Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 60
Dolores




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Eu havia abandonado os vídeos da Virgínia por algum tempo, morta de preguiça de seu poder de síntese em vídeos superficiais, só que me bateu uma súbita vontade de voltar a assistir. Fui pro quarto já na esperança de que ela falasse mais sobre seu nome falso – uma informação que quase havia caído no meu esquecimento. Cliquei no vídeo de 7 de Março e fiquei contente com o salto de 3 segundos do último vídeo pra esse de 2min44seg.

— Querido diário, eu não to bem. – isso era evidente em seu semblante – Não faz muito tempo que foi meu aniversário e sim, eu fiz 15 anos e não, não to chateada porque não tive festa de debutante e nem porque não fui à Disney. Eu caguei pra tudo isso. E eu caguei de verdade, não que nem aquelas meninas que ficam despeitadas com essas comemorações só porque não podem ter. Não to querendo ser metida, mas se eu pedisse pra minha mãe, ela me daria tudo o que eu quisesse. Até o céu se brincar. Então não é nada disso. Nunca é isso. – ela apoiou o cotovelo na mesa, ocupando boa parte da tela e ficou com o rosto próximo à câmera, com os olhos baixos – É que todo aniversário é meio assim. Eu queria que certas coisas não me viessem à cabeça, só que vêm do mesmo jeito e não é justo. – ela engoliu a saliva de uma maneira audível e prosseguiu – A minha mãe percebeu que eu tava meio pra baixo e até tentou arrancar de mim alguma confissão, mas eu escondi… Tá vendo? Eu to escondendo coisas da minha mãe! Cara, eu odeio quando isso acontece. – seus olhos estavam dando sinais de que marejariam – É só que eu prefiro que ela nunca saiba que eu ainda penso nisso. Morro de medo que ela acredite que o que ela me dá não é o suficiente, a ponto de eu continuar pensando neles…

Neles quem?!

— E no fim das contas é uma idiotice, sabe? Porque aposto que eles nem pensam mais em mim, se é que eles ainda estão vivos. Aposto que não, drogados de merda. – a lágrima sequer havia escorrido pelo seu rosto e ela já a havia secado. Foi estranho, porque eu pensava que a Virgínia não chorava mais desde que cresceu – Eu só fico me perguntando se… – ela desistiu de falar no meio da frase, perturbada – Eu só conversei com a minha mãe sobre isso uma vez e nunca mais tive coragem de tocar no assunto, até porque sei que é delicado pra ela também. Ela disse que no começo foi difícil pra mim e que fica feliz que eu não me lembre de nada. Acho que ela ficaria chocada se soubesse que na verdade me lembro do essencial. Eu sei que eles não foram bons pais.

Senti um arrepio.

— Eu sei que por mais que eles dissessem que queriam estar comigo, não faziam o menor esforço pra isso. – ela respirou fundo e prosseguiu – Eu sei, eu sei de tudo isso. Só não sei como falar pra ela e pedir que ela me conte mais. Algo me diz que a minha mãe sabe do paradeiro deles, só que por eu ter feito com que ela acreditasse que eu não quero saber, ela mantém o segredo. Eu só disse que não queria saber deles pra que ela não se sentisse mal, pra que ela não pensasse que eu ainda quero saber de quem me rejeitou, enquanto ela sempre me deu uma vida de princesa. Eu amo a minha mãe, amo demais! A vida que eu tenho é muito feliz e eu me sinto muito querida, muito mesmo. É só que… Eu tenho algumas dúvidas e curiosidades sobre o meu passado, e não sei como tocar nesse assunto.

“A minha psicóloga disse pra que eu desse um passo de cada vez, pra que eu criasse intimidade com a minha mãe aos poucos. O lance é que essa é nova, me conhece há pouco tempo e ainda não tá muito ligada que intimidade é tudo o que eu tenho com a minha mãe, pois ela sabe de basicamente tudo sobre mim, só enquanto algumas mães e filhas não conseguem falar sobre sexo uma com a outra, esse é que é o assunto tabu entre nós duas. – a Virgínia começou a mexer em uma caneta, somente como uma desculpa pra não encarar a câmera – Acho que só fico angustiada porque no fundo eu sei que nunca vou ter coragem de perguntar nada. E na maior parte do tempo isso não me atinge. Às vezes eu quase chego a esquecer que sou adotada, mas todo aniversário eu me lembro que existe um drama por trás de mim e que eu queria muito saber mais sobre ele.

“E o foda nisso tudo é que eu ainda sou uma péssima amiga, porque quase não dou atenção pro aniversário da Jéssica, que é quase colado no meu. A bichinha é toda boazinha comigo, diz que me entende… Como? Eu não sei. Eu ainda não tive coragem de contar todo esse drama pra ela. A minha intenção é contar algum dia. Só quero mesmo é saber quando.”

O vídeo havia acabado e eu não tinha força pra fechar a janela. Eu fiquei paralisada.


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