Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 51
Dolores




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Não, eu não podia assistir aquilo no seu quarto, era arriscado demais. Procurei desesperadamente a minha mochila, porque agora que eu tava fazendo algo de errado, tive a certeza de que a Leda decidiria que tinha coragem suficiente pra entrar no quarto da Virgínia e me flagraria bisbilhotando a vida de sua falecida filha. Lembrei que há mil anos a Dani tinha me emprestado (praticamente me dado) o seu pen-drive monstro de 128 GB, então o tirei apressadamente da mochila e quase não consegui conter o alívio de ter conseguido pegar todos os vídeos, mesmo que tenha demorado no quarto da Virgínia por tempo suficiente pra levantar suspeitas, só que nada aconteceu. Fechei todas as janelas que abri no notebook, fechei num certo desespero e saí do quarto dela o quanto antes.

— Leda… – falei com a voz tremida, que poderia facilmente parecer timidez, mas era ´puro nervosismo – Eu já vou indo.

Ela concordou com a cabeça, entristecida, e me acompanhou até a porta. Eu me despedi contidamente e fui andando, mas antes que eu desse dois passos após sair de sua casa, Leda me chamou, me fazendo gelar na hora.

— Obrigada. – ela disse antes que eu berrasse aos prantos que não era minha intenção pegar o diário da Virgínia.

Sorri educadamente, embora eu estivesse muito sem graça por receber, sem merecer, o agradecimento da mãe da menina que mais odiei na minha vida, cujo diário pessoal to levando pra casa sem ao menos a própria mãe saber que existe. Prometi pra mim mesma que nunca mais pisaria nesse lugar.

***

— Filha, você demorou. – minha mãe falou assim que encostei a porta.

— Foi mal, eu tava conversando com a Dani. – eu dei uma desculpa que eu sabia que ela não levantaria questionamentos e fui andando direto pro meu quarto.

— Não vai almoçar?

— Já almocei. – e encostei a porta do meu quarto logo em seguida, pegando o meu notebook que estava sobre a minha cama, colocando-o no meu colo e plugando o pen-drive na entrada.

Respirei fundo, com o coração batendo acelerado. Eu estava incrivelmente empolgada. Parecia loucura minha, mas eu queria muito saber o que ela falava nesses vídeos. Será que ela era mesmo essa cocada toda que todo mundo fazia parecer? Pelo sim ou pelo não, o meu computador não queria colaborar pra eu descobrir isso e demorou mil anos pra abrir o vídeo. Mas finalmente abriu.

— Querido diário…

A Virgínia estava de olhos baixos. Era impressão minha ou ela tinha vergonha da câmera? Virgínia com vergonha? Essa é boa. 

— Hoje eu to começando esse meu projeto de diário em vídeo, porque já cansei de tentar fazer um escrito. Eu me canso muito rápido e deixo um monte de coisas de fora, porque eu simplesmente não tenho paciência de relatar tudo escrevendo. Eu sei que eu poderia digitar, mas aí não seria um diário, seria?... Ah, até poderia ser, mas não vi problema em inovar um pouco e dar início ao meu diário em vídeos. Só quero ver até quando eu vou levar isso. A minha psicóloga disse pra eu não começar já com um pensamento pessimista, que isso só me atrapalharia…

Sabia que seria interessante ver o seu diário, olha aí: eu nem sabia que a Virgínia ia à psicóloga. Apesar de que nem to surpresa, porque faz total sentido, ela era bem louca mesmo.

— A minha mãe ficou meio receosa, porque ela achou que eu ia publicar tudo na internet. Num sei de onde ela tirou isso, como que se eu fosse a pessoa mais ligada em rede social, pra sair compartilhar assim um diário onde eu pretendo falar de coisas íntimas. – finalmente ela olhou diretamente pra câmera e eu senti um arrepio quando isso aconteceu – Mas eu to meio perdida, não sei como começar. Geralmente as meninas gostam de falar dos amores e coisas desse tipo, mas eu nunca tive um amor pra começar por aí. Quer dizer, tem um menino que eu gosto na escola, mas não adianta nada, porque ele não gosta de mim… – ela revirou os olhos e riu – Por que eu to escondendo o nome dele? Esse é o meu diário! Dãããã! – e começou a gargalhar – O nome dele é Lucca e ele entrou na escola no ano passado. Eu sempre tentei me aproximar, sabe? A Luíza, inclusive, me deu um empurrãozinho nisso, quando pediu que eu fosse apresentar a escola pra ele e tentar incluir o menino, porque ele não entrou no começo do ano e teria grandes chances de ser excluído pela galera. Foi graças a mim que ele conseguiu encontrar o grupo de amigos dele, que, a propósito, são colegas que eu curto também.

