Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 62
Dolores




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Como não poderia ser diferente, eu estava curiosa e com boa vontade de seguir assistindo aos vídeos. Cliquei no do dia 24 de Março de 2012 e levei um susto quando vi que ela não tava sozinha.

— Tá gravando. – ela avisou à mãe.

A Leda estava tão, mas tão mais bonita do que quando a vi no dia em que roubei esses vídeos, que até parecia outra pessoa.

— O que você quer que eu fale? – ela tava perdida, sem entender direito o propósito daquele vídeo.

— Ai mãe, aquilo que a gente combinou, lembra?

— Mas pra que? Se eu já falei pra você.

— Que saco, mãe! – ela cruzou os braços, emburrada – É pra registrar! Ou você se esqueceu que isso aqui é um diário?

— Sim, eu sei. Mas é o seu diário. Por que só você não conta depois?

— Argh! – ela revirou os olhos e voltou-se para a câmera, ignorando a má vontade da Leda – Querido diário, hoje não to sozinha nesse vídeo, porque tenho que compartilhar uma coisa incrível!

— Você acha incrível? – com um sorrisinho orgulhoso, a Leda se esqueceu que não queria fazer parte do vídeo e perguntou por puro charme, porque ela já sabia a resposta.

— Na verdade nem é tão incrível assim, porque de certa forma eu já sabia.

— Ah é? – ela duvidou – E como?

— Ah mãe, você nunca apareceu com namorado.

Realmente. Volta e meia eu me pegava perguntando sobre o pai da Virgínia e como eu nunca o tinha visto, só achava mesmo que os pais dela fossem separados ou que o pai dela tivesse morrido.

— Oxe, isso num quer dizer nada! – ela falou ofendida – Uma mulher não pode escolher ficar solteira?

— Ah, pode, mas…

— Sem essa! – e ela empurrou a cabeça da Virgínia, implicando com ela – Não tinha como você adivinhar só por conta disso. 

— Para! – a Virgínia estava rindo e ajeitou a cadeira – Deixa eu explicar pro meu “eu” do futuro, que pode ter Alzheimer e não se lembrar de nada do que a gente tá falando.

— Que brincadeira sem graça, Virgínia. – a Leda ficou bem séria abruptamente.

— Enfim! – ela deu um basta – O lance é que a minha mãe me contou hoje que é lésbica e eu achei o máximo. Não pelo simples fato de ela ser lésbica, porque como eu disse: eu já sabia. Mas porque ela me contou e isso foi bem legal.

— Você achou? – ela perguntou olhando pra filha, sem perder dos olhos a admiração.

— Achei. Achei corajoso. Num tem um monte de pais que ficam no armário a vida inteira? Você poderia ter feito isso, mas não fez.

— Não fiz porque a minha filha é você e não um homofóbico babaca.

— Por acaso você teria um filho homofóbico babaca?

— Ainda bem que não. – comemorou com as mãos erguidas em direção ao céu.

— Agora conta porque você resolveu me contar.

A Leda puxou o ar e, olhando pra baixo, disse sorrindo:

— Bom, 15 anos parece ser uma idade bem adequada, porque já entende bem esse tipo de questão e eu… Para com esse risinho! – ela se interrompeu enquanto a Virgínia tampava o rosto.

— O que foi? – ela perguntou com os dentes à mostra, ainda sorrindo.

— Você fica debochando de mim!

— Não to debochando! Estar apaixonada não é motivo de deboche.

— Pois é… – ela voltou a encarar a câmera – Eu estou apaixonada. Aliás, não somente apaixonada, como to namorando.

— E, caramba, é a Mariana! – a Virgínia disse com entusiasmo – Isso sim eu nunca ia imaginar. Nunca nem cheguei a considerar que ela poderia ser lésbica! Aliás, eu não imaginava nada dela, porque… Não sei por que.

— Tá chamando a Mari de assexuada? – a Leda achou graça.

— Não! – ela negou apressadamente – É que eu conheço a Mari desde sempre. Não sei, eu não refletia sobre isso; não sobre ela. – voltando-se pra câmera, ela começou a explicar – A Mariana é uma colega de trabalho da minha mãe, que também dá aula na Universidade e ela é super legal comigo, sempre me tratou muito bem. – agora ela olhava para sua mãe – Eu não sei direito, mas parece que ela me trata como se eu fosse mais velha. Ela nunca falou comigo como que se eu fosse uma menininha idiota, que num sabe de nada e eu acho isso bem legal. Que nem você. 

