Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 85
Dolores




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— Eu ia seguir o conselho dela e eu realmente só abriria essa carta após a semana de provas de Julho, mas devido às circunstâncias, acabei não me atrevendo a ler. Eu só tive coragem de abrir depois da formatura. Foi bem curioso, porque quando vi o seu nome aí, eu pensei em te mostrar na hora. Quando eu soube que você passou no vestibular, foi a primeira coisa que eu pensei. Achei que isso poderia te fazer se sentir melhor.

— Com relação a que, exatamente?

Ela respirou fundo. Ah, essa respiração! É a respiração que as pessoas dão antes de me darem liçõezinhas de moral.

— Dolores, eu sempre estive a par da sua relação com a Virgínia de ângulos que iam muito além da minha posição de diretora dessa escola. Eu não sei se você sabe, mas eu sou uma amiga pessoal da mãe da Virgínia e a conheço desde muito nova, antes mesmo de a Virgínia vir estudar aqui.

“Isso explica muito do seu favoritismo”, pensei.

— Eu sei que não foi fácil a convivência de vocês duas, assim como também sei que a morte da Virgínia não foi fácil pra você. Pode negar o quanto quiser, mas eu te observei, eu sei que você ficou abalada. E eu imagino como deva ser difícil ter esse peso nas costas, de ter sido uma pessoa que você não gostava e não ter feito as pazes antes de ela ter falecido.

Aposto que ela conversou com a Leda, e até mesmo com a Mariana, sobre a minha visita até a casa dela pra devolver os vídeos.

— O que eu pretendo, ou pretendia, te mostrando essa carta é te fazer perceber que ela estava disposta a deixar as diferenças pra trás e seguir em frente.

— Sinto muito, mas eu não vi nada disso escrito aí.

— Não? – ela encostou na cadeira, me encarando com muita atenção – O que você viu então?

Ela estava me intimando a falar o que tá entalado na minha garganta há algum tempo? Sério isso? Pois bem, ela que aguente então!

— Uma pessoa tentando ser a salvadora da pátria, como ela sempre fazia.

Foi como eu imaginei que seria: a diretora Luíza pareceu chocada, bem pensando “como ousa insultar a memória de uma falecida?”. Mas era tarde demais, o meu foda-se tava ligado como nunca antes.

— Não seja injusta, Dolores. Você viu o que ela escreveu aí, ela queria melhorar o relacionamento de todos na escola. Queria, inclusive, melhorar a sua estadia na escola. Logo a sua, a maior inimiga dela. Sério que você vai ser orgulhosa a ponto de negar isso?

— Muito conveniente, não é mesmo? Faltando um semestre pra acabar a escola ela querer me ajudar, hein?

O maxilar da diretora estava latejando, acho que eu a estava irritando, mas eu não podia ficar calada. Ela não podia fazer nada contra mim agora e então prossegui:

— Acho que ela só se esqueceu de comentar aqui que ela só percebeu que as pessoas praticavam bullying nessa escola quando a coisa começou atingir ela. Quando o tão maldito preconceito passou a afetar ela!

— Dolores, eu não sei como te ajudar então.

Não é como que se eu estivesse pedindo ajuda, mas não tinha necessidade de falar isso.

— A Leda bem que me disse que você tá criando empecilhos pra superar a sua rixa com ela, mas desse jeito não dá. Não há modos de provar que ela estava disposta a ficar de bem com você se a sua postura continuar assim.

— Ah é? – perguntei sarcástica – Ela tava disposta a ficar de bem comigo? Isso antes ou depois de eu ter quebrado o nariz dela quando ela beijou o meu namorado?

Por mais que a diretora Luíza soubesse da parte do nariz quebrado, deu pra notar que ela tava por fora do motivo da agressão. Isso é bom, pra ela entender de uma vez por todas que a Virgínia não era esse anjinho abençoado.

— Olha diretora Luíza, eu agradeço a preocupação e o empenho por tentar fazer com que eu sinta paz de espírito. É muito bonita a atenção que vocês tão me dando, mas não é assim que funciona. Não é desse jeito que vocês vão me consolar ou me fazer sentir menos culpa. Ou gostar dela.

— Ninguém tá querendo te fazer gostar dela.

— Não mesmo? Porque é o que parece quando vocês falam dela como que se ela fosse Jesus Cristo. Mas quer saber de uma coisa? Ela não era Jesus, ok? Essa Virgínia boazinha e sempre tão bem-intencionada não existia. E quer saber? Eu quase consigo enxergar as qualidades da Virgínia quando não tem ninguém buzinando no meu ouvido, mas toda vez que vocês a colocam num pedestal, eu só consigo voltar a sentir raiva e mais culpa.

— Culpa pelo que? É isso que queremos que você entenda: você não tem culpa alguma!

— Será que não tenho mesmo? Porque a todo momento vocês querem me convencer de que eu odiei uma pessoa sensacional… E não to querendo dizer que ela não poderia ser sensacional, só que ela só não era perfeita. Quando vocês falam assim da Virgínia, eu me sinto como um monstro, porque só um monstro poderia odiar uma pessoa perfeita. Se vocês a humanizassem mais, talvez eu me sentisse muito melhor.

— O que você quer que eu diga então?

Eu tava emocionada por ter a oportunidade de vomitar tudo o que eu tava matutando há dias:

— Que a Virgínia fez todas essas “maravilhas” como representante pra virar uma estrela na escola, por exemplo. E que, por exemplo, não brigamos tanto nesse ano, porque ela tava se esforçando pra isso, não porque superou a nossa rixa ou porque virou uma feminista que “não tem raiva de outras mulheres só porque são mulheres”, mas que ela fez isso pra ser superior a mim. Que, por exemplo, ela veio com esse papo de campanha anti-bullying, mas se esqueceu de dizer que ela própria praticou bullying comigo diversas vezes e quando não era ela, ela ria e aplaudia quem fazia. E que, por exemplo, morreu me odiando tanto quanto eu a odiei quando ela morreu, que provavelmente me odiaria se fosse eu no caixão e ela viva. Se vocês parassem de canonizar essa garota, talvez eu conseguisse me redimir da memória dela mais rápido, porque eu simplesmente não consigo me compadecer dessa menina inventada por vocês.

A diretora Luíza estava chocada com as minhas palavras e um tanto pálida, ela se mexeu desconfortável em sua cadeira, dizendo com os olhos baixos.

— Eu não havia pensado por esse lado.

— Não, ninguém pensa, porque parece que é pecado falar que uma pessoa que morreu não era perfeita. Mas não é pecado! E acho que de todas as pessoas que conviveram com ela, no fundo, eu sou a que entende melhor isso.


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