Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 5
Dolores




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É engraçado ver a Virgínia fazendo todo esse esforço pra me ignorar. Ou ela acha mesmo que eu não notei que ela tá forçando esse bom humor comigo sentada tão perto? Não é a primeira vez que isso acontece, só que mais cedo ou mais tarde ela cai em tentação e volta a puxar o outro lado da corda do cabo de guerra.

O que não entendo é qual o propósito dessa “folga” que ela me dá. Ela pensa o que? Que me dando um tempo, eu paro de ser atormentada, fico mais feliz e ela passa a merecer o Nobel da Paz? Se for, mal a Virgínia tá sabendo que é quando ela fica na dela que os outros triplicam os comentários maldosos, provavelmente pra compensar a falta de participação da minha maior rival. Nos últimos 30 minutos mesmo, já ouvi comentários sobre a minha brancura, a minha magreza, o meu estrabismo, os meus adereços e a minha maquiagem. Nada tão diferente das coisas que a própria Virgínia dizia, mas diferente dela, esses aí eu não tenho coragem de peitar.

A quantidade é uma coisa que me assusta. O que é estranho é que mesmo com a Virgínia sendo amiga de praticamente todo mundo da turma, quando ela me enfrenta, geralmente vem sozinha, o que é bom, porque assim eu me atrevo a rebater. Mas com todo o resto dessas pessoas eu simplesmente não dou conta. Parece até que eles conhecem exatamente a minha fraqueza e então vêm em bando, o que me paralisa e só me resta ficar quieta, esperando que eles parem.

Claro que parte disso se deve ao fato de que esse lance entre a Virgínia e eu é coisa antiga. Querendo ou não, temos intimidade. Bizarra? Bizarra, mas é uma intimidade. Tudo começou no 2º ano do Ensino Fundamental. Eu me lembro com tanta clareza: eu queria ser a Florzinha e ela também.

— Você pode ser a Lindinha. - a tia Suzana falou comigo.

Era bem normal eu ficar indignada quando estávamos brincando. Pra começar, eu ficava irritada em como que as pessoas sempre cediam às vontades da Virgínia; não somente as outras crianças, como que até as professoras. Era sempre ela quem escolhia as brincadeiras, todo mundo dava crédito pras suas sugestões e, logo, ela se transformou numa líder entre as meninas. Eu sempre me mordi de raiva por causa disso, porque eu não achava justo que tivéssemos de ceder aos caprichos da Virgínia sem eu ao menos a achar legal, só que não é de hoje que a minha opinião não conta.

Não bastando a liderança que entregaram de bandeja a ela, eu ainda ficava revoltada com os simplismos dos adultos, em como que eles intervinham em nossas discussões e davam soluções bobas, com argumentos imbecis, porque eu simplesmente não via as coisas daquela maneira. Por que eu tinha de ser a Lindinha se eu queria ser a Florzinha?

— Seu cabelinho é amarelo que nem o dela. Que tal? – a tia Suzana completou, tentando me convencer, como que se eu fosse a criança difícil e caprichosa.

— Ou a Docinho também. Seu nome começa com “D” igual ela. - a Virgínia tentou argumentar com aquela maldita língua presa.

— Tá mais pra você, que tem o cabelo preto que nem a Docinho! – contra-argumentei.

— Só que eu tenho o cabelo grande, que nem a Florzinha.

— Só que a Florzinha não é gorda que nem você! – elevei mais ainda meu tom de voz.

Nessa hora a professora deu fim à brincadeira e nos separou. Logo em seguida, ela me puxou pra uma conversa particular e explicou que eu não podia dizer esse tipo de coisa pras coleguinhas, que era grosseiro e eu podia machucar seus sentimentos.

Não vou bancar a sonsa e dizer que eu era apenas uma criança que dizia as coisas sem pensar, que a minha intenção não era a de magoar, porque era uma tremenda mentira, essa foi a minha intenção desde sempre. Só que em minha defesa, na minha cabeça eu só tava lutando pelo que eu queria e que se a Virgínia quisesse, ela poderia devolver um insulto e eu devolveria outro e seria assim até nos cansarmos, mas não, ela caiu no berreiro – e essa foi a primeira e única vez que a vi chorar.

Por um momento eu quase me senti mal e até tentei pedir desculpas no recreio, mas foi quando a Virgínia, rodeada de sua gangue de amiguinhas, disse que não queria me ouvir e me empurrou. Foi aí que a nossa rivalidade deu início e foi quando começou uma tradição de pessoas me detestando – é impressionante o poder de influência dessa garota.

Acontece que a Virgínia nunca soube superar esse episódio e uma semana depois desse dia, ela derrubou todo o meu lanche no chão de propósito. Minha reação? Pular em seu pescoço e arrancar umas mechas daquele cabelo fino, levando-nos pra diretoria. Desse dia em diante foi só ladeira abaixo. Era uma se vingando da outra incansavelmente. Mas uma hora ou outra erguíamos bandeiras brancas quando estourávamos o limite e éramos ameaçadas de sermos verdadeiramente punidas, muito embora, no 9º ano, tenhamos sido suspensas por uma confusão que não vem mesmo ao caso agora.


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