Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 74
Dolores




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Em um dado momento, os vídeos ganharam espaçamentos maiores entre um e outro. O conteúdo, pra variar, voltaram a ficar bem superficiais, muito embora eu acredite que isso tenha se dado muito mais por preguiça que por falta de assunto. Ela meio que prometia que deixaria pra contar determinadas coisas depois, depois, depois… Até que, imagino, ter passado tanto tempo, que ela deixava pra lá e dava prioridade pra novos acontecimentos.

Suas narrativas, de um modo bem geral, envolviam sempre os mesmos temas: ela se gabando de suas minúsculas conquistas, mas que aparentemente significavam muita coisa pra ela; sua irritação com as pessoas que nunca pareciam boas o suficiente pra ela (gostaria de saber o que essas pessoas, que juravam ser amigas dela, achariam se soubessem o que a Virgínia falava sobre elas); uma fixação meio doentia e triste pelo Lucca, que desde o primeiro beijo dela, nunca mais rolou nada e o seu ódio por mim. A ilustrar o vídeo do dia 28 de Maio.

— Querido diário, a Dolores comprovou o que eu já suspeitava: ela é completamente louca! Hoje, na aula da sonsa da Eliza, quando ela deu a hora da recreação depois dos 15 minutos miseráveis da aula bosta dela, todo mundo ficou fazendo bagunça, como de hábito. E juro, eu tava sentada com a Jéssica, conversando super de boa. E o pessoal, que num se aguenta, ficou provocando a Dolores, como sempre. Ela tava de cabeça baixa, acho que tentando chamar a atenção com aquele jeito dela de “sou tão triste, fiquem com pena de mim, por favor”… - disse com uma voz fina de chacota – E o pessoal ficou jogando bolinhas de papel no cabelo dela. Cara, eu nem curto esse tipo de provocação, mas eu nem falei nada também. Daí os meninos deixaram as bolinhas na minha mesa e ficaram pegando lá e jogando na histérica, e eu só deixei. Quando ela percebeu o que tavam fazendo, o que ela fez? Me derrubou da cadeira e começou a gritar que nem uma descontrolada! Pelo amor! – ela fazia caretas – A sorte dela é que eu não vou me dar ao luxo de levar outra suspensão, se não eu tinha quebrado aquela magrela que nem da outra vez.

“Não, não, não! Pior foi a professora Eliza, que claramente tem ela como queridinha e veio me acusar, acredita? Pois é, quando a gente chegou na direção, eu fiz ela aprender o que é bom pra tosse, porque a Luíza é a única pessoa que tem juízo naquela escola. Ai, nem quero mais falar sobre esse assunto. Até a próxima.”

Eu esperava bem mais, na verdade. Com certeza os primeiros vídeos do diário carregaram os melhores conteúdos. Eu já tava ficando bem entediada e a ponto de concluir que não teria mais nada de interessante dali em diante, até chegar ao vídeo do dia 5 de Dezembro de 2014. A Virgínia não tava sentada em frente a sua escrivaninha como sempre, ela tava deitada em sua cama, com os olhos muito vermelhos e inchados.

— Têm coisas que eu nem sei porque acontecem. Eu não merecia isso, não mesmo. - ela fungou, puxando o catarro – Poucas coisas me machucaram tanto na vida… E olha que eu fui jogada pra adoção! – sua boca tremia, sempre anunciando a volta de um choro convulsivo – Eu preferia mil vezes sofrer por qualquer outro motivo, mas isso não. Não! Eu aceito que qualquer outra pessoa conquiste as coisas que eu não consigo, mas a Dolores? A Dolores? Tinha que ser ela? O Lucca tinha mesmo que escolher a pessoa que eu mais odeio no mundo?! Na minha frente? – ela não conseguiu segurar e voltou a chorar, tremendo a imagem, já que a câmera tava na sua mão – Ainda bem que hoje foi o último dia de prova e eu vou fazer o que for possível pra tirar esse idiota de vez da minha cabeça… Engraçado que eu to chamando ele de idiota, mas a sensação que eu tenho é que a única idiota nessa história sou eu. Como eu pude ter acreditado que em algum mundo ele sentiria alguma coisa por mim? Só porque agora ele falava comigo na mesma frequência de sempre, não significava que ele estava se apaixonando. De onde eu tirei essa ideia? Ele gosta da Dolores desde sempre! Era tão óbvio. Tão. Óbvio. - ela secava as lágrimas que eventualmente caiam – Mais cedo ou mais tarde isso ia acontecer, só eu que ficava em estado de negação, achando que em alguma hora, num passe de mágica, o Lucca ia perceber que eu sou a pessoa certa pra ele, que somos parecidos e que gostamos das mesmas coisas.

De onde ela tirou isso? O Lucca e eu que gostávamos das mesmas coisas. Eu hein, garota iludida. 

