Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 79
Dolores




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Essa pergunta era mais complexa do que parecia.

— Fala, garota! – a Leda disse irritada pela minha demora em dizer qualquer coisa.

— Assim você vai assustar ela… – a Mariana encostou a cabeça no ombro da Leda e olhou pra mim, como uma cúmplice – Pode falar, não precisa ter medo.

Eu não tinha o que falar. Eu não queria.

— Você viu tudo? – dessa vez a Leda não parecia tão agressiva, ela parecia apreensiva.

Eu sabia que se eu continuasse sendo interrogada por muito mais tempo, eu choraria.

— Por quê? Por que assistir os vídeos? Era a intimidade dela. – a Leda também parecia querer chorar – Nem eu que sou a mãe cheguei a pensar em fazer algo do tipo, por que você se achou nesse direito?

O problema é que eu não sabia o porquê.

— Isso é meio doentio. É mórbido. Pra que? Isso te fez se sentir melhor?

— Eu me lembro do meu Ensino Médio… – a Mariana, antes de me deixar fazer qualquer tentativa de defesa, começou a falar – E que tinha um rapaz que eu odiava com toda a minha força! Sério, não tinha um só dia em que nós dois não nos implicávamos. Sabe quando um homem e uma mulher não se suportam e todo mundo fica insinuando que eles, no fundo, se gostam? Pois é, a nossa rixa era tão séria, que ninguém nem mesmo cogitava esse tipo de coisa. E era uma parada de louco, porque, assim, vivíamos em um constante pé de guerra, já que ninguém queria ficar por baixo, né? Quando um parecia dizer algo mais “fodão”, o outro fazia questão de dizer algo melhor e aí ficamos nisso até acabar a escola. Só que é isso, uma hora a escola acaba e, bom, eu passei no vestibular e fiquei sabendo que ele também. Eu nem pensei nessa possibilidade, até porque a Universidade é tão grande e nem mesmo éramos do mesmo curso, mas na segunda semana de aula, quando ainda estávamos perdidos naquele universo novo, nos esbarramos e como que se nunca tivéssemos nos odiado, fizemos companhia um pro outro e com o tempo naturalizamos isso, até que virou uma amizade. Volta e meia os tempos em que nos odiávamos é um assunto entre a gente ainda hoje em dia, só que diferente de antes, hoje em dia achamos muita graça dessa nossa relação. É como que se não fôssemos nós, porque não faz o menor sentido, através dos olhos de agora, termos sido inimigos um dia. Foi assim que deixamos pra trás essa nossa rixa e hoje somos grandes amigos. Inclusive foi através dele que conheci a Leda… -– ela levantou do ombro da namorada e sorriu pra ela – Sabe de quem eu to falando, num sabe?

— Do Marquinhos, claro.

— Sim. – então ela voltou a olhar pra mim – Foi genial a maneira como superamos essa rivalidade, mas mais genial do que fazer as pazes com alguém, é quando o acaso dá a chance pra que isso aconteça e você agarra. Eu posso estar errada, mas é assim que eu entendo o que você fez: você agarrou a única chance que teve de tentar se redimir. Você queria superar.

— Eu não… – me arrependi imediatamente por ter começado a falar e me calei logo em seguida.

— Pode falar, querida. Fica tranquila. – a Mariana disse enquanto acariciava o braço da Leda.

Neguei com a cabeça, olhando pro chão.

— Dolores… – a Leda respirou fundo e se esforçou ao máximo pra ser doce – Lola, eu preciso entender o que houve. Se as coisas são como a Mariana diz, olha, eu vou entender perfeitamente.

— É que… – eu engoli o nó na garganta e apertei os olhos, tentando ao máximo me fazer clara – Eu posso dizer que foi tudo isso que a Mariana disse e ter o seu perdão, Leda, mas na verdade eu nem sei se foi isso mesmo. Agora que você me disse… – e apontei pra Mariana – Faz muito sentido e eu posso até adotar isso como explicação de agora em diante, mas não tem como eu chegar e dizer “foi isso”, porque talvez não seja completamente sincero. Acho que eu só queria ver mesmo o que ela falava no próprio diário, de ter a chance de ver que ela poderia ser ridícula também e até rir da cara dela. Só que eu nem sei dizer se só isso conta como justificativa, porque eu sinceramente também queria saber quem ela era. Eu queria ter uma prova de que… – parei um instante, pra pensar se eu queria mesmo compartilhar isso – De que eu não fui injusta quando quebrei o nariz dela poucos dias antes de ela ter morrido. Eu queria me sentir menos culpada se descobrisse que ela não era tão melhor que eu como eu sempre acreditei enquanto ela tava aqui… – eu não precisava dizer em voz alta o quanto essa minha intenção falhou miseravelmente – Eu queria saber dos podres dela, saber coisas constrangedoras, coisas horríveis que ela podia pensar e dizer. Eu queria muito não…

— Não ter odiado uma boa pessoa?

