Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 55
Dolores




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/704941/chapter/55

Fiquei com o que o Lucca disse na cabeça por toda a manhã e por todo caminho de volta pra casa. Na hora eu senti um pouco de raiva, me comparar à Virgínia é um disparate! Mas na medida em que eu fui repensando e refletindo sobre, tive de concordar em partes. O quarto laranja que eu adoraria que fosse o meu, os cds das bandas que eu também escuto… Isso pode não significar nada, tudo bem, só que o Lucca tinha um ponto. Fiquei pensando se ele poderia ter razão.

— Não vai comer? – minha mãe perguntou assim que me viu passar direto pro meu quarto.

— Agora não.

— Dolores, você precisa comer.

— Eu sei, mãe. Mas agora não. – tornei a enfatizar a minha indisposição pra comer naquele momento, batendo a porta.

A rapidez em que joguei minha mochila no chão, peguei meu notebook, dobrei as pernas e liguei o pc foi impressionante. Achei melhor não retornar àquele primeiro vídeo, pois ele foi o principal responsável por eu não querer continuar assistindo o resto por todo esse tempo. Assim sendo, cliquei no segundo, cuja data dizia 12 de Janeiro de 2012.

— Querido diário, eu bem que devia gravar um vídeo por dia, mas já percebi que isso não vai rolar. De toda forma, já to melhor que nos diários escritos e então nem vou gastar tempo me explicando demais. – ela olhou pra cima, suspirando pensativa – Esses últimos dias foram bem chatinhos. Primeiro, a Jéssica tá de castigo e não pode vir aqui em casa, o que tá sendo um tédio! Então eu passo a maior parte do dia assistindo filmes e séries, só que eu já to cansada disso e acho que vou acabar recorrendo a outras pessoas, pra ver se eu consigo sair de casa um pouco. Espero que a Jéssica não encare isso como uma traição. – erguendo os ombros e suspirando mais uma vez, desanimada, ela finalizou – Como meus dias estão um saco e num to fazendo nada de útil, acho que por hoje é isso. Tchau.

E o vídeo acabou. Um tédio, assim como as férias dela, mas me senti encorajada a continuar assistindo, até porque nesse eu não senti raiva da Virgínia. Passei para o próximo, do dia 19 de Janeiro de 2012.

— Querido diário, eu sei que a ideia inicial era de ter um diário mais direitinho, comigo contando o que aconteceu durante o dia, timtim por timtim, só que não dá, eu realmente não tenho nada pra contar… Quer dizer, hoje eu até que tenho. Eu fui comprar meus materiais com a minha mãe e me dei conta de que eu não preciso mais de material novo. Só tive que repor algumas canetas, grafite de lapiseira, folhas de fichário, mas de resto? Nada. Será que isso é crescer? – ela riu de si e olhou pro lado, um tanto saudosista – Saudades de quando comprar material era um grande evento. A minha mãe fazia questão de me fazer feliz nesses dias, ela me deixava fazer a festa nas papelarias, mas o engraçado é que hoje em dia eu nem ligo mais pra isso. – ela puxou o ar pra mudar de assunto – Agora enquanto algumas coisas perdem a magia, outras nunca mudam. Pois é… – ela fez uma careta de desgosto e continuou – Hoje eu descobri que a Dolores vai continuar na escola. – colocando a língua pra fora e simulando uma faca com os dedos, ela “cortou” o pescoço – Antes de passarmos na papelaria, fomos ao colégio pra comprar meu uniforme e lá estava ela, com a mãe. Que ódio dessa menina, nossa! Ela ficou super olhando o meu uniforme,me julgando, sabe? Porque tive de comprar 'G' pra tudo, enquanto ela usava uniforme de criança praticamente, de tão magra que a desgraçada é. Ódio!”

