Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 56
Dolores




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A Virgínia não foi a única que quis voltar diferente naquele ano, eu também fiz algumas alterações. Pedi com muita insistência pra que minha mãe deixasse eu cortar uma franja e usasse produtos químicos pra dar uma alisada, já que o meu cabelo é crespo e ficaria bem estranho com uma franja natural. Tive que implorar muito até que ela liberasse a grana pra isso. E eu fiz, fiquei feliz da vida com o resultado… Até a véspera do primeiro dia de aula. Fiquei imaginando a atenção que isso atrairia pra mim, como que os meninos gostavam de me zoar mesmo sem terem nenhum bom motivo, será que eu deveria mesmo aparecer com essa franja e dar mais um rol de possibilidades pra eles fazerem piadinhas?

Na manhã do primeiro dia de aula, acordei mais cedo que o usual e fiquei me encarando em frente ao espelho por um tempo, decidindo se eu deixaria ou não a minha franja à mostra. Optei pelo “sim”, embora tenha colocado grampos na minha mochila só por precaução.

Chegando na escola, cabisbaixa, porque mesmo que o sinal já tivesse batido e não tivesse ninguém andando pelos corredores, eu tava um tanto sem coragem de me mostrar inteiramente. Até que o meu temor se provou bastante plausível, porque esbarrei de cara com a Virgínia. Ficamos frente a frente, com uma olhando a cara da outra. Eu tava absorvendo o seu novo visual, pensando no quanto ela estava ridícula com aquele cabelo curto, só que mesmo achando feio o seu corte, o que vi na Virgínia não era constrangimento, mas uma cara de satisfação. “Ela deve tá morrendo de rir da minha franja”, foi o que pensei e a primeira coisa que fiz foi correr pro banheiro e prender a franja com o grampo. Não sei do que me arrependi mais, de ter cortado a franja ou de ter prendido, deixando à mostra minha testa cheia de espinhas.

Fiquei curiosa, eu queria saber o ponto de vista da Virgínia sobre esse primeiro dia. Cliquei no ícone ao lado e abriu o vídeo do dia 30 de Janeiro de 2012.

— Querido diário, hoje foi sensacional! – ela estava agitada, sorrindo de orelha a orelha – Pra começar, meu corte de cabelo fez o maior sucesso na escola! Todo mundo elogiou, todo mundo gostou. A Luíza até pediu pra tirar uma foto e mostrar pra filha dela, que tava procurando um corte legal pra fazer e não conseguia achar nenhum, acredita? E não para por aí: até o Lucca parou pra comentar! Na hora eu quase não acreditei – ela apertou os olhos e começou a bater palminhas. Eu nem sabia que a Virgínia era do tipo que batia palminhas – E foi tão bom rever todo mundo, algumas pessoas que eu nem era tão próxima assim, esse ano, pareceram dispostas a reforçarem a amizade e eu acho isso o máximo! Adoro amigos, adoro ter pessoas diferentes por perto pra conversar sobre coisas diferentes… Eu to com um bom pressentimento sobre esse ano. O que é meio irônico, porque a primeira pessoa que vi hoje na escola foi a Dolores, acredita? Eu tinha acabado de sair da sala pra beber água e ela tava chegando. Ela também resolveu dar um tapa no visual, cortou uma franja e passou chapinha…

Ridícula. Não era chapinha!

— Até que não ficou feio. Só não entendi por que ela se deu ao trabalho de passar chapinha na franja…

Não era chapinha!!

— E depois prender com um grampo, mas ok também, não vou gastar meu tempo fabulando sobre as razões de ela de ter cortado uma franja e prendido com um grampo depois que me viu, embora elas sejam óbvias.

Como assim “óbvias”? Senti uma pontada na barriga. Com certeza era de raiva. Parei o vídeo pra controlar a minha revolta antes que eu desistisse dos vídeos de novo. 

Cara, como ela é mentirosa! Essa onda de “ai, não achei feio” não cola comigo, porque eu me lembro direitinho que volta e meia ela vinha me zoar por conta dessa franja. Teve uma vez, nesse ano de 2012 mesmo, que eu tava sentada com a Dani, na boa e na minha, contando o enredo de um anime novo que eu tava acompanhando, quando ela tava passando com o seu bonde. Foi totalmente gratuito da parte dela, porque eu realmente não provoquei e nem nada, daí ela começou a tossir alto e de mentira, pra chamar a minha atenção, e ficou cochichando no ouvido da Olívia, arrancando risadas dela.

— Por que você não fala na cara? – mordi a isca.

— O que? Tá falando comigo?

— Não se faça de sonsa! – me levantei do chão, limpando a parte de trás do meu uniforme.

