Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 58
Dolores




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Cliquei no vídeo de 13 de Fevereiro, já começando a ficar de saco cheio de novo.

— Querido diário, hoje foi anunciado quem ganhou como representante de turma: o sonso do João Vítor. - ela revirou os olhos daquele jeito antipático de sempre e continuou falando – Sabe, nada contra, mas sério? Sério que não podíamos ter nada melhor? Eu fico revoltada com esse tipo de coisa. Pra começar, o João Vítor nem mesmo tinha o interesse de ser representante, ele só cedeu à pressão da maioria da sala e colocou o nome dele na votação por impulso. Aposto que ele vai ser mais um pau mandado dos professores e da diretoria, que só vai servir pra distribuir os bilhetes de informes e coisas do tipo.

“Eu tava falando com a minha mãe sobre isso e ela perguntou se já que eu me sinto tão atingida por esse tipo de coisa, por que não me candidatei. É o que eu me pergunto também, mas agora já era. Ano que vem, quem sabe. - ela respirou fundo e arregalou os olhos, como que se tivesse se lembrado de algo – Ah! Eu emagreci três quilos! – vibrou e bateu palmas, comemorando forçadamente – E já dá pra ver uma diferençazinha nas roupas. Foi difícil, viu? Mas eu tava me esforçando, então acho que mereço… - ela olhou para o teto, pensativa – Sabe, até aconteceram algumas coisas na escola esses dias, mas ah, nem to com tanta vontade de comentar assim, então beijos. - e desligou.

Ok, eu esperava mais. De toda forma, não me desencorajei a clicar no próximo. 14 de Fevereiro.

— Querido diário, eu num falei? O João Vítor vai ser o representante mais tosco da história dos representantes. Minha mãe tinha razão, eu devia ter me candidatado. - e o vídeo acabou bruscamente.

Sério isso? Que bosta de diário é esse?

19 de Fevereiro.

— Não, não to com saco pra diários. - e mais um vídeo acabou.

Acho que estou tendo contato com o pior diário de todos os tempos! 3 segundos de vídeo? Isso é sério? Não pode ser! Se não é pra relatar a droga do dia, não sei pra que a Virgínia se deu ao trabalho de registrar essas porcarias. Deslizei a barra lateral, pra ver quantos vídeos têm e sim, têm muitos, mas se todos tiverem esse nível de profundidade, agora tá explicado como que couberam todos os vídeos no pen-drive sem o menor problema, pois eles são curtos e não dizem nada de tão interessante assim. Fiquei puta e fui comer.

***

— Você tá diferente.

Lá vem a minha mãe! É impressionante como que ela sempre vem de coisa pra cima de mim justo quando eu não to com a menor paciência. Só que, tudo bem, isso não precisa se transformar em briga, só erga as sobrancelhas e negue com a cabeça, Lola.

— É claro que tá e isso é notável na sua maneira de agir, até de falar, mesmo que você tenha falado bem pouco ultimamente. Não que você seja uma pessoa que fale muito, mas agora você fala muito menos.

— Ai mãe, para. - eu disse sem a menor questão de demonstrar paciência com a sua análise fora de hora.

Desgostosa, ela suspirou.

— Eu sinto que falhei tanto com você, Dolores.

— A começar por esse nome. - resmunguei de cabeça baixa.

— Sério que toda essa raiva que você sente é só por causa do seu nome? Você sabe que pode mudar isso, não sabe?

Eu juro que eu não queria, mas foi inevitável: revirei os olhos. De um jeito bem parecido com o da Virgínia. Talvez eu faça isso mais vezes do que eu gosto de admitir.

— O que isso quer dizer? – ela ficou atribulada e eu não a respondi – Eu queria muito saber o que se passa na sua cabeça,

— Ninguém pode fazer isso com ninguém. - respondi ríspida.

— Eu só queria entender o porquê de toda essa ira. Esses olhos pintados, essas roupas escuras… Isso com certeza quer dizer alguma coisa, mas o que?

— Que eu acho bonito.

— Não é isso. - ela disse enfática – Alguma coisa me diz que boa parte dessa raiva tem a ver com a morte da Virgínia.

— Jura, gênio? – por que eu estava sendo tão estúpida? – Uau! Você deve ser a próxima Sherlock Holmes, porque pra ter deduzido que uma colega de turma que morreu pode, por acaso, ter me afetado, só sendo uma mestre do crime mesmo.

Ela balançou a cabeça, chateada. 

— Isso é culpa minha. Eu nunca te ensinei a conversar com os outros, eu nunca incentivei isso em você e agora eu fico te cobrando, querendo que você converse comigo.

Por que ela sempre tem que levar pro pessoal? Céus, não é pessoal! Eu não queria que ela se sentisse culpada.

— Mãe, relaxa. Isso não é culpa sua. Meu pai também não me ensinou ou incentivou a ser uma garota falante e nem por isso ele tá lá, se lamentando, então menos drama, por favor. - e claro que eu poderia ter sido muito mais afável ao dizer isso.

— Mas eu sou a mãe!

Essa foi a minha vez de ficar desapontada. Duvido muito que a mãe da Virgínia diria algo dessa natureza. Mulheres fortes não costumam dizer esse tipo de coisa... Não que a minha mãe não tenha força, mas sem dúvida ela não é como a mãe da Virgínia. 

— Eu devia ir mais atrás, perguntar como você se sente, entender as coisas que passam pela sua cabeça, mas eu fui negligente…

— Mãe, daonde que você foi negligente? Para com isso. - eu já tava bem cansada dessa conversa – Eu sei que você não é culpada e que dá duro pra eu ter as coisas que eu tenho, ta? 

— E que nem tem tanto assim, como você mesma já colocou.

Odeio a memória da minha mãe! E odeio mais ainda quando ela me faz lembrar o quanto eu posso ser ingrata.

— Só que de que adianta me lamentar agora? É tarde demais pra tentar criar o laço, é tarde demais tentar forçar uma intimidade. Só que você não me dá espaço algum pra fazer mais do que lamentar. Mas mesmo sem espaço, eu pergunto: o que é que tá acontecendo com você? O que você tá sentindo, minha filha?

Eu não estava me sentindo confortável com essa conversa e ver a minha mãe com o rosto aflito realmente não estava ajudando, então interrompi a refeição, empurrei o prato e disse:

— É, você tem razão. É tarde demais mesmo. - e me levantei da mesa e fui pro meu quarto.

 


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