Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 50
Dolores




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Fiquei boba. Pela personalidade da Virgínia, foi uma grande surpresa ver que seu quarto não se assemelhava em nada com o que eu tinha em mente. Eu imaginava um quarto bagunçado, cheio de pôsteres de bandas de hardrock, de personalidades políticas e coisas do tipo, mas ele era o sonho de muita menina, inclusive o meu. Era bastante organizado, com alguns adereços que, provavelmente, ela colocou quando ainda era criança. Era um quarto infantilizado, mas muito bonito, sem dúvida. Laranja. Nunca refleti sobre as cores favoritas da Virgínia, mas se eu fosse chutar, nunca chutaria laranja, que é a minha terceira cor favorita.

Ainda bem que a Leda mencionou a quantidade de embalagens de chocolates e doces que estavam espalhadas pela cama e pelo chão, caso contrário eu teria ficado bem intrigada, porque não eram poucas. Não mesmo.

Sua cama era enorme, seu armário também; havia uma escrivaninha sensacional, com uma luminária lindíssima, que já cobicei em sites de compras. Havia uma estante de livros, que imagino que ela nem deva ter lido a metade, o que me deixou bastante angustiada, pra ser sincera. Sentei em sua cama e quase não pude acreditar na maciez de seu colchão. Olhando para o lado, vi uma pilha de cds. Nunca parei pra pensar no gosto musical da Virgínia também, às vezes eu tinha a sensação de que ela era tão idiota, que se brincar nem música ela ouvia, só que eu estava enganada. Dentre as suas pilhas havia até mesmo cds do The Killers, Arctic Monkeys, Blur e Franz Ferdinand. Nossos gostos não eram totalmente compatíveis, mas tinham lá suas semelhanças. Como que eu nunca soube disso? A resposta dessa pergunta é bem fácil de responder, mas de toda forma era muito esquisito saber de tudo isso agora. 

Larguei seus cds e levantei de sua cama antes que eu voltasse a sentir inveja da Virgínia, aquela inveja que me era tão familiar sempre que eu me comparava a ela. Eu nunca me senti bem sentindo inveja de alguém, nunca foi motivo de orgulho, sobretudo quando eu sentia da Virgínia. Me dói muito notar que esse sentimento continua existindo, mesmo com ela estando morta. Cara, pelo amor de Deus, há motivo pra se invejar uma pessoa que se foi tão cedo?

Eu sei que devia ir embora, superar seja lá o que for, mas eu continuei caminhando pelo seu quarto, imaginando como que a Virgínia passava seu tempo livre, até que meus olhos esbarraram em um notebook fechado, ligado a uma tomada. Engraçado, o único fato de a Virgínia sempre ter estado de fora das redes sociais me fazia pensar que ela nem mesmo tinha um computador em casa. Não era a primeira vez que eu estava enganada desde que entrei naquele quarto, mas enfim. Seu notebook era um dos melhores, muito melhor que o meu, diga-se de passagem. Fiquei tentada a me sentar e dar uma vasculhada, saber o que ela fazia, ouvia e via, mas achei melhor deixar pra lá. Continuei andando como uma barata tonta em seu quarto, abri algumas portas de seus armários e lancei um rápido olhar por suas roupas, roupas que nunca a vi vestida, já que passamos todos esses 11 anos nos vendo de uniforme no colégio.

Quando me dei por mim, parecia que eu estava procurando alguma coisa. Um diário, talvez. Eu queria acessar algo extremamente pessoal da Virgínia, eu queria saciar alguma curiosidade, que não era específica, mas que estava me consumindo. Eu queria preencher lacunas, o que não fazia o menor sentido, porque eu simplesmente não tinha esse direito. Eu odiava a Virgínia! Mas eu continuo querendo descobrir coisas. 

Para minha frustração, não havia diário algum. Se havia, ele estava bastante mocado em algum fundo falso de suas gavetas, porque eu vasculhei praticamente tudo. Eu estava parada no centro do quarto da Virgínia e mais uma vez meus olhos recaíram sobre o seu notebook, fechado e ligado à tomada.

Eu sabia do grande risco de perder tempo tentando acessar o seu computador, eu nunca conseguiria adivinhar sua senha, mas, ainda assim, eu abri seu notebook e levei um susto quando vi que ele estivera ligado por todo esse tempo e não tinha senha alguma. Minha primeira reação foi a de olhar pra porta e ver se a sua mãe não estava me observando, mas ela mesma disse que não tinha coragem de entrar no quarto da filha. Recolhi todos os meus pudores e fiz o que me deu vontade. Sentei na sua cadeira e comecei a mexer em seu notebook.

Não havia jogos, isso bem que eu imaginei. Virgínia nunca gostou mesmo de perder tempo com isso; jogos de tabuleiro, jogos de estratégia, etc, ela nunca parou pra jogar com o resto do pessoal, enquanto eu ficava esperando secretamente que alguém me convidasse nos intervalos. Suas pastas tinham um milhão de arquivos, muitos de músicas, filmes, séries de TV, documentários… A Virgínia era uma pseudo-cult. Ela adorava se gabar em sala de aula por causa disso. Então era assim que ela preenchia seu tempo livre, nada de surpreendente até então.

Continuei abrindo as pastas, procurando alguma de textos ou de poemas, porque era bem a cara dela ser metida a escritora, como todas essas meninas que gostam de pagar de intelectuais, mas antes que eu encontrasse qualquer vestígio de tentativas literárias, encontrei uma pasta cujo nome era “Diário”. Não sei explicar o porquê do meu entusiasmo, mas cliquei sem nem pensar duas vezes e me deparei com dezenas de arquivos de vídeo. 

Por um momento tive receio de abrir e descobrir que eram vídeos pornográficos que a Virgínia baixava escondido, colocando um título nada a ver na pasta só pra despistar. Depois me toquei da impossibilidade disso acontecer, porque ninguém colocaria um título tão interessante e chamativo como “Diário” pra esconder vídeos pornográficos. Parei de confabular e abri o primeiro vídeo de uma vez, abaixando logo em seguida o volume, pra não chamar a atenção da Leda.

Assim que o vídeo começou a rolar, a Virgínia havia editado pra que aparecesse a data. 5 de Janeiro de 2012. Quatro anos atrás. Ela ainda tinha o cabelo longo, num corte reto e sem graça. Ela falava pra câmera em formato de vlog.


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