— Ah, desculpa. É que esse teu olho zarolho me deixa confusa e eu nunca sei com quem que você tá falando.

Minha boca se encolheu de tava raiva que eu sentia, bem maior que a vergonha por todo mundo rir da sua provocação. Eu precisava pensar numa resposta à altura.

— Prefiro ser zarolha a ter essa língua presa ridícula.

— Pra algumas pessoas, língua presa é até charmoso. – a Karine, que também tava no bonde da Virgínia na hora, resolveu se meter.

— Deixa. – mas a Virgínia não a permitiu se meter na discussão e deu alguns passos na minha direção, me enfrentando sozinha – Já que você queria tanto saber: eu tava dizendo que essa tua franja tá parecendo uma crina queimada.

Eu senti o meu coração bater na garganta. Meu cabelo era um assunto sensível e eu odiava quando o usavam de motivo de chacota. Odiava! Mas eu não deixei barato e falei o mais alto que pude:

— Se a minha franja tá feia, eu deixo crescer e pronto. E você, sua gorda? Vai fazer o que? Malhar? – e soltei uma risada zombada – Vai lá, malha bem muito e depois você vem conversar comigo. Sem ofegar, falou?

E saí de queixo erguido, porque por mais que as minhas ofensas direcionadas à Virgínia nunca arrancassem risadas de ninguém, eu soube que eu a chateei mais do que ela me chateou dessa vez e senti que venci nessa discussão. Só que a custo de que? De os amiguinhos dela acharem que eu era muito babaca e se achassem no direito de me ofenderem ainda mais? Sim, exatamente isso. 

Não digo que eu era uma santa, mas essa pose de menina bacana, que “nem achou feia a minha franja” não corresponde com a verdade. Eu não entendo porque a Virgínia fica posando de justa, quando ela não perdia a oportunidade de me humilhar. O que? Ela fez esses vídeos esperando que alguém, um dia, viesse a assistir e a achasse boazinha? A injustiçadinha? Me poupe. Eu vivia dizendo isso e direi de novo: ela nunca me enganou!

Deixei essas lembranças pra lá e voltei pro vídeo apertando play.

— Hoje não foi um dia sobre a Dolores, foi um dia sobre a Virgínia! – e ela soltou uma gargalhada empolgada, girando com a cadeira – Agora se é pra apontar um ponto ruim de hoje, eu digo que foram os três professores novos que entraram. É um saco quando isso acontece! – ela olhou pra câmera em uma tremenda cara de preguiça e começou a falar com a boca frouxa, revirando os olhos toda vez que acrescentava um item na sua enumeração – Aí eu tenho que ir à mesa do professor, explicar toda a minha história em 5 minutos e dizer pra ele falar “Virgínia” no lugar de “Tábata”…

Peraí, Peraí, Peraí! O que?

Voltei alguns segundos no vídeo e apertei play mais uma vez:

— Aí eu tenho que ir à mesa do professor, explicar toda a minha história em 5 minutos e dizer pra ele falar “Virgínia” no lugar de “Tábata”.

Parei o vídeo, boquiaberta, só pra poder processar o que eu acabara de descobrir: a Virgínia não se chamava Virgínia? Era isso? Mano... Que?!

— Dolores…

Tive de fechar o notebook apressadamente quando a minha mãe entrou no quarto, porque eu nem sei como eu arrumaria uma explicação do porquê e nem como eu consegui vídeos da Virgínia.

— Eu trouxe comida pra você, porque eu já to ficando preocupada.

— Mãe, para de encher o saco! Eu ia comer daqui a pouco, que saco.

— Sei… – ela disse com desconfiança, sobretudo porque ela sairia pro trabalho já já e sabia que quando eu jogava pra mais tarde as minhas tarefas, eu me aproveitava do fato de ela não estar em casa pra deixar de fazê-las – De toda forma, tá aqui o seu almoço. Come! – e deixou o prato sobre a minha cama, saindo do quarto logo em seguida.

Eu não tinha a menor cabeça pra fazer uma pausa pra comer, porque eu simplesmente acabara de descobrir a coisa mais inesperada da minha vida: a Virgínia usava um nome falso. Tábata? Esse nome nem tem nada a ver com ela! Como assim?

Com as pernas dormentes e começando a doer, resolvi esticar um pouco pra dar uma circulada. O único problema foi que eu me esqueci de que minha mãe acabou de colocar um prato cheio de comida em cima da minha cama e que, sem querer, eu acabei derrubando no chão. Em um reflexo retardatário e imbecil, tentei salvar o prato me levantando bruscamente e derrubando também o meu notebook. A meleca que eu fiz foi a menor das minhas preocupações e um prato quebrado não era nada comparado ao meu notebook que ficou destruído de um jeito preocupante.


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