“Não é como que se fôssemos distantes ou que ele não saiba que eu existo. Nada disso. Eu não tenho dessa, se eu to interessada, eu demonstro mesmo, só que ele não me dá bola. Eu cheguei a pensar que ele meio que não me curtia porque eu sou assim, mais… – ela abriu os braços, fazendo arcos em volta da cintura – Só que boto fé que não, porque ele é tão legal, que duvido que ele deixaria de me dar bola só por causa disso. Se fosse assim, ele não daria bola pra Dolores também.

Ouvir o meu nome saindo da boca da Virgínia me fez sorrir. Não sei, foi engraçado de um jeito bizarro.

— Não que ela seja gorda. Aliás, muito pelo contrário… – assim que ela soltou uma risada maldosa, meu sorriso desapareceu – Mas todo mundo concorda que ela é feia e, aparentemente, o Lucca é a única pessoa do mundo que parece não enxergar aquela magrela azeda e vesga desse jeito. É muito estranho isso, não sei mesmo o que foi que ela fez, porque ninguém gosta dela naquela escola inteira e claro, porque ela é um saco. – de repente, ela estava bem mais à vontade de frente a câmera – E todo mundo fica zoando ela e tudo, mas o Lucca decidiu ser legal. Não que ele não seja comigo, mas eu realmente não entendo!

“Eu nem expliquei direito quem é a Dolores, né? A Dolores é a menina mais idiota do mundo! Ela é irritante, encrenqueira, barraqueira, invejosa… E ela simplesmente me odeia. Pois ela que fique à vontade, porque eu também a odeio. E olha, antes que fique uma má impressão, quero deixar claro que não fui eu que comecei! É que foi assim: quando eu tinha 6 anos, eu tinha uma melhor amiga, a Viviane, daí eu fiquei doente e acabei faltando aula por uma semana. Quando eu voltei pra escola, o que aconteceu? A Dolores roubou a minha melhor amiga e proibiu a Viviane de andar comigo. Cara, eu nem sei porque ela fez isso comigo, nós nem tínhamos problema nenhum uma com a outra. Só que foi assim que começamos a nossa rixa e eu prometi que ela nunca mais tiraria mais nada de mim.”

Dessa vez soltei uma risada amargurada. Então era isso que ela pensava que tinha acontecido entre a gente? Que eu roubei a Viviane dela? Mal sabia ela que a própria Viviane que me disse que não queria mais ser amiga da Virgínia, porque ela não aguentava uma amiga tão mandona e até ficou feliz quando soube que ela estava doente.

— A Dolores sempre foi assim. Ela gosta de competir comigo em tudo. Quando vê que eu tenho potencial de ser melhor do que ela, ela tenta me diminuir…

Meu tórax começou a tremer de raiva. Como assim eu tentava diminuir a Virgínia se era justamente o contrário?!

— Ela só morre de raiva porque nada do que ela diz sobre mim dá certo, porque ninguém dá ouvido pro veneninho dela. As pessoas sabem quem eu sou. Eu queria tanto que ela saísse do colégio esse ano, porque a única pessoa que eu acho que se deixa convencer pelas porcarias que essa garota diz, é o Lucca. Justo quem eu mais queria que soubesse das coisas boas que tenh...

Correção: foi uma péssima ideia ter trazido esses vídeos pra casa. Fechei meu notebook com força, sem a menor vontade de continuar assistindo aquela merda.

Sei nem porque eu to com raiva. O que eu tava esperando? Descobrir uma Virgínia diferente da que eu odiava? Uma Virgínia boazinha? Acabar descobrindo que eu estive errada por todo esse tempo e sentir culpa por tê-la odiado? É claro que esse tipo de coisa nunca dá certo! A Virgínia era exatamente o que eu esperava.


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