Strength escrita por R Kermillian


Capítulo 1
Capítulo Único.


Notas iniciais do capítulo

Eu não sei o que escrever aqui, confesso. Você me ajudou em momentos tão difíceis e me apoiou em horas tão caóticas que, às vezes, me pergunto o que fiz para te merecer, sério. Cê é uma das pessoas mais importantes do mundo para mim, e eu espero que saiba disso. Te lovo, minha marida, e te desejo tudo de melhor nesse mundo. Que todos os teus sonhos se realizem e que você continue sendo essa pessoa maravilhosa, que está sempre lá, mesmo não muito bem. Obrigada por me "escutar", por me mostrar o quanto sou importante e o quanto não preciso dos outros para me sentir bem comigo mesma. Obrigada por "puxar as minhas orelhas", por aturar as minhas lerdezas (sei que sou insuportável), e por confiar em mim, principalmente. Sei que você também já passou por coisas desagradáveis e que, muitas vezes, pensou em desistir, mas, é como diriam "vamos fazer o quê?", não é mesmo? Cada um tem o fardo do tamanho que pode carregar, pelo menos é assim que gosto de acreditar, embora nem sempre consiga. E com isso quero dizer o que você, com toda certeza, já percebeu. A gente pode sim vencer tudo isso, pode enfrentar tudo isso de cabeça erguida e sorrir, no final de tudo. Ser feliz, afinal. Obrigada por fazer parte da minha vida (eu sei, é estranho agradecer por isso), mas cê sabe a razão pelo qual o faço. Te amo, e feliz aniversário ❤❤



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Escuro.

Há muito tempo era isso tudo que eu via... Ou que acreditava ver. Minha visão foi roubada quando eu tinha apenas sete anos. Era pequena e por isso não lembro bem de como aconteceu, mas, segundo Molly, nasci com uma doença crônica a qual o nome me falta à memória. Ao que tudo indica era uma herança de família que, aparentemente, estava adormecida por muito tempo. Pelo menos até o meu nascimento. Agressiva e sem cura ela levou minha luz, e por isso vivo no breu. Sequer lembro-me da última vez que vi a luz do sol, ou mesmo da lua.

Molly descrevia a primeira como algo semelhante às chamas flamejantes de uma fogueira, e a segunda como sendo parecida com a prata: pálida e mórbida. Às vezes acho que ela se esquecia de minha deficiência, mas nunca disse nada. Ela era uma boa irmã, e sempre me ajudou a superar minhas dificuldades e adaptar-me da melhor forma possível. Mesmo após a morte de nossos pais ela permaneceu firme, fingindo não se abalar. Algo que sempre soube ser mentira. Se eu bem a conhecia, chorava sozinha.

Um barulho agudo rompeu meus pensamentos. Mas me recomponho ao lembrar-me de onde o som é originado: a porta.

— Bom dia!

A voz de Molly preencheu meus tímpanos quase ao mesmo tempo em que senti seus lábios tocarem minha bochecha. Sorri.

— Eu tenho uma surpresa para você. — a escutei novamente.

— Surpresa? — perguntei, levantando-me da cama.

O espaço era grande e quase todos os móveis estavam próximos as paredes, para facilitar minha locomoção. De certo modo eu era uma pessoa independente, pelo menos dentro do meu quarto.

— Sim. Mas não precisa se preocupar com isso agora. — sua voz era levemente cortada pelo barulho do que acreditei serem copos, devido ao retinir no fundo.

— O que está me escondendo? — retruquei um pouco exigente.

A falta de visão havia feito isso comigo. Era ruim o bastante não poder ver e tirar minhas próprias conclusões. Eu não precisava, também, da falta de respostas.

— A senhorita acordou desconfiada hoje, hein? — havia um fundo de humor em sua voz. — Vamos tomar café.

Franzi minha testa e a ouvi rir de mim. Ouvi seus passos virem em minha direção e sua mão segurou a minha, guiando-me pelo quarto.

