Lady Luck escrita por Fadaravena
Eram vinte para às sete quando a senhora Matsuno cumprimentava um exausto senhor Matsuno. Ela estava atrás do balcão da pequena cozinha cortando cenouras e as colocando dentro de uma panela junto com batatas e cebolas picadas. O marido atirou maleta e paletó no sofá e foi dar um beijo na esposa por cima do balcão.
- Como foi o dia, querido?
- Sabe aquela proposta que mencionei? O diretor ficou satisfeitíssimo! Foi fantásti-com home-run! - estirou-se no sofá fazendo a maleta cair no chão perto dos seus pés.
A senhora Matsuno sorriu.
- Fico muito feliz em ouvir isso. - de repente franziu a testa em dor.
- O que houve? - perguntou preocupado.
- Foi o pequeno. Acho que ele também ficou empolgado.
O sr. Matsuno levantou de um salto e foi direto para a esposa agachando à altura de sua barriga. Seu rosto irradiava-se.
- Campeão, consegue escutar o papai? Seu quarto vai se encher de brinquedos, só para você. Papai vai comprar tacos e mais tacos e bolas de beisebol para o meu pequeno. Você será o campeão do papai e da mamãe!
- Com certeza, vai ser uma criança saudável como você, querido.
Ele ergueu a cabeça e observou a esposa, seu olhar se enchia de ternura. O rosto dela estava sereno, os músculos só se contraíam para dar forma ao mais belo dos sorrisos, os cabelos castanhos amarrados numa longa trança enfeitavam seu pescoço e dividiam seus seios robustos. Ela usava uma camisola larga e por cima um avental cor de pêssego.
- E adorável como a mãe. - se levantou outra vez para beijar-lhe a bochecha.
- Vamos querido, a janta vai estar pronta assim que voltar do banho.
- Pode deixar! Hustle! Muscle! - rumou motivado até o chuveiro.
Como previra a sra. Matsuno, em menos de quinze minutos a sopa já estava servida em uma mesa estilo ocidental de quatro lugares, no canto da sala. Dois minutos depois o sr. Matsuno afastava a cadeira para ajudar a esposa a se sentar. Passada meia hora de conversa o telefone da entrada tocou. Já sem a mesma energia de algumas horas atrás, o sr. Matsuno foi atender.
- Alô, aqui é o Jyushimatsu... Mãe? Mãe, está bem?... O quê! O Totty está aí?... Sim... Sim... O Atsushi, o quê!? Na terça que vem?... Certo, entendi. Vou falar com ela. Se cuidem, até. - retornou o fone para o gancho e virou-se para a esposa.
Ela estava com uma expressão ansiosa. A colher descansando ao lado da tigela.
- Querido...
- O Atsushi foi morto num acidente de carro quando ia até outra cidade a negócios. - disse com uma seriedade pouco característica.
Os olhos da sra. Matsuno cresceram. O marido continuou:
- As preces serão na terça feira da semana que vem.
* * * * * *
Estranhamente a notícia não chocou tanto Osomatsu quanto deveria, sentiu-se aflito ao ver seu irmão menor em prantos, e só. Era indiferente quanto ao amigo dele, na verdade nunca entendera o que tinha levado Todomatsu a ir morar com outro cara. Talvez se tivesse sido pelo dinheiro, afinal Atsushi era um homem de alto nível, bem apessoado e sempre usando roupas de marca. Porém, tinha uma outra razão, uma que Osomatsu se recusava a enxergar. Podia até aceitar dois de seus irmãos morando juntos, mas não um com outro homem.
Quando soube que Todomatsu passaria alguns meses na casa dos pais confiou a si mesmo a responsabilidade de confortá-lo. Chegou a deixar de ir às apostas só para fazê-lo companhia. Dizem que sorrisos são infectantes, e não tardou para Todomatsu contraí-lo.
No dia do funeral, porém, a angústia voltara, e tudo que Osomatsu mais queria naquele momento era partir a lápide em duas. Espalhar aquele pó nojento no ar para que nunca mais voltasse. Quem aquele sujeito pensava que era para fazer um de seus irmãozinhos chorar? Apertava firme o punho junto ao corpo.
