A maioria dos vídeos desse diário são bem dispensáveis. A Virgínia era bem mais bobinha do que ela pensava. Ela gastava boa parte do tempo falando de conflitinhos idiotas entre ela e os amigos, manifestava sua raiva com relação a notas, bate boca com alguns professores ou colegas. Claro, ela não perdia a oportunidade pra manifestar sua idolatria pelo Lucca e o quanto me odiava. Tudo isso em vídeos curtinhos, de, no máximo, estourando, 3 minutos. Era tudo muito cansativo e eu ainda nem tinha chegado à metade, mas pensei bem e lembrei do grande achado que foram os vídeos em que ela revelou que na verdade se chama Tábata e é adotada.

Mas, no grosso, a maior parte dos vídeos que assisti até então se assemelhavam a esse do dia 15 de Agosto de 2012:

— Querido diário, eu to puta. Quem a Dolores pensa que é? Aquela tripa seca! Me chamar de gorda? Eu perdi 5 kg, ok? E é super visível, todo mundo comenta! Que ódio! – ela gritou agudamente – Tomara que aquela vesga continue se fodendo naquela escola, eu acho é pouco.

Por essas e outras que me batia uma puta vontade de desistir de ver esses vídeos, devolver essas porcarias de uma vez e mandar a memória da Virgínia pro quinto dos infernos. Só que eu respirava fundo, pesava na balança o quanto eu poderia me arrepender por devolver esses vídeos sem ter assistido, julgando que eu nunca mais teria contato com eles novamente. Então eu parava e pensava melhor, sempre concluindo que poderiam ter mais revelações bombásticas que poderiam fazer valer a pena seguir assistindo toda essa baboseira.

Foi graças a esse meu pensamento que cheguei ao vídeo do dia 11 de Setembro, um dia depois do inesquecível 10 de Setembro de 2012.

A boca da Virgínia estava comprimida, seu rosto com alguns curativos e sua expressão era de muito ódio. Mesmo que ela estivesse usando uma touca – que ela usou por muito tempo ainda –, dava pra notar que seu cabelo estava mais ralo. Ah sim, faz todo o sentido. Nesse dia, aqui em casa, eu tava com a perna engessada.

— Como eu odeio a Dolores! – ela fungou – Eu sei que eu já disse isso um milhão de vezes aqui e em todo lugar. Mas eu digo e repito: eu odeio a Dolores, eu odeio a Dolores, EU ODEIO A DOLORES! – gritou ainda mais alto – Se eu pudesse matar essa nojenta, eu matava! – seus olhos marejaram – Porque ela não vale nada. Num vale o esgoto da casa dela! – uma lágrima pingou e ela a secou com tanta raiva, que deu um tapa na própria cara; foi meio engraçado até – Se não fosse por aquela idiota, eu teria conseguido tudo o que eu queria: eu teria ficado magra, eu teria conseguido conquistar o Lucca e teria ficado com ele. Mas ela estragou tudo! EU ODEIO ESSA MENINA! – dessa vez ela não conseguiu conter o choro e com os dois punhos apertando os olhos, a Virgínia controlou o pranto pra continuar narrando o acontecido – É óbvio que ela tava odiando me ver emagrecer. Todo mundo reparou, todo mundo comentou que eu tava ficando mais bonita. E óbvio que era verdade e a Dolores odiou isso, porque ela não ia mais poder me chamar de gorda a torto e à direita.

“Foi assim: ontem o Lucca e eu fizemos um trabalho em grupo super legal, porque a gente tava conversando de um jeito que nunca conversamos antes. É sério, eu poderia jurar que ele tava dando em cima de mim! Mas aí bateu o sinal do intervalo e assim que eu lanchei, eu fui ao banheiro, como de hábito, e depois que eu saí do boxe, a Dolores tava lá! Ela só podia estar me vigiando, aquela idiota! E qual foi a primeira reação dela? – a Virgínia deu um murro na sua escrivaninha, quase derrubando a câmera – Contar direto pro Lucca! Argh!! – duas lágrimas pingaram em suas bochechas e escorreram, mas dessa vez ela não se deu ao trabalho de enxugá-las – Na mesma hora o Lucca veio com o rosto todo preocupado pro meu lado e perguntou se era verdade que eu tava vomitando. Nessa hora eu nem pensei que ia dar merda e a primeira coisa que me deu vontade foi a de dar uma rasteira naquela magrela e bater nela até que ela perdesse a consciência!

“A parte da rasteira deu certo, né? E assim que a Dolores caiu, eu subi naquela imbecil e comecei a chacoalhar aquele corpo esquelético. Ela gritava e tentava me tirar de cima dela. Ficou me arranhando e puxando meu cabelo, arrancando boa parte dele… É até por isso que eu to de touca, porque agora eu tenho umas falhas no meu cabelo. - mais uma vez seus olhos marejaram, mas assim que ela engoliu em seco, ela controlou o choro – Os inspetores chegaram e nos separaram. Quando foram colocar a Dolores em pé, ela gritou ainda mais alto e disse que eu tinha quebrado a perna dela. Na hora eu pensei 'bem feito', mas no fim das contas ela só tinha deslocado o joelho mesmo. Só num fiquei com a consciência pesada, porque ela merecia.

