Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 59
Novembro - Dolores




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Final de escola é bem menos emocionante do que dizem e até do que eu esperava. Eu achei que estaria na pilha, fazendo contagem regressiva pro último dia e coisas do tipo, mas tudo o que tenho feito é faltar aula, já que eu praticamente to aprovada.

Pensei que estaria todo mundo de saco cheio de todo mundo, já que eu to de saco cheio de todo mundo, até de quem eu gostava de estar ao lado. De repente, todas as rivalidades e grosserias ditas em anos são tratadas como bobagens, todo mundo ficou amiguinho e ri do passado com ar de nostalgia. Porra nenhuma. É fácil pra quem falava as grosserias, mas pra quem escuta não é tão simples assim e não, eu não os perdoo.

— O pessoal tá querendo marcar um cinema.

— Nem vou. - respondi à Dani sem nem considerar, por um segundo que fosse, a possibilidade de ir a uma confraternização dessa.

— Ué. Por quê?

— E eu lá gosto desse povo, Dani?

— Eu também não sou a maior fã, mas o que é que tem? Acho que não custa nada ter boa vontade, até porque, daqui uns dias, nunca mais veremos boa parte dessa galera.

— Ah, pois vá sozinha. Eu não faço questão mesmo de ir.

— Cara, não sei porque você tá fazendo tanto esforço pra tornar o seu terceiro ano o pior de todos.

— Eu não preciso me esforçar, ele já foi o pior de todos. Não sei se você se lembra, mas uma colega nossa morreu no meio do ano. Isso foi ruim o suficiente. - às vezes eu jogava na cara das pessoas o que elas mais faziam questão de esconder.

— Não sei se você se lembra, mas nós estamos vivos. - e ela me deu as costas; por algum motivo, falar da Virgínia a deixava irritada.

Eu até que a entendia. A Virgínia sempre me causou irritação. A simples presença dela fazia meu corpo tremer de uma ansiedade que eu nem sei explicar muito bem. É como que se eu estivesse me preparando, constantemente, a ter na ponta da língua uma resposta afiada pra qualquer coisa que ela dissesse; era quase uma decepção quando ela não me provocava. Era essa a função social da Virgínia: ser odiável, pra que eu também pudesse cumprir com a minha função social, que era a de odiar de volta.

Eu fico muito surpresa por eu não sentir alívio pela Virgínia não estar mais aqui, porque por mais que eu torcesse pra que ela cumprisse com o script e acabássemos discutindo por alguma coisa, eu temia sempre que essa fosse a vez em que eu seria humilhada, já que nem sempre eu ganhava nas discussões… Na verdade, na maioria das vezes eu saía perdendo. Mas ainda assim era uma relação de ódio bastante equilibrada se parar pra pensar. Por mais que nem sempre eu fosse reconhecida, às vezes eu dava as melhores tiradas, às vezes não. E é pelo “não” que eu deveria gostar da ausência da Virgínia, mas já chega de tentar esconder isso, eu não gosto de sua ausência.

Nessas minhas tentativas de tentar entender quais são os sentimentos que venho tendo sobre a morte da Virgínia, me deparei com revelações bastante bombásticas. É inegável, por exemplo, a falta que sinto por ter alguém a quem odiar, uma pessoa pra pegar no pé e que pegasse no meu pé também. A impressão que tenho, desde que ela se foi, é que era a própria Virgínia que colocava os holofotes em mim e me fazia ser notada e, consequentemente, zoada pelos nossos colegas. Desde a sua morte eu tenho passado despercebida, nem mesmo o meu nome gera tantas piadas como antigamente e eu duvido muito que isso seja reflexo de um amadurecimento da turma. E não se tratava somente dos outros, mas a Virgínia me fazia atribuir até uma maior importância a mim mesma, já que ela me obrigava a falar, fazia com que eu me defendesse. Quantas vezes não houve sequências longuíssimas de brigas onde uma rebatia a outra de igual pra igual? Agora tem dia que volto pra casa e me descubro com a garganta seca, de tantas horas que fiquei sem emitir uma só palavra. De algum jeito estranho, eu queria mesmo que a Virgínia estivesse terminando o terceiro ano com a gente.

— Engraçado.

— O que é engraçado?

Perguntei a minha mãe assim que ela fez esse comentário, após eu soltar, com muita resistência, todo esse desabafo pra ela – é muito ruim não ter mais intimidade pra conversar essas coisas com a Dani, então tive de recorrer à única pessoa que ainda me procura.

— Você tem um carinho estranho pela Virgínia.

Franzi minha testa, negando automaticamente essa leitura das minhas inquietações. Me gerou estranheza essa interpretação, porque nunca se passou pela minha cabeça que eu pudesse sentir algo pela Virgínia, quem dirá carinho.

Mas e se a minha mãe estiver certa?

 


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