Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 75
Dolores




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Apesar do final dramático do último vídeo, restavam ainda quatro vídeos. Senti um aperto, mas certa empolgação por estar perto de concretizar essa tarefa. Cliquei no vídeo do dia 10 de Janeiro de 2015.

— Querido diário. - e terminou a frase com um olhar sereno direto pra câmera, pensativa; isso me constrangeu, era como que se ela estivesse olhando pra mim – Eu me sinto bem. Acho que fazia muito tempo que eu não dizia isso ou só teimava em admitir. Só que agora não há teimosia que me faça dizer o contrário, porque eu to bem de verdade.

“Eu tirei esses dias de férias pra pensar. Ainda tenho um bom tempo até voltar às aulas, só que eu to fazendo um trabalho intenso de reflexão e quero muito manter essa linha de pensamento, tem sido muito benéfico pro meu crescimento. A começar, eu to organizando as coisas que eu quero pra minha vida, pro meu futuro…”

Como não engolir seco a ouvir essas palavras?

— Finalmente decidi o que eu quero estudar na faculdade. Já fiz uma pesquisa sobre os cursos que mais têm a ver com o meu perfil e acabei me dando conta que Relações Internacionais tem tudo a ver comigo... Só que não, vamos com calma, porque só estou em Janeiro e tenho esse ano inteiro pra programar, porque os próximos meses também fazem parte do futuro e, no momento, eles são a minha maior preocupação e eu tenho coisas enormes em mente, coisas que farão desse ano o mais importante da minha vida escolar!

“Minha mãe tem sido um anjo nesse sentido, a gente tem passado muito mais tempo junta. O que é ótimo, porque ela me ensina tanto! Hoje eu vejo como sou privilegiada por ter uma mãe tão instruída e de como eu a admiro. Hoje eu vejo com maior clareza o tipo de criação que ela me proporciona, em como que ter uma mãe negra, lésbica e feminista diz muito sobre as coisas que eu penso, o que eu acho importante. Confesso que demorei um pouco pra entender muitas das coisas que ela me dizia, sendo meio mente fechada, mas agora as coisas que ela sempre tentou me dizer faz muito mais sentido. Acho que agora eu tenho maturidade pra entender as paradas que ela queria me ensinar desde muito cedo. Como, por exemplo, a implicância dela com o tempo e energia que eu gastava com o Lucca. Sabe, tinha vezes que eu pensava mesmo que ela implicava comigo porque eu sou hétero, mas, sério, viajei! Pra começar, nem mesmo era uma implicância, ela só queria que eu expandisse meus horizontes, pensasse em outras coisas também, não me martirizasse por algo que não havia motivo pra me martirizar. Ser uma adolescente sem namorado não é o fim do mundo, assim como ser uma mulher solteira, como ela mesma foi por muito tempo, não tem nada de errado... E o mais lindo é que ela me explicou que também querer namorar não tem nada de errado, eu só não posso colocar isso como único objetivo da minha vida, não depender dessa motivação pra seguir em frente, porque não depende só de mim e, bom, só eu estou por mim (ou estarei) na maior parte do tempo, né? Então eu tenho que ser minha maior prioridade”

Aquele momento em que a carapuça desconfortavelmente serviu em você também... É, a Leda é uma mulher muito inteligente, não tem como negar.

— Ela também me disse que os homens, por mais bacanas que possam parecer... Ou ser mesmo, ainda assim, cometem muitos deslizes e não estão isentos de serem machistas às vezes ou muitas vezes (espero que o Lucca seja só “às vezes”). Claro que ouvir isso me incomodou, até porque eu sabia muito bem a que ela tava se referindo, que no caso era de quando fui ignorada depois de ter tomado a atitude de dar um beijo nele. Ela disse que ele agiu como agiu por ter ficado intimidado, por eu ter sido uma mulher segura. E eu quero ser esse tipo de mulher sempre, que toma as rédeas da situação, que corre atrás do que quer e quando fiquei magoada por não ter sido correspondida, foi um baque muito grande, porque me afetou de um jeito que me deixou tão abatida, que as minhas notas caíram consideravelmente.

“Prestando atenção nas coisas que a minha mãe diz, não só pra mim, mas também nas rodas de conversa dela entre os amigos, eu comecei a pensar em como eu tenho agido por todo esse tempo. Daí agora eu paro pra pensar e, putz, como que eu coloquei tanto poder nas mãos de um homem? Os homens já têm isso tão naturalizado na cabeça deles, que não é pra menos que acham que são o único assunto entre nós quando as meninas estão reunidas; e o pior é quando tornamos verdadeira essa estatística, sabe? Nem mesmo se eu gostasse de mulheres, eu não posso fazer mais isso, não dá pra fazer que o mundo gire em volta de outra pessoa, porque me atrapalha. Eu sei que posso muito mais do que só isso.

Não sei dizer ao certo o porquê, mas essas palavras estão me causando desconforto... Qual é, porra nenhuma. Eu sei muito bem o porquê de estar me deixando desconfortável. Pois é.

— Falando em mulher, minha mãe também me explicou porque nunca alimentou minha rixa com a Dolores. Tipo, ela até ouvia as minhas histórias, soltava um risinho aqui e outro ali, mas de um modo bem geral, ela nunca foi de incentivar. Eu às vezes achava que era porque ela num tava do meu lado, mas a real é que o senso comum coloca o que? Que mulheres se odeiam, são rivais, que estão sempre em pé de guerra, estão sempre competindo. E é verdade? Não necessariamente… Bom, era o meu caso com a Dolores, só que isso não significa que todas as mulheres sejam assim. Só que aí a minha mãe diz que toda vez que eu fico deixando a picuinha entre nós duas aumentar, eu to contribuindo pra esse… Como foi que ela disse? – ela olhou pra cima, tentando se lembrar, até que estralou o dedo animada – Essa construção social! Que não passa de um estereótipo das mulheres. Daí ficar chamando ela de “louca”, de “histérica”, de “vadia” e muitos outros xingamentos, sem propósito algum, pelo simples fato de eu não ir com a cara dela, definitivamente não é nada legal e só dá espaço pra que os outros achem que nós somos tudo isso mesmo, porque é o tipo de “agrados” que falamos umas pras outras. E ok, eu não vou ser amiguinha da Dolores por causa disso agora, não precisa ser assim também, mas, afinal de contas, há necessidade de tanta briga? Eu num perdi mesmo? Ela num ficou com o Lucca? Ela tem alguma coisa que eu não tenho e ela ganhou, eu perdi. Pois que fique com o ganho dela pra lá e eu pra cá, até porque eu tenho grandes ambições pra esse ano! E eu juro que vou me controlar pra não alimentar mais essa briga, que acho que perdeu o propósito já tem um tempão...

Ao fundo do vídeo, ouvi um “Virgínia!” gritado.

— Que eu…

Mas ela foi chamada mais uma vez.

— Depois eu termino de contar. Minha mãe me chamou, acho que a Jéssica chegou aqui. Até mais. - e desligou a câmera.

Eu tava nervosa, ela disse que tinha grandes ambições pro ano e só têm mais três vídeos. E to arrepiada, talvez porque os vídeos estão terminando e eu sei o final dessa história, ou talvez porque ouvir a Virgínia falar todas essas coisas esteja despertando coisas em mim. Talvez esses vídeos da Virgínia exerçam o mesmo efeito em mim que os ensinamentos da Leda tiveram sobre ela. Não sei, talvez.


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