Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 66
Dolores




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Ai, ai, formaturas. Por que as pessoas fazem tanta questão desse ritual? Até o Hino Nacional cantamos! É tudo tão chato e cafona. Fomos chamados na frente de todo mundo pra recebermos o canudo e tirarmos foto com a diretora, a coordenadora e o professor eleito mestre de cerimônia, como que se eles gostassem e estivessem mesmo orgulhosos de todos nós. Depois teve o discurso piegas da oradora, que foi uma aleatória qualquer, que disse coisas muito mais voltadas pra turma de 3º ano dela, foi uma droga e eu só conseguia imaginar como teria sido o discurso da Virgínia… Ou ainda resta dúvidas de que se ela tivesse viva, ela não seria a oradora?

— Lindas as suas palavras, Amanda. - o professor disse e logo passou para o próximo item do roteiro – E agora, chamo ao palco a diretora Luíza Martins.

Os aplausos acompanharam a diretora até o momento em que ela chegou ao púlpito.

— Boa noite todo mundo. - ela disse levando um sorriso simpático no rosto e todos a responderam – Hoje é um dia especial: nossas crianças estão deixando de ser crianças. E digo “crianças”, porque muitos desses rostinhos que vejo aqui… - e ela se virou para nós – Conheço desde quando eles ainda nem sabiam ler. E apesar de hoje ser um dia de celebração, como não poderia ser diferente, hoje também é um dia de lamento.

Qualquer sinal de murmúrios que rondavam o auditório cessou imediatamente. Imagino que todos adivinharam sobre o que – ou sobre quem – a diretora Luíza falaria.

— Esse foi um ano de grande perda e digo isso, não como diretora dessa escola apenas, mas como Luíza, mãe e mulher, que viu partir uma menina que tinha tudo para se tornar uma adulta ilustre.

Uma fotografia relativamente recente da Virgínia foi projetada no fundo do palco. Relativamente recente, porque ela estava bastante magra quando comparada aos dias em que ela tava perto de morrer. Olhei pros lados e o meu sentimento foi de revolta por ver todos aqueles semblantes de tristeza. Uma tristeza que não vi quando voltamos depois das férias de Julho. E uma tristeza que não vai impedir ninguém de viajar na semana que vem, com o dinheiro que a Virgínia juntou!

— Virgínia era uma figura interessantíssima, muito forte e persistente. Nesse ano, quando ela conseguiu se eleger como representante de turma, não me lembro de um só dia em que ela não esteve na minha sala, reivindicando melhorias e dando ideias de como alcançar essas melhorias. Isso eu nunca vou me esquecer. Às vezes ela ia a minha sala só pra me dar “bom dia” e isso eu também não vou esquecer. “Esquecimento” não é uma palavra que combina com ela. Muito espirituosa, muito extrovertida. E também muito difícil… - ela soltou uma risada nostálgica – Estou certa de que a Virgínia marcou cada pessoa dessa escola, partindo dos alunos até o funcionário mais invisível aos olhos da maioria. Ela era assim, preocupava-se com todo mundo. Se existiu uma pessoa que merecia estar aqui, hoje, essa pessoa era a Virgínia. Uma salva de palmas, por favor.

As palmas foram enérgicas e longas; algumas pessoas até ficaram em pé. Mas quando cessou, a diretora Luíza retomou a fala:

— E se ela não pode estar aqui de corpo físico, fiz questão de que sua memória estivesse. Chamo ao palco minha queridíssima amiga Leda Lima de Souza, mãe da Virgínia.

A Leda também foi acompanhada por palmas até chegar ao púlpito e cumprimentar a diretora Luíza, dando-lhe um beijinho no rosto e ajeitando o microfone logo em seguida.

— Boa noite, formandos. Professores, familiares. - ela fez uma pausa pra limpar a garganta - Confesso que quando recebi o convite da diretora Luíza para vir a essa cerimônia, minha primeira reação foi a de me perguntar se ela havia enlouquecido. Como assim? Ela queria me deprimir? Jogar na minha cara que tantos pais assistiam seus filhos tornarem-se adultos e eu não? – ela fez uma pausa e limpou a garganta mais uma vez – Claro que eu estava sendo injusta com a Luíza, mas não foi de imediato que entendi isso. Tive que visitar as minhas lembranças com a minha filha e pela primeira vez, desde quando a socorri naquela noite horrível, voltei a entrar em seu quarto e me permiti mergulhar em memórias.

