— Você está péssimo.

— Posso dizer o mesmo de você.

Meu pai era um ser humano enorme e isso irritava. Eu nunca conseguiria derrubá-lo na forma humana – nem mesmo se eu tivesse a ajuda de um deus. Ele era poderoso e assustador.

— É assim que trata seu pai? — perguntou erguendo os braços. — Cadê o respeito?

— Você perdeu quando abandonou minha mãe sozinha para viver aqui no luxo — respondi simples. Não posso negar, nunca fora nenhum fã dele e não era porque tinha um cargo superior que isso mudaria. — E você? Por que está fazendo isso?

— Acha que vou te responder?

— Acho.

Encarou-me com raiva. Kobayashi não era o tipo de homem que gostava de receber homens e era um segredo para mim como ele conseguira suportar ficar como Hogosha por tanto tempo.

— Tudo bem, por sua estupidez, você merece saber — comentou sentando-se sobre a mesa da sala. — Isso tudo é deplorável, não acha? Um humano mandar em nós. Uma raça mais evoluída e poderosa. Não veja como isso pudesse ser correto.

— Nós deveríamos protegê-los — rebati irritado. — E não os matar.

— Isso é o que você diz — devolveu com um dar de ombros. — Nenhum deus da Lua desceu até aqui e veio me dizer que era assim que deveria ser feito.

Meu pai era um psicótico e não parecia estar ao alcance de palavras. Plano um, conversar, excluído. Agora vocês entendem como meu pai é uma gracinha de pessoa?

— E não vou deixar que você, um pirralho que de nada sabe, tome meu lugar de direito.

Aí estava.

Ele não cederia sem que eu ganhasse o tão cobiçado “lugar de direito”. Meu corpo humano tremeu, agitado pela necessidade de virar um lobo. Eu sempre amei minha forma original – é quem eu sou. Contudo, ela poderia me tornar nada mais que um animal selvagem e perigoso se não fosse controlado corretamente.

— Vamos acabar com isso de uma vez, Katsuo.

E, bem em frente aos meus olhos, ele virou um lobo. Enorme; com longos caninos que não cabiam em sua boca; pelos tão negros quanto a noite e olhos amarelados sem vida. Eu já disse que meu pai era assustador?

Rosnados. Meu próprio pai me desafiava. Podem me xingar, porque fiz o mesmo, já que paralisei de medo. Não queria ser devorado pelo meu lado animal, mas também não queria morrer pelas patas de meu pai.

Ele saltou em minha direção e fui obrigado a pular para o lado. Choquei-me contra a parede, mas tenho quase certeza de que a pancada dele foi mais dolorida que a minha. Meu pai voltou-se rosnando para mim. A distância era pequena, eu estava sozinho e os dentes dele eram muito afiados.

Uma pequena perseguição se iniciou dentro da sala. Usei a mesa o quanto ela esteve intacta para mantê-lo afastado de mim, por isso ela acabou em pedaços por causa do meu pai. Ele era, realmente, um amor de pessoa.

Vocês devem estar pensando: se transforme logo em um lobo e lute com ele como um homem! Olha, não é fácil assim, tá? Meu pai é assustador e ainda é meu pai. Uma das pessoas que, mesmo que eu detestasse, respeitava pelas coisas que conquistara. Além disso, quem me garantia que ele não seria um alfa melhor que eu?

Mais um rosnado.

Virei-me assustado. Ele estava tão próximo que no momento em que levantou a pata eu não precisei de uma segunda indicação para saber que estava perdido. O golpe foi tão forte que me atirou na parede, até ultrapassá-la e acabar comendo terra do lado de fora. Vergonhoso? Muito. Mas vamos dizer que é culpa minha.

Acabamos na parte dos fundos do palácio. Ali era o único ponto do lugar que possuía uma subida que dava visão completa da parte de baixo. Não precisei pensar em ir até lá, pois ver meu pai saltando pela abertura que fizera na parede com meu corpo foi o suficiente para me fazer correr pelo espaço aberto.

A cena do lado de fora do castelo era impressionante.

Todo o feudo podia ser visto; quase toda a Hikari no Mori também. As fileiras de lobos ainda rosnavam uma para a outra. Meu coração apertou. Eu nunca vira tantos lobos de minha raça juntos e gostaria que aquela fosse uma ocasião festiva e não um quase combate entre uma família. Contudo, surpreendentemente, eu podia ver uma mancha branca ao longe, com logos cabelos negros e sendo carregada por um lobo de pelo azulado – Hidetaka.

— Ailee? — murmurei aliviado.

Outro encontrão acertou meu corpo e eu sai rolando para o lado, distanciando-me da visão. Meu pai realmente estava me batendo, mas em nenhum momento usara as garras ou os dentes. Ele esperava que eu me transformasse.

Tentei erguer-me, tropeçando em minhas próprias pernas. Aquilo era ridículo. Lembrei do pedido desesperado de Tsukuyomi. Ele queria que eu desistisse; Izanagi queria que eu desistisse. Os deuses não acreditavam em mim.

Um rosnado saiu por minha garganta. Aquela fora a situação a vida inteira. Quando fui selecionado para a competição em ser o Hogosha, todos torciam por Seiji ou acreditaram que a pessoa certa para participar era Saki. Eu era um dos únicos lobos que gostava de ser lobo, isso era ridículo.

Senti os pelos crescerem e minha forma mudar. Meus membros alongaram e afinaram; meus dedos sumiram e foram substituídos por garras tão afiadas quanto diamantes; meu nariz alongou-se e meus dentes se transformaram em presas que não cabiam direito dentro de minha boca; minha visão ficou ainda melhor, mas com menos cores.

Abaixei minhas patas dianteiras e rosnei. Meu pai podia ser assustador, mas eu sempre fora o maior da matilha inteira.

Ele correu em minha direção, com as garras a mostra. Abri a boca e soltei um latido, chamando-o para o confronto. Se ele fosse ficar em meu caminho, iria tirá-lo de lá, como fizera com todos os outros.