Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 61
Dolores




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Não sei em que planeta eu poderia imaginar que essa é a história da Virgínia. Onde? Quando? Ela nunca deixou vazar essa informação! O impressionante é que nem mesmo corriam boatos de algo do tipo, nadinha, nadinha! Provavelmente ela devia ter muita vergonha disso, já que ela não contou pra ninguém… Quer dizer, não sei se ela não contou pra ninguém, o que eu sei é que essa história nunca chegou a mim. Mas também, o que eu queria? Nunca fomos amigas, é mais do que lógico que ela não viesse até mim contar esse tipo de revelação. 

Só fico me perguntando se a Jéssica ou algum das dezenas de amigos que ela tinha, em algum momento depois desse vídeo, soube de tudo isso. Ou será que ela manteve o segredo? Eu acredito na maior probabilidade de essa última possibilidade ser a versão oficial, porque se soubessem de toda essa treta, não haveria muita razão de ela se dar ao trabalho de pedir pra todo professor trocar seu nome na chamada… Ou se daria? Bom, é o que eu gostaria de ter feito com o meu nome caso eu tivesse tido essa ideia.

A pulga atrás da minha orelha foi plantada e eu não podia parar naquela hora. Cliquei no vídeo ao lado, do dia 21 de Março de 2012.

— Querido diário, eu conversei com a minha mãe sobre aquilo que falei no último vídeo. – sua expressão não era de tristeza e por algum motivo isso me deu alívio – Eu até pensei em gravar no mesmo dia dessa conversa, mas eu não me senti motivada, até porque eu me senti bem estranha depois de descobrir boa parte das coisas que eu queria saber. Sei lá, eu não queria falar sobre aquilo na hora. Eu precisava organizar tudo na cabeça e talvez eu ainda precise, então é pra isso que eu to gravando esse vídeo. Ai… – suspirou – Quando eu tava voltando com a minha mãe da terapia na sexta, eu fiquei pensando no que a minha terapeuta dizia, que eu pensasse em meios de me aproximar mais da minha mãe... Lembra que eu disse que nós duas já éramos muito próximas? Pois é, embora a minha terapeuta não concorde com isso, eu sei que é verdade e foi pra provar isso que tomei coragem de uma vez pra tocar no assunto. Claro que eu não falei de cara, eu fui mais cuidadosa, indo pelas beiradas. E é tão verdade que nós duas nos conhecemos tão bem, que a minha mãe percebeu que eu queria falar de um assunto específico. Daí não teve jeito, tive de ir direto ao ponto e foi quando, por fim, eu perguntei o que aconteceu com os meus pais biológicos.

“Eu, que pensei que ela ficaria chateada só de eu mencionar as pessoas com quem eu vivia antes dela, quebrei a cara. Nesse sentido, a minha terapeuta até que não tava tão errada. – ela soltou uma risada de redenção – Mas foi bom descobrir que a minha mãe é ainda melhor do que eu pensava. Ao que parecia, ela vinha se preparando pra essa conversa desde sempre. Pois é, ela me disse que a última notícia que recebeu é que eles seguiam juntos e que esperavam outro bebê.

“A minha primeira reação foi a de sentir raiva, muita raiva. Tipo, já não bastava terem perdido uma filha, eles queriam que outro fosse retirado pelo Conselho Tutelar? Xinguei aqueles dois com bem uma meia dúzia de palavrões. Só que a minha mãe, iluminada do jeito que é, me explicou que as coisas não deviam ser necessariamente assim, porque quando eles ainda tinham a minha guarda, eles tinham 18 e 19 anos. – ela arregalou os olhos – Essa foi a hora em que eu fiquei chocada, porque isso significava que quando eu nasci, eles tinham 14 e 15 anos respectivamente. Ou seja, eles tinham a minha idade!

“No começo estranhei muito, quase cheguei a duvidar desse cálculo da minha mãe, porque na minha memória eles eram tão grandes, tão adultos… Só que não, eles eram tão adolescentes quanto eu sou agora. E eu pensando por todo esse tempo que eles eram uns sacanas, mas não, eles só eram adolescentes que não sabiam o que fazer, assim como eu não sei na maioria das vezes. Não sei explicar direito, mas eu fiquei contente por saber disso. Se eu fosse chutar o porquê, acho que é porque isso serviu de consolo, porque queria dizer que eu não fui simplesmente indesejada... Fico pensando se eu tivesse um filho agora, mano, eu ia surtar! As coisas agora fazem muito mais sentido. 

