tentei entendê-la desde o início. Eu sabia que Lily não se sentia à vontade com a Annya e sacrifiquei minha amizade por isso, porque eu queria fazer dar certo. Antes de Lily se mudar para cá, eu deixei de encontrar Annya diversas vezes, para conversar com ela por mensagens e chamadas. Eu sabia que não estava fazendo mais do que a minha obrigação como namorado, mas ainda assim... foi difícil me afastar de Annya. Ela ocupava boa parte da minha vida. E não importa o quanto Lily sentisse ciúmes, ela não tinha o direito de falar daquela forma sobre ninguém.

"Que morra sozinha".

Annya saiu do quarto misterioso depois de muito tempo, com uma pilha de roupas e panos manchados de tinta. Eu pausei o jogo.

—Eu nunca havia reparado naquele quarto.—Falei sugestivamente, enquanto ela colocava as roupas num cesto.—O que tem lá?

Ela me ignorou e voltou a andar em direção ao cômodo. Eu corri atrás dela, mas ela parou na porta, fechando o caminho.

—Não!—Exclamou, acuada.

—Por quê?

—Porque eu disse não.

—Eu vou entrar aí quando você não estiver olhando.

—Não, você não vai.

Eu cruzei os braços.

—E quando vou poder ver o que tem aí dentro?

Ela me encarou, fazendo o mesmo.

—Um dia, quando eu não estiver aqui, sei lá.

—Então quando você estiver na faculdade...

—Estou me referindo a um longo período de tempo.—Murmurou.—Uma viagem, por exemplo.

—Mas eu queria ver agora...

Ela revirou os olhos e se virou pra trancar a porta mas eu segurei sua mão.

—Tudo bem. Eu prometo que não vou entrar, não precisa trancar.

Ela deu uma risada de escárnio.

—Digamos que suas promessas não valem muito.—Reclamou, voltando sua atenção à fechadura. Eu segurei sua mão.

—Annya, eu não vou entrar.

Ela puxou o braço, me lançou um olhar irritado e abriu a porta do seu quarto.

—Ei, espere. Onde eu vou dormir?

Ela deu meia volta e ergueu as sobrancelhas, indiferente.

—Você tem duas opções: a sua cama ou a de Lily. Escolha bem.

—Três, eu fico na sua.

—Se você tentar dormir na minha cama eu mato você.—Ela me fitou, séria.

—Era brincadeira.

—Eu tenho um sofá lindo bem ali. Faça bom uso dele.

—Quanta crueldade...

Ela entrou no quarto e bateu a porta.

 ***

Duas horas da manhã. Eu já estava há quase três horas tentando dormir, mas parecia impossível. Como se já não bastasse o monte de pensamentos assombrando minha mente, o sofá também não se mostrava como um bom amigo para mim. Podia até ser bonito, mas era desconfortável e pequeno demais. 

Eu me levantei, cansado e entrei no quarto de Annya, carregando o travesseiro debaixo do braço. Ela já estava dormindo.

Sozinha numa cama de casal macia, quem não estaria?

Eu cutuquei seu braço.

—Ei. Annya.

—Hum.

—O sofá é pequeno demais.

—Vai dormir...

—Não consigo.

Ela abriu os olhos, pesadamente.

—Deita aí e não enche o meu saco.

—Obrigado.

E não encosta em mim.—Balbuciou.

—Sim, senhora.

Eu virei para o lado e dormi em questão de minutos... mas, muito tempo depois, um ruído me acordou. Pareciam soluços... como se alguém estivesse chorando.

Eu me sentei na cama rapidamente. Annya estava deitada encolhida ao meu lado, chorando e tremendo.

—Não... não pode...—Murmurou, entre lágrimas.

Ela estava tendo um pesadelo.

—Annya.—Eu a balancei, devagar.—Annya!

Ela abriu os olhos assustada e me encarou. Eu conseguia ver apenas as lágrimas brilhando em seu rosto.

—Você está aqui.—Sussurrou. Eu franzi o cenho, confuso.

—É claro que eu est...

Num movimento rápido ela abraçou minha cintura e começou a chorar mais ainda. Seu rosto estava escondido na minha barriga e suas mãos deslizavam pelas minhas costas, trêmulas, buscando algo a que segurar.

—Eu sonhei que.... v-você havia sofrido um acidente... estava em coma.—Gaguejou.—Havia... tubos... e aparelhos... foi horrível, Armin...

Ela estava começando a hiperventilar outra vez. Eu a puxei para cima e a abracei.

—Não... Annya, eu estou aqui. Estou bem. Está tudo bem. Respire devagar.

—Doía em mim... eu sentia dor... eu não quero t-te perder, dói em mim...—Balbuciou, chorosa. Eu não conseguia mais entender o que ela estava falando.

—Foi um pesadelo... está tudo bem. Você já passou por isso, lembra? É só uma crise. A dor já vai passar. Não precisa ter medo.

Eu acariciava sua nuca. Eu não conseguia vê-la. Queria olhar em seus olhos para fazer essa promessa, mas estava escuro demais. Quando senti que sua respiração estava começando a normalizar, eu a abracei com mais firmeza. Eu queria lhe dar alguma segurança, algo em que ela pudesse confiar e se agarrar sem medo... mas eu só tinha palavras.

Então eu precisava cumprí-las.

—Você não vai me perder. Eu prometo.


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Notas finais do capítulo