— Mas pelo visto isso não era suficiente. Não sei o que ele procura, exatamente. Uma pessoa menos gorda? Então, no fim das contas, ele é igual a todos mesmo? É isso? Cara… - ela apertou os olhos com força – Eu to me sentindo um lixo. Eu queria mesmo é sair dessa escola, sair dessa cidade, fingir que o Lucca e a Dolores nunca existiram!

“E quer saber do que mais? Eu já to por aqui com a minha mãe também, com esse papo de que eu vivo em função de namoricos e 'desse tal de Lucca'. Acho bonito mesmo! E ela que vive pela aceitação da Mariana? Por que ela é melhor do que eu por isso? Se ela não entende os meus sentimentos pelo Lucca, então que não venha mais conversar comigo sobre isso, porque eu não to com a menor vontade de falar com ela. Nem com ela, nem com a Jaqueline. Ainda bem que ela tá de recesso, eu ia detestar ver aquela cara de julgamento, tentando me convencer que isso não é tão grande quanto parece. É grande sim, ok? Eu que sei o que eu to sentindo, não venham me falar que não é algo importante, porque é!

"Ainda bem que no meio disso tudo eu tenho a Jéssica. Ela é a única que me entende. Se não fosse ela, eu não sei o que seria de mim, na real. Ela que me tirou da escola quando os dois… Tavam… Quando eles… - ela desistiu de falar – Eu só não queria ter visto o que vi, quando o que eu mais queria era beijar o Lucca mais uma vez. E só avisando: se não tiver mais vídeo de agora em diante, é porque eu morri. Tchau."

Senti um arrepio quando a ouvi essa frase. Piadinha bem de mal gosto. E na boa, até que como uma adolescente-mais-madura-que-a-média, ela se saía como uma perfeita dramática, não?

Mas sim, 5 de Dezembro… Como esquecer? Foi o último dia de aula do ano passado.

Lucca e eu sempre fomos minimamente próximos. Poucas eram as pessoas que paravam pra perguntar como eu estava ou vinha puxar algum assunto aleatório, só pra me fazer sentir incluída. Claro que a nossa proximidade não atendeu as minhas expectativas por muito tempo, e isso é tão verdade, que devo até confessar que eu sempre me cocei de raiva quando via a proximidade dele com a Virgínia, porque parecia muito que rolava alguma coisa ali. Mas foi no último bimestre do ano passado, quando nós dois fizemos uma dupla pra um trabalho de História e tivemos a chance de nos aproximarmos de vez, que eu vi uma chama de esperança brotar entre nós dois, foi quando eu soube que tinha uma chance.

Nossas conversas saíram do “oi, tudo bem?” e passamos a nos conhecer melhor, passávamos horas conversando por redes sociais. Teve um dia, num sábado até, eu me lembro muito bem, em que ele perguntou se poderia me ligar, eu disse que "sim" mortinha de nervosismo e ficamos batendo papo de madrugada, numa conversa que me deixava impressionantemente à vontade, como eu me sentia com pouquíssimas pessoas.

Até que no dia da última prova do ano, antes de entrarmos de férias, o Lucca me entregou um bilhetinho pouco antes de tocar o sinal com a mensagem “quando acabar a prova, me espera na entrada do colégio, que eu quero te dar uma coisa”. Na hora eu tive as minhas suspeitas do que poderia ser, mas tentei não deixar que isso me afetasse e me impedisse de fazer a prova… Claro que não deu certo, mas como eu já tava passada, não tava mais nem aí. Eu só queria terminar a prova mesmo e ir pro nosso local de encontro.

— Você veio. - ele disse com os olhos brilhando assim que eu apareci.

— Por que eu não viria? – respondi com uma risada nervosa, ansiosa.

— Sei lá… Sei… Sei lá. - e secou a testa cheia de suor.

A minha vontade foi a de puxá-lo e tascar um beijo naquela hora, mas não, ele disse que tinha uma coisa pra me dar e eu estava ali por isso, eu podia esperar.

— E então? – apressei-o.

— Então… - ele soltou uma risada nervosa – Como hoje é o último dia de aula, eu pensei em te dar algo que fizesse você pensar em mim durante as férias… E claro, que eu também possa pensar em você.

— Mesmo? – meu coração batia tão forte nessa hora, que a sensação que eu tinha é que meu corpo ia pra frente e pra trás cada vez que meu coração ia e vinha – O que?

Com um sorriso educado, o Lucca colocou a mão atrás da minha orelha e, gentilmente, aproximou seu rosto e me deu um beijo. Pode não ter sido o primeiro da minha vida, mas era o primeiro em muito tempo e nada disso me importava, porque a coisa que eu mais esperei nos últimos 3 anos era que isso acontecesse. Acho que não consigo me lembrar de nada mais feliz que possa ter me acontecido na vida. Aparentemente esse não era um sentimento compartilhado, porque bem ao nosso lado devia estar passando a Virgínia, que viu o que acontecia e deve ter se sentido muito mal… Muito pior do que eu, quando soube que os dois também já se beijaram.

 


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