Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 72
Dolores




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2 de Abril.

— Querido diário, demorou, mas finalmente o Lucca voltou a agir normal comigo. Pensei que nunca mais nos falaríamos como antes… Tá, ainda não é como antes, só que sem dúvida já tá melhor do que quando ele tava me ignorando, era completamente horrível. A única coisa ruim nisso é que eu to sentindo que eu acertei na minha teoria em que ele se arrependeu do beijo e nem mesmo toca no assunto. Pior ainda: ele finge que nada aconteceu. Eu até tento falar da festa, mesmo que não citando nós dois, só que ele desconversa rapidinho. - ela suspira frustrada – Eu sei que foi só um beijo… Só que foi O beijo, entende? – ela ergueu os ombros – Não sei colocar em unidade de medida quão ruim é dizer isso, mas melhor assim do que nada.

Arrependimento não me soa tão ruim assim. Poderia ser pior, não? Ele poderia ser só mais um garoto babaca. 

17 de Abril.

— Querido diário, acho que to em crise. - ela revirou os olhos – Acho não, eu sei que to em crise. - suspirou – Eu to engordando. E sim, isso me incomoda. A Jaqueline perguntou porque eu não faço uma dieta então, já que me incomoda tanto. E eu disse que eu não conseguia, porque quando eu fico ansiosa, meio que ligo o foda-se e não paro de comer.

"Eu bem vi o que ela tentou fazer em seguida: tentar me fazer pensar maneiras de diminuir a minha ansiedade, mas eu não tava com saco pra isso, sinceramente. Um dos motivos que mais me deixa ansiosa é justamente o que eu faço quando sinto ansiedade. Engordar me incomoda muito. Minha mãe tava conversando comigo, meio que tentando me consolar, só que não sei… Ela veio com um papo de gordofobia. Por que eu me incomodo tanto com o meu peso, se a minha saúde sequer está tão ruim? E daí disse que eu me deixo levar por um padrão de beleza e blá-blá-blá… - ela puxou o ar chateada – Eu sei que não é um “blá-blá-blá”, mas é que eu num entendo no que essa conversa toda vai me ajudar, sabe? O que adianta ter toda essa explicação na ponta da língua, quando na verdade mesmo, o que eu mais gostaria era de ser magrinha e ter a vida fácil de quem é assim. E por mais que ninguém na escola me encha o saco por eu ser gorda, eu percebo que sou tratada diferente; não me chamam pra sair, não flertam comigo. Algo me diz que se eu fosse magra, talvez o Lucca me tratasse diferente, talvez ele tivesse se apaixonado por mim depois daquele beijo. E mais: podem não mexer comigo por conta do meu peso, mas eu vejo uma galera que não é deixada em paz por conta desse mesmo motivo. Eu sei que a chacota não é comigo, mas poderia ser."

Foram diversas as vezes em que eu cansei de pensar que a Virgínia tirava de letra a vida escolar, tanto, que essa era uma constatação que me deixava bastante irritada. Sempre rodeada de amigos, sempre rindo, sempre tirando onda com os outros, não tinha nem como ter outra impressão sobre a Virgínia. Quem poderia dizer que ela gastava tanto tempo pensando nessas coisas? Que era tão frustrada? Tão frustrada quanto eu, que se brincar, nessa mesma época ficava me lamentando aqui em casa por ser tão magra, por ter um corpo tão longe do que os garotos querem. Eu me lembro com certa clareza de ter desejado ter o corpo da Virgínia, que “por mais que ela seja gorda e não tenha namorado, pelo menos ela tem amigos”. Eu trocaria de corpo com ela se fosse possível, acreditando que facilitaria minha vida, que talvez ser gordinha fosse mais fácil que ser magricela. Corpo? Por favor! Quantas vezes eu não desejei ter a vida da Virgínia? E agora só fico me perguntando se eu sustentaria suas crises. Acho que tudo isso serve pra mostrar que ninguém sabe nada sobre ninguém, porque claramente tudo isso que eu achava sobre ela não batia em nada com o que a própria Virgínia achava dela mesma.

E “gordofobia”? Cara, eu nem sabia que isso existia! Quer dizer, eu sabia que era possível discriminar os outros por conta de peso e, inclusive, eu assumo minha parcela de culpa nesse tipo de discriminação. Mas fobia? Eu não gostaria de me classificar nessa categoria, mas acho que não tem muito pra onde fugir, pois eu me lembro das coisas que eu dizia pra Virgínia, no intenção de ser cruel, de ferir. Pelo que estou lendo aqui na internet, esse é um dos tipos de preconceito mais complexos, porque todas as outras categorias minoritárias o praticam, esquecendo-se de que eles próprios também são alvos de perseguição e escrotice. Todo mundo pega no pé de pessoas gordas. A gente acha que só tá falando essas coisas pra se defender, mas olha só a proporção que essa besteira toma! E, sinceramente, eu não me orgulho de ter contribuído pra isso. Não mesmo.

Se eu parar pra pensar nas coisas que eu costumava dizer pra Virgínia (antes de saber que ela era bulímica) e mesmo quando eu parei de dizer, as coisas que eu pensava dela, em como que eu me aliviava com frases como “ainda bem que ela é gorda, assim o Lucca nem vai dar bola”, tudo isso prova que eu não sou tranquila com essa questão. Fico me perguntando se o Lucca é e se esse foi o motivo pra ele não ter dado moral pra Virgínia. Espero que não, espero que ele seja mais evoluído do que eu, de verdade.

Só que, espera! Pra me defender, nem que seja um pouquinho, acho que se eu soubesse que tudo isso configura uma gordofobia, talvez eu teria evitado esse comportamento. Não gostaria que ninguém fosse fóbico comigo por eu ser magra ou vesga, então não faz sentido tratar assim aos outros.

E pensar que eu já me achava o máximo por ser minimamente bem resolvida com questões raciais e de orientação sexual, que nem me dei conta de que existem tantas outras maneiras de ser uma pessoa ruim… E não me dei conta disso antes exatamente por quê? É isso que não entendo. As pessoas foram escrotas comigo por muitas outras razões que não por uma questão racial ou de orientação sexual, devia ser o mínimo eu notar que há outros problemas no mundo e não compactuar. Cara, que merda. Sério, é uma merda perceber que você pode ter sido injusto e cruel com os outros, quando sua maior queixa sobre o mundo é que as pessoas são injustas e cruéis com você mesmo. Eu espero muito que a Virgínia não tenha morrido pensando que meu problema com ela era por conta de seu peso, porque não era, embora muitas vezes eu tenha feito parecer que sim.


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