Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 48
Parte II - Agosto - Dolores




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Essas férias foram bem difíceis.

Não fui ao velório da Virgínia. Não achei que eu deveria aparecer por lá e fingir que nunca tivemos problemas, falar como uma amiga querida, rindo de nossas confusões com saudosismo, como que se em algum momento tivesse sido legal, porque não foi. Eu não sou assim, eu não transformo pessoas que morreram em heroínas. Nossas confusões não eram "só" confusões, mas devo confessar que me passou pela cabeça pedir pra que minha mãe me levasse até lá. Não sei nem dizer qual foi o pensamento bizarro que me motivou a ter curiosidade de ver a Virgínia no caixão. Fiquei me perguntando se o seu nariz ainda estaria quebrado; bom, provavelmente sim, porque ela morreu 4 dias depois do episódio.

Nem sei o que teria acontecido se eu aparecesse no velório. Me apavora só de imaginar a mãe dela chorando e me acusando por ter sido a culpada da morte da filha, com todo mundo me olhando e me odiando por ter sido a responsável pela retirada da Virgínia de suas vidas.

Acabei me conformando de que a última imagem que tenho da Virgínia é a dela chorando, com o sangue escorrendo por suas mãos. Não é a melhor imagem, mas eu não podia fazer nada pra mudar isso. Faria se houvesse alguma alternativa, mas não há. O conformismo, no entanto, não foi – assim como ainda não é – suficiente pra me dar paz de espírito.

Pode até ter parecido que passei as férias me martirizando quando deixei a desejar em alguns hábitos de higiene. Meu pai, achando que seria engraçado, disse que a minha boca devia estar podre, isso porque eu passei uns 4 dias sem escovar os dentes. Acho que nada comparado aos 15 dias sem lavar o cabelo. Mas não, eu não tava me martirizando, eu só não tava com ânimo pra nada. Sentar tava bem difícil, então passei boa parte do tempo deitada mesmo, assistindo televisão.

Antes das férias eu já fiquei preocupada em ser alvo de comentários hostis na escola quando voltasse lá na semana seguinte, pra fazer as provas. Fiquei com medo das pessoas que sabiam da confusão que rolou um dia antes da Festa Junina, que elas soubessem da minha culpa tanto quanto eu sei. Só que pra minha surpresa, na semana de provas, ninguém falou nada comigo. Não sei se por respeito à Virgínia, pelo luto ou porque agora eles me odiavam a ponto de nem mesmo olharem na minha cara.

— Você não acha que as pessoas estão me ignorando de propósito? – perguntei preocupada.

— Não viaja. – foi o que a Dani me respondeu, mas ela também não me encarava.

Todo mundo sabia que eu briguei com a Virgínia por causa do Lucca. Todo mundo sabia que o Lucca e eu não estávamos mais juntos. Todo mundo sabe que eu fui a errada da situação, sem nem mesmo questionarem o porquê de eu ter feito o que fiz. Felizmente, as férias chegaram, mas elas não aliviaram tanto assim as minhas tensões.

Não falei com o Lucca até hoje. Se ele tá com raiva? Triste? Angustiado? Deprimido? Não sei de nada. Ele simplesmente escolheu me ignorar. Decidi respeitar a sua escoha, até porque ele perdeu uma amiga. Não sei se to fazendo justiça dizendo que também perdi algo... Não sei bem o que, mas eu perdi.

Matutei por muito tempo como seria a volta às aulas e eu tinha alguns palpites, só que não consegui optar por nenhum deles e apostar com seriedade. Não sabia se ficaríamos de luto até o final do ano, se seríamos a turma mais deprimida da história do nosso colégio, se passaríamos da turma mais indisciplinada pra mais disciplinada, calada e comportada. Eu não fazia ideia de como seria exatamente, mas eu tinha lá as minhas expectativas e foi um choque quando me deparei com exatamente aquilo que nem mesmo se passou pela minha cabeça.

As pessoas estavam agindo como que se nada tivesse acontecido. Na chamada, quando meu nome foi mencionado, as piadas de sempre foram feitas. Quando lancei um olhar fuzilante ao autor de uma delas, a resposta foi:

— Pra gente despedir, né? Nosso último primeiro dia de aula, poxa.

Ele poderia ter dito isso em tom sarcástico, como que tentando me punir por algo que fiz, só que não, ele estava se divertindo as minhas custas, exatamente como sempre fez. Foi realmente perturbador o clima de constância na escola, isso não me pareceu certo.

Tudo bem, é injusto dizer que nada mudou. Houve uma ausência na chamada. “Virgínia” foi retirado da lista, aparentemente. Pelo menos tiveram esse cuidado. E a Jéssica, claro, trocou de escola. A Dani me contou que ela não queria formar naquele colégio sem a Virgínia, que ela não aguentaria.

— E como você sabe?

— Ué, sabendo. – a Dani não quis estender muito esse papo.

Até então, essa foi a reação mais plausível, a única pessoa que realmente deu a entender que perdeu uma amiga. Bem diferente do Guilherme, agora representante, que em vez de tratar da memória de sua antecessora com respeito, tá se achando o máximo por ser o “dono do pedaço”. Repetia toda hora “dá licença, que eu sou o representante”, “deixa o representante falar, fazendo favor?”, sempre rindo e tentando fazer os outros rirem. Isso me deixou bastante irritada, pra ser sincera. Sobretudo porque a Virgínia podia ser a autoritária e chata o quanto fosse, mas sempre levou a sério o cargo que conquistou e o mínimo que ele poderia fazer, já que não é capaz de levar nada a sério, é ficar calado.