“A gente nem chegou a resolver isso na escola ontem, porque como todo mundo pensava que a Dolores tava com a perna quebrada de verdade, já que ela fez o maior escândalo, levaram a gente direto pro hospital. Eu só tava com uns cortes no rosto e fizeram uns curativos toscos, só pra preencherem o tempo enquanto a minha mãe não chegava. Assim que ela chegou, ela veio logo pro meu lado, perguntar o que foi e aí a Luíza contou o que havia entendido que rolou.

"Na hora, parecia que a minha mãe tava do meu lado. Posso estar enganada, mas acho que até a mãe da Dolores ficou do meu lado, mas só num falou nada porque a 'coitadinha' saiu com a perna engessada. Ai, ai, ai… Tadinha! – disse sarcástica – E o ridículo do pai dela ficou tentando caçar briga comigo e com a minha mãe, mas a minha mãe rapidinho colocou aquele velho no lugar dele. E hoje, quando fomos pra diretoria resolver esse assunto, claro que me responsabilizaram pelos danos físicos gerados, já que eu iniciei a briga e tudo. Só que a Luíza não deixou de ressaltar que, além de a Dolores ter me agredido também, ainda me expôs na frente dos colegas com um assunto delicado. Foi aí que eu a odiei mais ainda, porque agora vão ficar me tratando que nem uma doente. A minha mãe mesmo voltou a fazer terapia, bem pra saber como lidar comigo de agora em diante. E eu to odiando tudo isso, odiando a situação, odiando estar suspensa e odiando que o Lucca saiba de tudo isso. A Dolores deu um golpe muito, muito baixo e ainda vai sair como a coitadinha, só porque tá com a perna engessada agora.”

Como a Virgínia tava enganada! Meu Deus, se tem uma coisa que eu não me senti nesse dia foi como uma coitada. 

— E o Lucca vai me achar uma nojenta e agressiva. Justo quando parecia que tava rolando um climinha, a Dolores veio e estragou tudo. – ela cruzou os braços, emburrada – E não bastando, quando a minha mãe veio conversar comigo, perguntar por quanto tempo eu já tava fazendo isso, eu acabei falando tudo de uma vez: disse que eu tava decidida a conquistar o Lucca, nem que pra isso eu tivesse de emagrecer 15 quilos e que eu já tinha perdido 7, mas que assim que eu chegasse a perder os 15, eu pararia.

"Eu, que pensava que a minha mãe tava do meu lado, me enganei feio, porque ela acabou me dando um esporro, dizendo que eu tava colocando a minha vida em risco por causa de homem e que isso era burrice, que ela não tinha me criado assim. Olha, sinceramente, eu não esperava isso dela, até porque eu imaginei que ela soubesse que não se trata só disso. Tá que ela sabe que eu me sinto mal por ser a única das minhas amigas que ainda não beijou, por mais que ela tente me consolar dizendo que existem coisas mais importantes que isso, só que ela também sabe o apuro que eu passo toda vez que me peso na balança e sempre to acima do peso. Ela sabe quantas vezes os médicos disseram que eu tenho que perder peso, porque eu to sempre pré-alguma-coisa. Já teve a ameaça de diabetes, de hipertensão, disso e daquilo. E vem me chamar de fútil? Pelo amor de Deus! 'Ah, mas você pode perder peso de um jeito saudável' - ela afinou a voz exageradamente, como que se tivesse imitando a mãe – Porra nenhuma! Ela sabe que comigo não dá certo! Mas quer saber também? Foda-se tudo! Quero mais é que se exploda também!

E acabou o vídeo.

E pensar que pra mim, na época, tudo se tratava somente de mais um episódio de Dolores versus Virgínia, só que eu tava muito enganada. 

Sim, eu contei pro Lucca na maldade, mas eu não tava seguindo e nem vigiando a Virgínia. Acontece que quando eu fui ao banheiro pra lavar as mãos, eu ouvi sim alguém tossindo e vomitando. Fiquei esperando do lado de fora do box pra saber quem era e perguntar se tava tudo bem, só que quando vi que era a Virgínia, o meu primeiro pensando foi de que eu tinha uma boa história pra fazer a caveira dela pro Lucca – porque como a própria Virgínia disse no vídeo, naquele dia, os dois estavam todos cheios de nhem-nhem-nhem um com o outro e eu tava morrendo de ciúme. Na hora nem se passou pela minha cabeça que podia ser algo sério. Foi depois do período de suspensão, quando a diretora Luíza me chamou pra conversar a sós, que soube da gravidade do problema da Virgínia.

Ela era bulímica desde o início daquele ano e, por mais que eu tivesse trazido à tona essa informação de um jeito indelicado, foi graças a mim que a Leda teve conhecimento disso e pôde tomar as devidas providências pra um tratamento. No fundo, o que me consolou é que, mesmo que de um jeito torto, eu ajudei. 

— Eu só peço que, por favor, você não comente sobre isso com os seus colegas. - a diretora Luíza é muito competente no que faz, mas sempre a achei ainda mais quando se tratava da Virgínia. Só que isso nunca me impediu de respeitar as coisas que ela falava e seguir os seus conselhos, então não falei disso com ninguém.

Tanto, que nunca mais chamei a Virgínia de “gorda” e até o final daquele ano, em 2012, ela e eu não tivemos outro conflito, nem grande e nem pequeno. Esse distanciamento, como era de se esperar, serviu pra que eu já não levasse mais tão a sério o problema dela e nem mesmo a enxergasse como alguém que tinha uma doença no ano seguinte, quando fomos pra 1ª série do Ensino Médio. Até a própria Virgínia parecia ter se esquecido do episódio e voltamos a nos tratar como sempre nos tratamos: mal.