“A minha mãe perguntou se eu tinha vontade de conhecer os dois… Os três, no caso, porque agora tem o meu irmão, né? – eu senti que o desdém na hora em que ela falou do seu irmão foi um tanto forçado – Sabe que eu nem quero?... Não, não me entenda mal, não é que eu não sinta curiosidade e se eu disser isso, eu to mentindo. É só que… Na real, sobre o que vamos falar se nos encontrarmos? Nós somos estranhos e eu só consigo pensar em constrangimento num encontro desses. Acho que me dou por satisfeita só de ter descoberto essas coisas.

“Ah sim! – ela deu um salto e ajeitou a postura na cadeira – Eu descobri outras coisas também: eles se chamam Eunice e Roberto. E até o Roberto fazer 18 anos, morávamos nós três na casa da mãe dele. Os dois terminaram o colégio e só saímos da casa da mãe dele, porque ela era casada com um escroto, que destratava os dois, chamando eles de “encostos”. – a Virgínia, claramente, entendia o lado dos seus pais biológicos agora – E a Eunice trabalhava numa loja de roupas e o Roberto fazia um bico aqui e outro ali. Ah, e aquela história de eles serem drogados? É, eu tava errada… – ela admitiu com vergonha e abaixando os olhos – Quer dizer, mais ou menos. Eles não eram uns viciados, como eu costumava pensar. Na verdade eles faziam o que qualquer outra pessoa na idade deles faz. Tá que eles poderiam ter evitado aquelas festas barulhentas e com cheiro de cigarros enquanto eu chorava trancada no quarto… – sua testa franzida denunciou o quanto essa lembrança a perturbava – Mas acho que agora, sabendo qual era a idade deles, eu sinto bem menos raiva. E acredita que nem foi por causa disso que eles perderam a minha guarda? – seus olhos expressavam espanto – Acontece que uma vizinha uma vez viu os dois chegarem muito bêbados em casa, junto comigo, daí ela fez a denúncia e quando foram investigar, a verdade é que eles tinham um problema financeiro muito sério, porque eles não sabiam gastar dinheiro e nem me tratavam como prioridade nesses gastos. Eu não era levada ao médico, deixei de tomar um monte de vacinas, a casa onde a gente morava era uma porcaria e no fim das contas, o problemão disso tudo, é que eles não abriam mão da juventude. O engraçado é que a minha mãe, com essa mania de querer defender os pobres e os oprimidos, disse que eles fizeram questão de acompanhar todo o processo de adoção. Apesar de serem irresponsáveis, ela disse que eles eram 'garotos legais'. Não sei direito o que pensar disso, porque afinal: eles me trancavam no quarto pra darem festas enquanto eu esmurrava e chutava a porta, pedindo pra sair. Isso não parece 'ser legal' pra mim, mas tudo bem. 

“Se meus cálculos tiverem certos, hoje eles têm 29 e 30 anos. Meu irmão deve ter 5. Eles contaram, quando a Eunice ainda tava grávida, que ele se chamaria Enzo. Definitivamente eles gostam de nomes zoados… – falou um pouco ressentida – Minha mãe gostou, mas a opinião dela não conta, porque ela também gosta de Tábata.

“Eu ainda to processando tudo isso. Num sei. Num sei se to me sentindo melhor agora que eu sei qual é mesmo a minha história. Não sei se agora eu ainda tenho o direito de ficar bolada nos meus aniversários ou se sou obrigada a seguir normalmente com a minha vida. De certa forma, era um pouco confortável me sentir a rejeitadona do mundo. Agora que eu sei que não foi bem assim, como eu devo me sentir? – ela ergueu os ombros, em sinal de dúvida, e o vídeo finalizou.

Se ela não tinha ideia de como se sentir agora que sabia de sua história de vida, eu sei muito menos.

O curioso é que eu sempre enxerguei a Virgínia como uma pessoa com a vida perfeita, sempre tão segura, eloquente e chata, que tudo o que eu queria é que ela levasse uns tropeções pra aprender o que é a vida de verdade, porque eu definitivamente sabia o que era "a vida de verdade". Não que a situação financeira dela ainda não fosse muito melhor que a minha, mas sei que eu no lugar dela não levaria um histórico como esse numa boa como ela parecia levar.

Numa tabela imaginária, onde a Virgínia tem uns 500 pontos negativos comigo, eu acrescentaria, pelo menos, uns 100 pontos positivos por ela ter segurado essa barra com firmeza. Sim, eu acrescentaria e não, isso não é fácil de admitir.


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