Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 49
Dolores




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Freei imediatamente, tornei a me virar em direção à porta e me deparei com uma mulher muito mais envelhecida do que eu me lembrava. A mãe da Virgínia, uma mulher que, pelo menos na minha memória, era uma coroa bonitona, agora parecia uma senhora adoentada.

— Oi. – respondi instintivamente, dando passos tímidos em sua direção – Não sei se você se lembra de mim, mas eu sou…

— Eu me lembro de você. – ela pareceu meio ríspida, mas não tirei sua razão – O que você quer?

O que eu queria era muito difícil de verbalizar. Eu não sabia se o correto seria perguntar com jeitinho, dando voltas pra amaciar a carne ou se eu deveria ser direta, o que poderia ser duro demais... Talvez nem tanto pra ela, mas pra mim, que poderia receber como resposta aquilo que confirmaria meus temores.

Como que se estivesse lendo os meus pensamentos, ela acabou suspirando e disse, tentando ser um pouco mais paciente:

— Entra. – e abriu espaço pra que eu passasse.

— Com licença. – disse assim que atravessei a porta.

— Você gostaria de beber alguma coisa? Já almoçou?

— Não… Eu não… Eu não quero nada, obrigada. Eu só queria…

— Senta. – ela me interrompeu, apontando pro sofá da sala de visitas.

Notei a tensão do meu corpo quando pousei naquele sofá extremamente macio. Acabei me lembrando do quanto eu achara a casa da Virgínia confortável naquela vez, com móveis tão caros e finos. Eu senti tanta inveja e a lembrança disso só reforçou a minha sensação de culpa.

— Você dizia? – a mãe dela me incentivou.

— Desculpa, mas… Qual é o seu nome mesmo? – embora eu tenha formulado assim a pergunta, eu nunca soube o nome da mãe da Virgínia.

— Leda.

— Ah sim. – continuei agindo como que se já soubesse – Então Leda, me desculpa aparecer assim, sem mais nem menos. – puxei todo o formalismo que eu conseguia imitar e me esforcei pra falar bem – Eu sei que eu sou a última pessoa do mundo que você gostaria de ver, até porque muitos dos problemas que a Virgínia teve na escola eu estive envolvida, às vezes como culpada, às vezes não, mas…

— A culpa não foi sua. – ela respondeu ciente da pergunta que eu faria.

Aquelas palavras deveriam ter sido reconfortantes, mas, por algum motivo, meus olhos arderam e antes mesmo que eu pudesse ter tentado impedir, minhas lágrimas já estavam escorrendo pelo meu rosto.

— Como?

— A culpa não foi sua. – ela repetiu.

Quando a diretora Luíza anunciou a morte da Virgínia, embora ela tenha dito coisas muito bonitas sobre ela, em momento algum ela explicou a causa de sua morte. Esse era um assunto tabu entre todos da escola, ninguém sequer especulava em voz alta. A minha certeza era de que todos sabiam que era por minha culpa, por isso ninguém falava mais nada e agora a Leda, mãe da Virgínia, está dizendo que não, não é minha culpa. Por mais que essa informação devesse me deixar aliviada, isso foi difícil de engolir. Eu precisava destrinchar o porquê, eu precisava de explicações, então perguntei:

— Ela… – engoli em seco – Suicidou?

Essa me parecia ser a única forma que a Virgínia morreria aos 17 anos. Eu arruinei a Festa Junina que ela idealizou, que ela ajudou a montar. E na cabeça dela, talvez, eu ainda estava “roubando” o menino que ela gostava. Fazia todo o sentido.

— Não. A Virgínia não era disso.

Por que mesmo com a mãe dela tentando me isentar da culpa, eu não conseguia me sentir livre?

— Ela teve um infarto fulminante.

— Infarto? – repeti lentamente, desacreditada. Não sabia que adolescentes de 17 anos podiam ter infartos.

— Não havia nada a se fazer. – os olhos da Leda também estavam marejados – A culpa não foi de ninguém. Quer dizer, bom… – ela olhou pra cima, com os olhos brilhando de lágrimas – Eu poderia ter sido mais severa na cobrança de uma alimentação saudável, até porque na noite que... Que aconteceu, tinham muitas embalagens de chocolates e doces em volta dela, fora um monte de embalagens velhas que estavam debaixo da cama, mas de toda forma…

Eu estava resistindo a essa ideia. A Virgínia ter morrido por causa de uma infarto não me pareceu uma morte aceitável. Nem mesmo parecia uma morte digna de cinema, não era dramático o suficiente pra glamorizar. Jovens morrem pra isso, não é? Pra inspirarem lindas histórias de superação, não é isso?

— Mas isso não é… Justo.

— A vida não é justa. – ela riu amargurada.

Uma sequência de flashbacks se passaram pela minha cabeça. Imagens da Virgínia falando em público, rindo, me provocando, brigando comigo. Também tive vislumbres de eu brigando com ela, eu falando mal dela, eu a odiando! Se eu soubesse que ela poderia ter um infarto fulminante a qualquer hora, eu teria passado todos esses anos alimentando esse ódio? Será que eu teria quebrado o seu nariz se soubesse que ela tinha o risco de morrer de infarto a qualquer hora? 4 dias depois, mais especificamente?

— Eu sei que eu não era amiga dela. – puxei o assunto interrompendo o silêncio melancólico – Muito pelo contrário, na verdade. Mas… Será que eu posso ver o quarto dela? – nem eu sei de onde eu tirei essa ideia, mas assim que ela se passou pela minha cabeça, externalizei-a no impulso.

Eu esperava um “não” bruto de sua parte, quem sabe ela até me expulsasse da sua casa, mas a Leda me surpreendeu.

— A morte da Virgínia tem me demonstrado coisas muito interessantes sobre as pessoas, sabe? Coisas que eu não sabia sobre quem me rodeia. Você foi a única pessoa que veio me visitar. Nem os amigos dela tiveram a mesma… Posso chamar de “consideração”? – ela riu consigo e suspirou, olhando pra cima – Peço que você não se incomode com a sujeira que deve estar no quarto dela, porque eu não tive coragem de entrar lá desde o dia em que…

— Eu imagino. – ela não precisava completar a frase, eu a entendia. Aposto que a Virgínia teve o infarto no quarto e mesmo que não tenha sido lá, eu, no lugar da Leda, também teria um bloqueio de entrar no quarto da filha falecida.

— É só subir as escadas. É a única porta que está fechada.

— Obrigada.

Levantei do sofá e fui andando lentamente até as escadas, subindo degrau após degrau em uma paciência agoniante. Acho que eu estava esperando que a Leda não fosse tão educada comigo. No fundo, eu queria que ela censurasse meu pedido, só que ela reagiu de maneira tão contrária, que eu nem mesmo tive tempo de refletir que eu não tinha nada a fazer no quarto da Virgínia. Não parecia ser algo saudável. Só que antes mesmo de eu decidir que o certo seria ir embora de uma vez, eu já estava com a mão na maçaneta e entrando em seu quarto.


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