Na manhã seguinte deixou a casa bem cedo, antes do irmão sair para trabalhar, e foi até a praça vizinha. Parou diante da fonte. A água estava plácida, o sol aparecia aos poucos por sob nuvens claras tingindo o céu ao redor de rosa e vermelho. De quando em quando uma brisa fraca mexia os fios de seu cabelo. Ao fundo alguns corvos começavam a grasnar.
Osomatsu aproximou-se mais da fonte, afundou uma mão na água até ensopar a manga do casaco, levou-a até o chão, fechou-a num punho e depois a retornou para dentro do bolso.
- Hoje irei às corridas. - murmurou de si para si, deixando o lugar para trás.
* * * * * *
Perto do final de semana, durante uma das refeições, o sr. Matsuno deu a ideia de arrumarem o quarto do bebê. Como sempre acontecia, a energia do marido contagiou a esposa e ela recebeu a sugestão de braços abertos.
No sábado o casal saiu para fazer compras. O marido guiava a esposa com extrema cautela enquanto ela apoiava as duas mãos na barriga protegendo o bebê.
Primeiro compraram os itens básicos: carrinho, canguru, fraldas e chupetas. Depois passaram na loja de artigos para gestantes onde a esposa aproveitou para adquirir um novo livro de receitas. Por último foram à loja de brinquedos. Era a parte preferida da sra. Matsuno; muito a encantava o lado mais brincalhão do marido e sua paixão pelo esporte nacional. Enquanto descansava num banco, Jyushimatsu aparecia com um brinquedo atrás do outro, apresentando-os com truques novos, dizia "o que achou deste?" e a esposa sorria e respondia "esse está ótimo" ou "gostaria de ver o próximo, querido". Ao final estavam cansados, mas satisfeitos.
- Homura, querida, descanse mais um pouco no sofá, pode deixar o quarto por minha conta.
- Será uma surpresa? - disse com um tom mais travesso.
- Pode apostar!
Durante o tempo em que permaneceu deitada, olhando para o teto, uma sensação quente e reconfortante encheu seu peito. Jurava que nada daquilo acontecia de fato, que havia se atirado ao mar e estava tendo delírios. No dia que voltou para casa em Shirakawa tinha o mesmo sonho todas as noites. Ela via o homem que deixara em Tóquio carregando uma criança no colo. A aparência e o sexo dela variavam, mas a expressão de felicidade nunca mudava. Talvez ainda estivesse em Shirakawa.
Homura afagou carinhosamente a barriga, levava a mão de um lado ao outro, às vezes parecia sentir uma mãozinha pequenina segurando o seu dedo, ou um pezinho balançando no ar. Um choro dengoso era a melodia da cena. Seus lábios arquearam bem de leve. Era tudo real.
* * * * * *
Ele tinha apostado no número nove. Era no número nove. Vibrava o bilhete como uma bandeira e gritava o nome bem alto: Kaminari! Kaminari! Kaminari!
Entrara no Jóquei bem cedo e conseguira o lugar mais próximo das corridas, já tinha pedido três latas de cerveja e consumido as três.
- Vai, Kaminari! Seu molenga, vai! Apostei uma boa grana em você!
Os cavalos partiram a toda. Tirando dois ou três, as disputas eram acirradas e a arquibancada fazia barulho. Quem estivesse lá não seria capaz de manter conversa com o vizinho, nem mesmo de distinguir em qual cavalo apostara. O único som mais distinto era o do locutor nos alto-falantes.
- O número dois, Ouji, segue na dianteira. O número sete, Kiseki, tenta ultrapassá-lo, e agora avança em primeiro. Lá atrás vem Kaminari, e ele passa Kiseki. Kaminari está em primeiro!
- É isso! Vai! Vai!
Sem perceber, o homem avançava as escadas até o parapeito, no caminho esbarrou numa latinha jogada e bateu com força a cabeça na quina sendo levado com tudo de costas para o chão. Quando recobrou a consciência viu Ouji com a medalha de primeiro lugar e uma bela taça prateada sendo levantada pelo jóquei. Amaldiçoou ambos a meias palavras e foi andando até o posto de trocas esbarrando em qualquer um pelo caminho. Seu cavalo tinha pelo menos terminado em terceiro lugar, afinal.