A Leda me calou naquele instante e ela ficou constrangida.

— Eu não quero dizer com isso que a Virgínia era perfeita, se é que pareceu isso. Eu sei que ela conseguia ser bem difícil quando tava afim, mas é inegável que ela era uma pessoa distinta, que tinha uma boa cabeça, que pensava em coisas boas. Muito boas. Sabe, eu me esforcei muito pra dar uma boa educação pra minha filha e eu não hesito em dizer que tive muito sucesso com quem ela foi. A Virgínia, acima de tudo, era uma pessoa boa. Ela se preocupava com os outros e não precisava anunciar isso o tempo todo…

Eu acabo de dizer que não queria descobrir uma Virgínia tão melhor do que eu, mas aparentemente ninguém liga pra isso. O meu sangue ferveu e eu a respondi em tom malcriado:

— Acho que você não conhecia tão bem assim a sua filha.

A Leda soltou uma risada na defensiva.

— Já parou pra pensar que você que não a conhecia tão bem assim? Acha que porque assistiu o diário dela já sabe de tudo? – ela parecia estar me desafiando – Não se esqueça que você nunca foi amiga dela, nunca teve uma conversa franca em que ela compartilhasse segredos e pensamentos com você. Não seja precipitada em se deixar levar pelo jeito que ela te tratava… Aliás, existem coisas que você nem mesmo deve saber. Como, por exemplo, você nem deve ter se perguntado como que eu sei do seu apelido que eu disse agora pouco.

Ergui os ombros, meio indiferente, mas ela tava empenhada em me provar que eu tava errada sobre a sua filha.

— Não sei se você sabe, mas o nome da Virgínia na verdade é…

— Tábata. É, eu sei. E que ela era adotada.

— Pois é. Ela odiava esse nome. Eu nem sei se por ser o nome que os pais biológicos deram pra ela ou se ela realmente achava esse nome feio, mas ela queria trocar a qualquer custo e tava convicta de que trocaria assim que fizesse 18 anos.

Aproveitei a ocasião pra tirar uma curiosidade:

— De onde ela tirou o “Virgínia”?

— Quando estávamos conversando sobre seu novo nome, quando ela ainda era muito pequena, pouco depois de ela ter chegado aqui em casa, eu fiz algumas sugestões que, particularmente, eu mesma teria bastante orgulho de ter como nome.

— Quais?

— Nomes de mulheres notáveis: Cora, Simone, Dandara, Carolina…

— Mas ela ficou louca com Virgínia. - a Mariana disse sorrindo, com a voz meio embargada – Eu me lembro tão bem! Ela achou lindo, sem ter nem ideia de quem era.

— Pois é. Ela só veio conhecer a Virgínia Woolf no ano passado, quando ela me pediu umas recomendações de leituras, porque ela tava bastante empolgada com o feminismo. Não foi à toa o nome da chapa. E nada era à toa. Já se perguntou por que ela nunca te sacaneou por conta do seu nome?

Imediatamente eu tentei puxar na minha memória as vezes em que ela foi uma escrota comigo, eu tentei com força, mas não tinha nada que contradissesse o que a Leda acabou de dizer. É verdade, a Virgínia nunca me zoou por causa do meu nome… Mas também não era bem assim.

— Bom, ela vivia dizendo que meu apelido era idiota.

— Como eu disse, eu sei que a Virgínia poderia ser difícil.

— Eu concordo.

— Mas ela também sabia ser boa.

— Não sei se posso concordar com isso.

— Vai negar que ela, pelo menos, tentava ser boa?

Ergui os ombros, mais uma vez em sinal de indiferença.

— Dolores, o que adianta se dar ao trabalho de roubar o diário da minha filha, assistir tudo numa busca de se redimir, mas não abrir seu coração pra ouvir esse lado da Virgínia?

Eu não precisava ter essa conversa. Não com ela, não agora. Não adianta quantas vezes eu tente, eu não vou me redimir, eu preciso aceitar isso. Então me levantei, me despedi rapidamente e saí porta afora.


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