Devido a falta de móveis no corredor, o percurso era fácil e sem grandes problemas. Talvez tivéssemos alguns quadros nas paredes, mas eu nunca saberia. Mesmo assim, Molly insistia em me guiar cautelosamente até o térreo. Segundo ela, um pouco de cautela nunca era demais, principalmente quando nos referíamos ao uso das escadas. Sempre me lembrava de mamãe e sua voz doce dizendo que tudo daria certo, ao ouví-la dizer tal coisa.

Eu sentia falta deles. Não eram o exemplo de casal perfeito, longe disso, mas sempre deram o melhor de si um para o outro, e para nós duas também. Tenho poucas lembranças de quando era pequena, mas uma das que ainda vagam em minha memória era de vê-los sorrindo, um para o outro. O olhar apaixonado de mamãe e o sorriso travesso de papai, estampado no rosto de ambos.

Após a descoberta da minha doença eles se afastaram, entraram em negação, como tio George gostava de dizer. Eles tentavam disfarçar evitando o assunto quando eu estava por perto. Em algumas situações, antes de perder por completo minha visão, eu os via discutindo e, em grande parte das vezes, por minha causa.

Eu me sentia um peso morto. Algo de que eles não precisavam e que carregaram por obrigação. E foi em uma dessas situações em que tentei fugir de casa, me afastar por completo deles. Mas não consegui. Molly impediu-me antes mesmo de atravessar o portão de casa.

Depois desse episódio desagradável, as discussões cessaram, e deram espaço para domingos e feriados recheados de alegria, pelo menos em sua maioria. E quando meu quadro se agravou realmente, lembro-me do que tio Fred disse-me, enquanto eu chorava: “você é uma ruivinha linda, Lucy. E te garanto que não precisaria enxergar para consegui atenção de alguém, tampouco um belo namorado.” Aquele foi o pior consolo que ouvi em toda minha vida, afinal de contas eu tinha pouco mais de seis anos. E mesmo que eu precisasse de mais que um humor sacana para entender o que ele quis dizer com aquilo, eu consegui. E sorri, ainda soluçando.

Meus pais, assim como todos os outros, me apoiaram e deram-me todo o suporte do qual precisei. Sempre me amaram acima de tudo.   

— Prontinho. Coma tudo. — Molly disse assim que me sentei à mesa, confortavelmente.

Senti o cheiro do pão invadir minhas narinas e levei minhas mãos até o prato, que Molly sempre posicionada estrategicamente na minha frente. Segurei a torrada entre meus dedos e levei até minha boca, dando uma gulosa mordida. Só então percebi que estava faminta. Realmente faminta.

— Que apetite! — ouvi uma risada abafada.

— É falta de educação falar de boca cheia. — reclamei.

Mesmo que não pudesse vê-la, sabia que estava com a boca cheia de pão. E, se eu bem a conhecia, estava me dando os ombros, pouco se importando.

— Tanto faz. — ela disse, forçando-me fazer uma careta ao perceber que estava certa. — Aqui seu suco. — ouvi o vidro bater contra a madeira.

— Não vai mesmo me contar que surpresa é essa? — minha língua formigava para saber. — Estou curiosa. — admitindo, tateei meu copo e o levei até meus lábios.

— Percebo. — ela brincou novamente, e eu suspirei. — Lorcan vem te encontrar.

Engasguei.

— Opa! Vejo que está animada para reencontrá-lo.

Engoli com dificuldade o pouco do suco que ainda estava em minha boca, e passei os dedos sobre os lábios, tentando limpar o líquido que havia escapado.

— Pensei que ele estivesse estudando fora. — tentei recompor-me do susto. — Era um intercâmbio, não era?

— Sim, é verdade. Mas ele voltou semana passada.

— Quando o encontrou? — eu quis saber. — Você vive dentro dessa casa comigo… — deixei o restante da frase no ar, culpada demais para continuar.

— Na volta do mercado, ontem. — ela disse — E você sabe que não é nenhum sacrifício para mim.

❈❇❈

Frustração.

Era isso que eu sentia ao precisar de Molly para uma tarefa tão simples como a de me arrumar. Havia conseguido me adaptar com o passar do tempo, mas as dificuldades para tal tarefa ainda existiam. E eu odiava isso.

Odiava não ser autossuficiente.