Olha, eu não sou a maior simpatizante da Virgínia, isso nem mesmo tá em questão, mas eu fiquei chocada com a frieza de quem eu pensava que eram amigos dela. Será que eu estive em transe o tempo inteiro e nunca enxerguei que as pessoas, na verdade, nem gostavam tanto assim dela? Ou eu to em transe agora e delirando? O Guilherme mesmo, que parecia tão próximo da Virgínia, tava sendo muito exagerado nas macaquices, como que se ele não estivesse ocupando o lugar de uma colega que morreu! Os nossos colegas fofocavam sobre as férias e trivialidades como que se não tivesse acontecido uma tragédia no mês anterior. Até mesmo os professores fingiram que nada aconteceu e deram prosseguimento ao cronograma, enquanto eu pensava que eles diriam algumas palavras em homenagem a uma aluna que costumava ser uma das favoritas.

— As pessoas ficaram loucas? – comentei com a Dani no intervalo, olhando para o nosso corredor, observando todos aqueles adolescentes conversando e vivendo suas vidas normalmente – Será que todo mundo se esqueceu que a Virgínia morreu?

— Ah Lola, ninguém esquece esse tipo de coisa. Só que também num dá pra parar a vida por conta disso, né?

Eu não entendia. A minha vida não era mais a mesma desde então. Eu consigo contar nos dedos de uma mão quantas vezes eu vi a cor do céu durante as férias, porque passei todo o tempo enfurnada em meu quarto, sem querer falar e nem sair com ninguém. Eu não consigo pensar em nenhuma outra maneira de lidar com a morte da Virgínia que não fosse assim, isso considerando que eu nem gostava dela, então eu não to entendendo bulhufas da reação dessa galera que idolatrava essa menina por onde ela passava. 

***

— Eu sei que terminar o namoro é muito triste. – minha mãe veio conversar comigo num dia desses.

Como explicar que não era o fim do meu namoro que tava me deixando assim? O que havia de errado com as pessoas? Será que elas não enxergavam mesmo ou tava fugindo do cerne da questão?

— Mas você precisa tomar um ar.

O mundo enlouqueceu e ninguém mais quer falar da Virgínia, é isso? Todos esses anos eu tive de aguentar a encheção de saco dos outros com ela, com o mundo babando em tudo o que essa menina fazia, pra quando ela morre, ninguém dar a mínima? Eu simplesmente não consigo entender. Não sei se a opção “ninguém mais quer falar da Virgínia” é melhor do que “todo mundo tá fingindo que nada aconteceu”, eu só sei que as duas estão conseguindo me tirar do sério.

— Vai me dizer que agora você gosta dela? – a Dani falou impaciente na medida em que insistia nesse assunto.

— E eu preciso gostar dela pra me importar com a morte de uma colega? Nossa Dani, eu não sabia que você era tão insensível, na boa.  Se pra você tá de boa fingir que a menina nunca existiu, vai em frente...

— Eu não to fazendo isso. Mas a questão é que a vida continua seguindo, você quer que eu faça o que? Você mesma fez o maior esforço pra que eu detestasse a Virgínia e quer que eu goste dela agora por quê?

— Eu não preciso gostar de uma pessoa pra entender que tudo isso tá errado. Todo mundo conhecia a Virgínia, todo mundo gostava dela… É exatamente esse o ponto: todo mundo gostava dela! E porque somente eu, que sou a única que posso dizer com todas as letras que a odiava, pareço estar incomodada com o comportamento de vocês?

— Talvez porque você é a única que tá sentindo culpa.

A Dani colocou um dedo cheio de impurezas bem no meio da minha ferida. Eu tava arrependida por ter mencionado, mesmo que brevemente, sobre a culpa que eu sentia pela morte da Virgínia. Eu devia ter guardado pra mim que achava que ela tinha se suicidado por minha culpa. Só que, aparentemente, ninguém ligava pra isso também. 

Muito desconfortável com essa conversa, me levantei, dizendo que ia ao banheiro, e também não saí de lá até ouvir o sinal anunciando o fim do intervalo.

***

Eu havia pensado nisso algumas vezes durante as férias, mas não me encorajei o suficiente pra concretizar esse pensamento. Eu não tava com coragem de levantar da cama pra tomar banho, quem dirá ir até a casa da Virgínia. Eu não sei bem o que faria por lá ou o que falaria caso me encontrasse com a sua mãe… Quer dizer, eu sabia muito bem o que eu queria com uma visita desse tipo, só não sabia se devia. Também não sabia se eu aguentaria a resposta da grande questão que permeia a minha cabeça. Mas não dava, eu não podia mais conviver com isso, eu precisava fazer essa pergunta.

No fim da aula, depois de longos 15 minutos tentando decidir se eu deveria ou não ir até a casa da Virgínia, finalmente comecei a andar, refazendo os passos do dia em que fomos a sua casa no dia da reunião da Festa Junina.

Foi somente quando cheguei à porta de sua casa que me lembrei que, naquele dia, só estávamos nós da equipe responsável pra montar a festa, então provavelmente não teria ninguém em casa. No fundo, eu torci pra que não tivesse ninguém e, de certa forma, me proteger de saber a verdade de uma vez por todas, mas já que eu estava ali, não custava nada tentar e então toquei a campainha.

Como eu havia imaginado, ninguém abriu a porta. Contradizendo o alívio que eu senti minutos antes por ver que eu ainda me pouparia do grande pesadelo que seria descobrir que a Virgínia se matou por minha causa, fiquei levemente desapontada por ter ficado no vácuo, só que não insisti muito, até porque eu ainda tava meio confusa quanto ao que eu queria de verdade. Então dei meia volta e fui caminhando sem pressa em direção à calçada, até que ouço um:

— Pois não?


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