Senti um frio na barriga. “Relaxa”, pensei comigo, “até parece que ela vai ter percebido alguma coisa de diferente”.

— A Virgínia sempre foi uma pessoa entusiasmada, destemida e, principalmente, ambiciosa. Ela sempre desejou ser grande e, até o último momento, eu sei que ela fez o que estava a seu alcance pra tornar isso possível. Sua necessidade de ser importante não era um fim em si mesmo, mas uma vontade de inspirar os outros a serem também empolgados, destemidos e ambiciosos. Ela não se envergonhava de ser assim e não via razões para combater essas características. Pelo contrário: ela achava que deveria incentivar e gostava de ser incentivada. Foi só quando me lembrei de tudo isso que me dei conta que esteja onde estiver, a minha filha estava decepcionada com a sua mãe, que perdeu nesses últimos meses o entusiasmo, o destemor e a ambição.

“Soube também que a diretora Luíza conhecia muito bem a Virgínia. Nesse ponto, até melhor que eu. Era disso que se tratava o convite pra essa cerimônia: trata-se de inspiração, de coragem, de perseverança e de muita, muita empolgação. Alunos… - ela virou o rosto em nossa direção – Hoje é só o começo. Suas verdades e suas certezas, acreditem: vão mudar uma, duas, três… Um milhão de vezes! Isso nunca vai parar, portanto não percam o entusiasmo quando nada fizer sentido; não deixem de perseverar quando o sentido parecer instável, tenham coragem de serem o que quiserem ser e queiram sempre ser a inspiração de alguém. Sei que nesse final de semana será a prova de vestibular e torço com toda a minha força pelo sucesso de vocês, assim como eu torceria pela minha própria filha, mas ela não está mais aqui, então deposito minha fé na juventude em vocês. Não duvidem do potencial que vocês têm, não se sintam pequenos, porque todo mundo aqui é alvo de admiração. Lembrem-se disso e sejam sempre bons naquilo que julgarem importante, pois será a vocês que seus pais, amigos e todas as pessoas de suas vidas vão recorrer em momentos de dificuldade, porque as pessoas são inspiradoras quando mais se precisam delas. Obrigada.

Os aplausos contemplavam as bonitas palavras da Leda. Bonitas, sim, porém não correspondiam com a verdade. Não totalmente. Nem as dela e nem as da diretora Luíza. A Virgínia não era esse poço de bondade que tentaram fazer parecer. A Virgínia sabia ser cruel muitas das vezes. Ela sabia magoar os outros, assim como me magoou em tantas ocasiões.

Ou vão querer me convencer de que quando estávamos no 5º ano, quando eu ainda não tinha renovado totalmente meu guarda-roupa e usava algumas roupas muito antigas, inclusive calcinhas, e eu cometi o erro de usar uma calcinha de babado pra ir à escola e me sentei no chão, lá na frente da sala, pra copiar o texto da lousa que eu não conseguia enxergar do meu lugar por conta do reflexo e a Virgínia, sem nenhuma provocação prévia que a instigasse a essa maldade na hora, apontou e falou o mais alto que pôde:

— Olha a calcinha de babadinho da Dolores!

Todo mundo riu de mim. Eu levantei a minha calça imediatamente, envergonhada, sem nem desconfiar que minha calcinha estava à mostra e quando cheguei em casa, briguei feio com a minha mãe por não me comprar calcinhas novas. Tudo porque eu tava morta de vergonha, porque a Virgínia fez isso pelo simples prazer de me ver constrangida. Essa não foi a última vez que isso aconteceu; na verdade, ela gostava bastante de me ver corar na frente de pessoas que apontavam e riam de mim por causa de algo que ela disse.

Mas pra que eu me gastaria contando esse tipo de história e tentando desmanchar esses discursos? Em troca de que, afinal?


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