— Ah, mas é de se esperar. Você não age como uma pessoa da sua idade.

— Sério? – a Virgínia perguntou com um sorriso envaidecido.

Isso é porque a mãe dela nunca a viu na escola, né?

— Ah filha, você sabe. Eu digo isso, a Mariana diz… Geralmente os adultos dizem isso: que você está a frente da sua idade. Hoje eu só me pergunto se é certo que falemos essas coisas quando você tá presente.

— Por quê?

— Porque você se sente na obrigação de corresponder a uma suposta expectativa que depositamos em você.

Virgínia ficou séria e pensativa.

— Você é inteligente. Você é eloquente. Você tem sim marcas de uma líder. Mas isso não significa que você tem que ficar o tempo inteiro provando isso pra nós ou seja lá pra quem for. Isso te faz mal e você sabe que sim.

Com a cabeça envergada pra um lado, Virgínia refletia sobre essa crítica.

— Não sei se eu concordo… Mas não estamos aqui pra falar de mim hoje. E sim de você! – ela tornou a abrir um sorriso – Conta mais: por quanto tempo você tá namorando? Por que me contar justamente hoje?

— Eu to namorando há 5 meses. – a Leda sorria envergonhada – E assim que eu contei pra Mariana sobre a sua reação depois da nossa conversa sobre os seus pais biológicos, ela teve a confirmação de que você tava preparada pra saber de nós duas.

— Nossa, que pirada. O que uma coisa tem a ver com a outra? Eu poderia muito bem ter feito uma cena. – brincou.

— Mas não fez. – e deu um beijo no topo da cabeça da Virgínia.

— Por sorte.

— Tá bom, minha filha. Agora desliga a câmera, que eu quero conversar com você em particular.

— E qual é a diferença de falar com a câmera ligada? Ninguém além de mim vai assistir isso mesmo…

E o vídeo acabou antes que a minha vergonha aumentasse por eu invadir a vida da Virgínia e de sua mãe dessa maneira. Que, a propósito, é muito mais harmoniosa do que eu poderia imaginar. Muito mais harmoniosa do que a minha relação com a minha mãe, por exemplo. E pensar que um vídeo atrás eu tava sentindo pena da Virgínia... Nossa, pena é tudo do que ela não precisava, porque a vida parecia ser incrível.

Que eu to sendo bem paia por estar invadindo a vida da Virgínia assim, isso eu já admiti, mas não, eu tinha que ver mais! Eu já havia descoberto o que tinha de mais privado da vida da Virgínia, o que me custava seguir com isso? Eu pecado já tinha sido consumado, não tinha mais como voltar atrás. Cliquei no próximo vídeo, o do dia 7 de Abril de 2012.

— Liguei. – a Virgínia anunciou enquanto tirava a mão da câmera, agora acompanhada por Jéssica no vídeo.

— Oi! – a Jéssica acenou com um sorriso enorme.

— Vai, se apresenta, pro caso de eu ter Alzheimer no futuro.

Diferente da Leda, a Jéssica caiu na gargalhada com essa piada.

— Oi! – ela repetiu o cumprimento do começo e tornou a rir, como se fosse tudo uma grande piada.

— Se apresenta direito, porra!

— Calma! – a Jéssica deu um tapa no braço da amiga, ainda rindo – É que eu tenho vergonha.

— Só eu que vou assistir, anta.

— Dá pra me tratar direito, “anta”?

Virgínia revirou os olhos.

— Tá… – a Jéssica se ajeitou na cadeira e disse olhando pra câmera, acenando com a mão mais uma vez – Oi, meu nome é Jéssica e sou a sua melhor amiga de toda a vida.

— Menos, bem menos. – Virgínia brincou.

— Ingrata.

E mais uma vez elas caíram na gargalhada. É por essas e outras que as pessoas costumam achar adolescentes tão retardados.

— Diga pra Virgínia do futuro por que eu te convidei pra fazer parte do meu diário hoje.

— Pra rirmos juntas do vexame que a Conceição passou.

Senti um frio na espinha quando ouvi meu nome, ainda mais naquele clima de deboche. Apertei os lábios, apreensiva.


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