— Prontinho. — a voz animada de Molly ecoou.

Senti o peso em minha cabeça dissipar-se e agradeci mentalmente por isso. Já não aguentava mais os puxões e beliscões provocados por Molly, enquanto seus dedos deslizavam pelos meus fios embaralhados.

— Você está linda. — ela voltou a dizer.

Curvei meus lábios, embora não soubesse se era verdade, preferi acreditar nela.

— Não quero fazer isso. — minha insegurança falou mais alto, ao senti-la puxar a manga da jaqueta.

Estilo era importante, era isso que ela dizia.

— É claro que quer. — a ouvi rebater. — Ele esteve fora por tanto tempo, acredito que esteja ansioso para te reencontrar. E sei que quer isso, também.

Prendi meu lábio inferior entre meus dentes, desconfortável.

— Desculpe. — seu tom era carregado de arrependimento.

Apenas assenti, permitindo-me ficar em silêncio. Algo que ela pareceu compreender, afinal.

Terminando o que estava a fazer, ela me guiou novamente escadaria abaixo onde, minutos depois, a campainha foi tocada, fazendo-me estremecer dos pés a cabeça.

Era estranho demais sair com alguém que não fosse minha irmã, ou algum de nossos primos. Surreal demais reencontrar alguém de quem mal me lembro à fisionomia.

Era estranho demais ter um encontro — como Molly havia começado chamar isso, segundos antes.

Ouvi o ranger da porta e permaneci quieta, apertando e esfregando meus dedos uns nos outros. Os comprimentos vieram logo depois, acompanhados do que acreditei serem abraços e risos baixos.

— Lucy.

Mordi novamente meus lábios, apertando-os.

— Sou eu, Lorcan.

Sua voz me era familiar, mas diferente de alguma forma. Talvez mais aguda, não sabia ao certo.

Ao perceber que ele talvez esperasse uma resposta, afastei meus lábios e disse a única coisa que consegui:

— Oi. — minha voz soou baixa e fraca demais aos meus ouvidos. — Oi. — repeti firme, e claramente tremula.

— Oi. — ele repetiu. Seu tom carregado de humor. — Posso te fazer uma pergunta?

— Uma segunda. — respondi automaticamente.

— Uma Weasley, sem dúvida. — ele riu, e não consegui evitar um pequeno sorriso, ao perceber o que havia dito. — Eu queria saber se você aceita passar à tarde comigo.

Hesitei, encolhendo-me um pouco no sofá.

— É claro que ela quer. — Molly se prontificou. — Ela adoraria passar à tarde com você.

— Adoraria? — a questão saltou da minha boca, ficando no ar em seguida.

Talvez eu não fosse a única nervosa naquela sala. Molly também me parecia apreensiva pelo seu tom de voz, apesar de suas claras invertidas em querer me tirar de casa, pelo menos por uma tarde.

— Você quer? — o ouvi perguntar.

— C-claro. — gaguejei, mordendo, pela milésima vez, meus lábios.

❈❇❈

Constrangedor.

Essa era a palavra que definia o clima entre nos dois, desde que saímos de minha casa. O barulho do motor era a única coisa, além de minha consciência, que eu conseguia ouvir.

Talvez Molly estivesse certa e eu devesse me permitir ser livre por uma única tarde, devesse relaxar e aproveitar ao máximo as últimas horas do dia. Mas isso não seria possível. Não quando estava em um carro com um garoto que, definitivamente, eu mal conhecia. As vagas lembranças que tenho de quando éramos crianças, realmente, não eram o suficiente para que me sentisse confortável ao seu lado.

— Chegamos.

Assustei-me. O motor havia parado e, ao que parecia, Lorcan já havia deixado o veículo, e estava ao meu lado.

Eu realmente era uma “mestra” na arte de me perder em pensamentos.

Deixando minha mão direita escorregar do meu colo, tentei encontrar a porta, mas dedos longos seguraram meu pulso, delicadamente. Engoli em seco, tentando ignorar a sensação súbita de tê-lo tocado.

— Eu te ajudo. — ele ofereceu quase ao mesmo tempo em que sua palma tocou meu ombro.