Tentei fazer um esforço pra não deixar que a raiva me fizesse desistir de assistir os vídeos outra vez. Em vez de ficar revoltada, me apeguei à memória desse dia e por mais que eu nunca tenha visitado essa lembrança antes, tenho esse momento bem nítido na cabeça. Eu me lembro de ter ficado bem feliz nesse dia, porque eu ganhei uma mochila e um tênis novo depois de muito insistir aos meus pais, tentando provar que os meus antigos estavam muito mirrados e não durariam outro ano. E sabe, eu nem tava observando a Virgínia comprar o seu uniforme e muito menos reparando no tamanho. Na verdade, pensei que estava exercendo muito bem o meu papel de fingir que ela não existia, pra não fazer confusão na frente do meu pai. Engraçado como que funcionam as coisas.

— Mas ela vai ver. Eu vou emagrecer tanto, que ela que vai desejar ter o corpo como o meu. Vai ser ótimo, pelo menos pra variar um pouco. Bom, é isso. Tchau.

E desligou a câmera.

Pensei que tava sentindo raiva, até que percebi que um sorriso torto havia se formado no canto da minha boca. Não sei porque estava sendo tão prazeroso descobrir que a Virgínia queria ter o corpo como o meu. Sou magrela, sem muitas curvas e me surpreende até hoje que eu tenha conseguindo atrair dois garotos, que pode até parecer pouco pras outras pessoas, mas a julgar a minha reputação naquela escola, é realmente louvável. Eu nunca imaginei que havia motivo pra Virgínia desejar ser ou ter algo de outra pessoa, ainda por cima desejar ter algo meu. No fim das contas, quem é a invejosa aqui mesmo?

Tive a obrigação moral de passar para o próximo vídeo, de 27 de Janeiro de 2012. O cabelo da Virgínia estava diferente, agora ela exibia um corte chanel e foi quando me lembrei que foi nesse ano, de fato, que ela nunca mais voltou a ter o cabelo longo. Particularmente, sempre achei as escolhas de corte de cabelo da Virgínia bem esquisitas, viu? Mas ela tava radiante, isso era inegável.

— Querido diário, faltam 3 dias pro primeiro dia de aula e decidi que eu queria voltar diferente pra escola. E então? Gostou? – ela sorriu abertamente e bagunçou os cabelos – Minha mãe sempre sugeriu que eu cortasse assim, só que eu ficava meio sem coragem, achava pouco feminino… Pra que eu inventei de falar isso em voz alta?? Ela me deu o maior esporro da minha vida! Começou com um papo de que o que é feminino e masculino não passavam de “convenções sociais”… – ela gesticulou aspas e continuou falando, não fazendo ideia do que estava dizendo, assim como eu também não sei do que ela tava falando – E que se eu quisesse me transformar em uma mulher forte, eu tinha de superar essas convenções e parar de dar tanta importância pras expectativas que a sociedade tem sobre mim, só porque nasci mulher. Não sei se eu entendi direito a mensagem que ela quis passar e fiquei numa sensação de obrigação, de que eu tinha que cortar o meu cabelo pra ser uma mulher forte, assim como a minha mãe, que tem o cabelo bem curtinho e é, basicamente, a mulher mais forte que eu conheço! Então mesmo que sem muita coragem, marquei no salão e cortei o meu cabelo. Num é que no final de tudo eu adorei? Voltei pra casa querendo ainda mais curto! – ela estava exibida, olhando de um lado pro outro, arqueando a sobrancelha e fazendo bico – Eu acho que afinou bastante o meu rosto. Só agora eu percebo que o cabelo longo não tinha nada a ver comigo. – jogando os cabelos pra trás e fazendo-os deslizar lentamente, formando uma franja sexy, ela parecia se sentir cada vez mais segura com relação à própria aparência enquanto se observava na tela da câmera – Eu to tão ansiosa, quero tanto que o Lucca me veja assim. Dizem que quando estamos satisfeitas com nossa aparência, acabamos nos tornando mais atraentes pros outros. Quero só ver isso na prática, então sim, to bem, bem, beeem ansiosa pro primeiro dia! É isso. Tchau. 

Me veio um mal estar só de lembrar do primeiro dia de aula de 2012. Ah, como eu me lembro!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dolores" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.