Lá chegando entregou o bilhete para a moça do outro lado da janela de vidro. Com uma das mãos enfiada no bolso ficou a olhar o chão e tamborilar com os dedos da outra no balcão.
- Senhor Matsuno, o senhor ganhou o prêmio, meus parabéns! - anunciou a moça passando um cheque de duzentos mil ienes pela abertura. O homem a encarou com os olhos arregalados, depois mudou rapidamente para um sorriso confiante, de quem já esperava por isso. Aceitando a recompensa de muito bom grado retornou para casa.
"Vai ver o sistema estava com defeito e trocou os números. Bem, se não arrumaram não posso fazer nada" pensou enquanto subia as escadas até o segundo andar.
Novamente achava-se sozinho. Dessa vez tanto seus pais como seu irmão estavam fora dando o seu melhor na vida. Osomatsu estirou-se no sofá, espreguiçou-se bem até sentir o estalo dos ossos e tirou do bolso os duzentos mil em papel. Por um bom tempo ficou a contemplá-lo. Foi quando percebeu que puxara outro papel junto, deslizou-o por baixo e leu: "número dois, Ouji". Era o bilhete de apostas.
* * * * * *
Tinha acontecido dois meses depois.
A sra. Matsuno estava de licença há pelo menos seis semanas. O médico deixara claro que as contrações ocorreriam a qualquer momento e que não deveria hesitar em chamar uma ambulância caso sentisse alguma diferença.
Porém, esta veio desavisada e violenta, fazendo a dona de casa se debater no chão, curvando-se sobre si mesma e gritando desesperada pelo marido. Jyushimatsu foi socorrê-la no mesmo instante, já ligando para a emergência. A ambulância veio sem demora, colocaram-na numa maca e voaram até o pronto-socorro, as sirenes abrindo caminho no tráfego do horário de pico.
Durante todo o percurso, Jyushimatsu apertava com força a mão esquerda de sua mulher entre as suas; ela as sentia frias e úmidas.
— Tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem. - ele repetia. - Tudo vai ficar bem.
Os eventos seguintes passaram aos seus olhos como um filme em avanço. De repente lhe entregavam roupas de enfermeiro e uma máscara cirúrgica. De repente escutava os médicos dando assistência a sua mulher, os gritos assustadores de Homura, sua respiração rápida chegando a roçar cada fio de pelo do seu corpo.
— Força, vai! Vai! Respira! Inspira!
Pensava que podia aguentar tudo, mas diante daquela cena sentia-se encolhido num canto, seu estômago revirando e lhe dando pontadas frias. Tentou procurar Homura, um rosto doce e familiar, mas este estava tão contorcido que só lhe causava dor. Deslizou as costas pela parede indo até o chão.
Um dos médicos mantinha as pernas de sua mulher aberta enquanto outro puxava uma bola roxa viscosa, meio azulada, para fora do seu corpo. No meio de todo o processo uma enfermeira adentrou a sala e foi ter com o chefe, cochichou algo em seu ouvido e depois convidou Jyushimatsu a aguardar lá fora.
— Aceita um pouco de água? - disse a enfermeira.
Jyushimatsu só conseguiu assentir com a cabeça. Minutos depois ela voltou com um copo de plástico.
— Aqui. - disse, entregando-lhe o copo e sentando-se ao seu lado. - Não são todos que conseguem assistir um trabalho de parto até o fim.
Jyushimatsu tomou um bom gole da água.
— Ela vai ficar bem? - sua voz saiu rouca e ansiosa.
A enfermeira abaixou a cabeça e colocou uma mão no seu ombro dando um aperto bem forte.
— O senhor será pai de um menino saudável. - respondeu a enfermeira, mas não conseguiu terminar a frase.
O ar já tinha o odor de terra molhada e cinzas.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
Me pergunto se ficou claro o final deste capítulo... Para ser sincera eu já tinha nas linhas gerais o que iria acontecer, mas não fazia ideia de como executar.
Então, quatro palavras: sim, foi a Homura.
Sobre Shirakawa, é um pequeno headcanon que tenho de onde seria o vilarejo em que a Homura nasceu. Fica localizado na prefeitura de Gifu e é bem tradicional, com casas de telhado de palha, e muitos arrozais.