As circunstâncias eram claras, até mesmo para mim: eu precisava de ajuda, e teria que aceitá-la de bom grado, pelo menos dessa vez. Algo que não ocorreu. Não havia um lado positivo em precisar de todos, para seja lá qual for a tarefa.

Mesmo assim movi meu corpo para o lado e coloquei minhas pernas sobre o suporte lateral do carro. As mãos de Lorcan seguraram meus pulsos e sua voz me disse para levantar com cuidado, evitando o atrito com a parte de cima. Obedeci e toquei o chão, erguendo a cabeça logo após.

— Pronto. — ouvi a porta bater, e dei um passo para o lado. — Vem comigo. — ele voltou a dizer.

Senti uma de suas mãos tocar minhas costas, guiando-me, e prendi a respiração ao sentir um leve arrepio percorrer a região. Era uma estranha sensação, apesar de agradável.

Vez ou outra ele segurava meu pulso e pedia-me para ter cuidado com algo que, de alguma forma, pudesse atrapalhar minha locomoção. Apenas segui suas instruções, sem dizer nada. Não havia muito que dizer, na verdade.

Mas seja lá qual tenha sido o caminho que percorremos, o mesmo havia sido tranquilo. Em certo ponto, ele sussurrou novamente que havíamos chegado, e isso me fez rir pelo nariz. Quantas vezes “chegaríamos”, afinal?

Durante alguns minutos ele ficou calado, o que me permitiu ouvir algo curioso: o ressoar do vento.

Era suave e agudo ao mesmo tempo, podendo ser gradualmente modificado de acordo com a posição do meu rosto, contra ou ao seu favor. Algo similar ao retinir suave do metal contra o ar: constante, presente, mas quase inaudível. Era uma das melhores coisas que já havia ouvido na vida; algo único, sem dúvidas.

— Onde estamos? — quis saber baixinho, sorrindo.

Era maravilho ouvir o silêncio, não queria perder de forma alguma aquela rara e precisa melodia.

— Diga-me você. — ele sussurrou novamente, sua voz parecendo um pouco mais rouca que o normal.

— Não sei como posso fazer isso. — meu tom permaneceu acanhado. — Sou cega, caso não lembre.

Respirei fundo, tentando dissipar toda a tristeza que ameaçava me consumir.

— Você que precisa esquecer. — franzi minha testa, concentrando-me em sua voz. — Vamos lá, não é assim tão difícil.

Permaneci quieta, ao ouvir seus passos barulhentos distanciando-se. Por um segundo, o medo de ficar sozinha me consumiu e meus lábios se afastaram prontos para pedir que ficasse, mas sua voz soou novamente, acalmando-me:

— É só concentrar-se.

— Me concentrar em quê? — perguntei confusa.

— Em tudo que está ao seu redor. — sua voz parecia ser trazida pelo vento.

— Onde você está? — questionei, apertando meus dedos.

— Relaxa, Lucy! Você só precisa se concentrar. Sei que consegue... — o interrompi nervosa.

— Como pode ter tanta certeza? Sequer sei do que está falando! — mordi meus lábios, sentindo um bolo formar-se em minha garganta.

— Primeiro a grama. — o sussurro novamente.

Não sei ao certo o porquê de tê-lo ouvido. Talvez tenha sido o meu lado medroso e inseguro ganhando vida própria.

Engoli em seco as lágrimas que ameaçavam sumir pela minha garganta, e pressionei com força minhas pálpebras, na tentativa de me acalmar.

Relaxa!”, sua voz ecoou em minha mente, encorajando-me.

Separei meus lábios e respirei fundo, procurando acalmar meu coração descompassado. Minhas unhas pararam de perfurar minhas palmas, e o vento soprou novamente em meu rosto.

Grama.

Mordi a lateral de meu lábio inferior e, mesmo receosa, me permitir imaginar tal coisa. Um campo extenso coberto pela grama verde abundante bem cuidada e aparada, que roçava meus tornozelos nus, fazendo o local formigar. Sorri.

— Agora um céu limpo e sem nuvens, embriagado em tons de laranja e rosa.

Suavizei minha expressão, rindo baixinho.

— Achei que fosse azul. — brinquei.

— Não no pôr-do-sol.

Ri novamente.

O tempo passava desesperadamente rápido quando a única coisa com que se distrai são os pensamentos. Imersos nele não existem outros mundos, apenas ele.

Livrei-me do pensamento, concentrando-me em suas palavras. A cada uma delas algo novo e maravilhoso era descoberto, e formado livremente em meu consciente.

Árvores robustas à esquerda, com grandes e aconchegantes sombras. Uma grama longa e espessa que, na verdade, tinha um tom de amarelo velho, e mesmo não sendo uma das mais bem cuidadas, continuava linda aos meus olhos; aos olhos do meu mundo. Um céu pintado em pinceladas firmes e encantadoramente reluzentes que se estendiam sobre a cidade, embriagando os olhos daqueles que se permitiam olhar para ele, com os últimos raios solares do dia.

E a melodia do vento.

— Não foi assim tão difícil, não é mesmo? — ouvi a voz de Lorcan ao meu lado, após minutos.

A essa altura já estávamos sentados em algum ponto daquele lugar, um ao lado do outro.

Neguei com a cabeça, permitindo-me ficar quieta, sorrindo e aproveitando a imagem em minha cabeça. Tudo aquilo não passava de uma imagem criada pela minha mente, e eu sabia disso, mas ela era tudo que eu tinha. Era tudo que eu poderia ter, então porque não usá-la?

Algo úmido escorregou pelo lado esquerdo do meu rosto, seguido de um pequeno fungado.

— Por que está chorando? — o ouvi perguntar.

Mordi meus lábios, confusa com toda a situação, mas mesmo assim o respondi:

— Essa é a primeira vez, em quase quatorze anos, que cheguei próxima da possibilidade de enxergar novamente. — minha voz era embargada e um pouco confusa para mim. — Nunca vi nada além da escuridão nesses anos e... — minha voz falhou, dando espaço para soluços e mais lágrimas.

Nunca achei que pudesse me sentir confortável para fazer tal coisa na frente de alguém. Mas lá estava eu: chorando na presença de um completo estranho, em parte, bem familiar.

— Posso te contar um segredo? — sua voz era firme e confiante, o que me fez assenti. — Essa escuridão que você diz existir aí dentro é como uma tela invertida: deveria ser branca, mas é negra. E sabe o que isso significa?

— O quê? — consegui perguntar.

— Significa que você precisa colori-la. Moldá-la a sua vontade.

— Não sei ao certo se entendi. — fui honesta, enquanto tentava segurar o choro.

— Você só precisa criar tudo àquilo que tiver vontade, tudo o que deseja mostrar para o mundo.

Eu ri sem graça, enxugando meu rosto.

— Por que acredita tanto em mim? — pressionei minha bochecha, descansando meu rosto na palma da mão. — Não nos vemos desde que tinha seis anos.

— Porque eu te conheço. — ele riu baixo — Apesar do tempo, sei que a garota brincalhona e de bem com a vida, que estava sempre com algum bichinho de estimação novo, aquela por quem me apaixonei...

Senti meu coração saltar contra minha caixa torácica, enquanto uma sensação desagradavelmente boa invadia o mesmo.

— Eu sei que ela ainda existe aí dentro. — consegui ouvir o final daquilo que ele falava.

— Não deveria ter tanta certeza. — minha voz soou terrivelmente firme, o que, em parte, me assustou. — Essa garotinha de quem fala teve sua visão removida e, de alguma forma, isso a matou. Não existe nada que posso me fazer voltar a ser ela, novamente. Não mais.

Encolhi meus ombros, desconfortável com tudo aquilo. Era estranho demais falar sobre tal coisa depois de tantos anos. Surreal ter a sensação de experimentar a escuridão da morte, todos os dias.

Repreendi um soluço que ameaçava saltar de meus lábios, e encolhi minhas pernas, levando-as de encontro ao meu peito, onde as apoiei.

— Me deixa te provar o contrário?

Seus dedos tocaram os meus e laçarem-se nos mesmos. Em qualquer outra situação eu recuaria, mas algo não me permitiu.

— Por quê? — perguntei baixinho, com medo da resposta.

— Porque eu quero ser sua tinta.

Franzi minha testa, confusa.

— Me deixa acabar com essa escuridão? — seus dedos acariciaram os meus. — Me deixa ser sua luz?

— Lorcan, você... — comecei gaguejar, e ele me rompeu.

— Eu quero pintar o teu mundo. Quero te mostrar que, mesmo cega, você pode ter um.

— Eu não posso fazer isso com você, Lorcan, é loucura! — tentei argumentar, insegura. Mas ele interveio novamente.

— Eu não estou pedindo isso. — sua voz havia se tornado mais baixa. — Não estou pedindo para ficar comigo, tampouco para que sejamos um casal. Faz muito tempo, e sei que não entende muito bem o porquê de eu estar aqui. Mas eu só quero te ensinar a viver novamente e, se me permitir, prometo não te decepcionar.

— Quatorze anos. — eu disse. — É esse o tempo em que não nos vemos. Então você volta e diz querer ser minha luz? — uma espécie de riso escapou de meus lábios. — Não faz sentido! Não quando tudo é automaticamente rotulado. Não quando a garota que afirmou amar já não enxerga, sequer existe. — despejei, não me importado com sua reação.

Essa era outra das consequências da doença: você não se importa, não se assusta mais com as possibilidades de magoar alguém com aquilo que acredita, literalmente.

— O que quer dizer? — ele perguntou, seu tom carregado de repreensão. — Que não podemos ser amigos? — senti algo estranho embargar sua voz, algo que não consegui distinguir.

— Que nada disso pode ser concreto. — neguei com a cabeça, afrouxando nossos dedos.

— Só te peço uma chance.

— E o que faria com ela?

— Tudo possível para que volte acreditar em si mesma. Que volte a viver, apesar de suas limitações. Não estou te exigindo nada, apenas uma única chance. Se te decepcionar, juro que não vou insistir novamete.

Suspirei pesadamente, exausta de todo o assunto. Pressionei minhas pálpebras tentando, de alguma forma, remover a nuvem nublada que havia possuído minha mente. Algo que, mesmo contra minha vontade, levou meus pensamentos até Molly. Ela que tanto se sacrificou por mim, durante toda a sua vida, como toda a minha família, mas ela principalmente.

Por um segundo me peguei pensando em tio Fred e no que ele havia me dito, alguns meses atrás. Mas, diferente da última vez, consegui criar uma imagem para ele, baseada em todas as coisas que ele já havia feito e me ensinado.

Ruivo, alto e magrelo, o vi segurando meus ombros e dizendo: “não importa! O importante é viver, aproveitar acima de tudo. Lembre-se que não é a única nessa situação. Lembre-se de seu tio que, mesmo com tantas boas piadas sobre orelhas, me veio com algo tão mesquinho e sem graça! Ele está perdendo a prática, está velho, realmente, mas isso não significa que deva fazer o mesmo, de forma alguma.”

Talvez tio Fred tivesse razão. Talvez eu devesse, pelo menos uma vez, me permitir viver sem me preocupar ou esperar por alguém para fazer algo. Como o próprio gostava de dizer: “as pessoas precisam sorrir um pouco”, e tal coisa sempre me fazia curvar os lábios, no maior e melhor sorriso que eu pudesse.

Meus dedos pressionaram os de Lorcan, os quais ainda seguravam minha mão, e eu me permiti aproveitar o calor de sua palma contra a minha. Uma sensação boa, tão boa que chegava a me assustar. Mas o que, afinal, eu poderia fazer? Jamais saberia se era ou não verdade o que ele dizia, se não aceitasse. E eu não mais viveria às sombras dos meus pensamentos.

E, depois de tantos anos, fico feliz em dizer que ele continua pintando em minha tela negra, a qual pertence unicamente a ele. O homem que me tirou do breu, e me devolveu a luz.




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Notas finais do capítulo

Desculpa qualquer erro, eu quase sempre deixo alguma coisa passar, mesmo revisando tantas e tantas vezes >.



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