Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 35
Dolores




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/704941/chapter/35

 

Eu tava incomodada com a ideia de encarar meus pais depois da conversa de ontem, na real. Eu não queria ver nenhum tipo de tratamento diferente pelas coisas que eu disse – se é que eles mudariam de atitude. De toda forma, eu não queria arriscar. E antes mesmo de dar as caras na casa, mandei uma mensagem pro Lucca, chamando pra passar o dia aqui comigo.

Como eu imaginei, meus pais estavam diferentes. Eles pareciam cautelosos ao mesmo tempo que atenciosos, como que se querendo evitar que eu explodisse de novo, mas isso tava me matando de vergonha, porque o Lucca percebia a diferença e estranhava, assim como eu, até porque ele sabe como que meus pais são.

Não podia continuar aquele desconforto e então propus que fôssemos pra uma praça aqui perto, pra conversarmos à toa mais à vontade e longe da maluquice que tava rolando na minha casa. Até levei meu caderno e um lápis, sei lá, vai que me brotasse alguma ideia de rascunho e o Lucca sempre fala que adora me observar desenhando, pensei "por que não?". 

Como eu disse, o Lucca percebeu que tinha alguma coisa estranha e perguntou:

— O que tava rolando na sua casa?

— Ah… - eu preferiria não falar sobre isso – É que eu falei umas coisas pros meus pais ontem e acho que eles ficaram meio bolados, daí aquela aberração eram eles tentando me tratar melhor.

— Hum. - ele soltou um barulho com o nariz (acho que foi uma risada) e perguntou brincando com a minha mão – E o que você disse?

— Não foi nada. - desviei o olhar, fingindo que me distraí com a gritaria das crianças que brincavam de bola ali por perto – Eu só tava me queixando um pouco de como as coisas são, sabe?

— Não, não sei. - ele colocou o dedo no meu queixo e me forçou a encará-lo – Como que são?

Tinha alguma coisa nos olhos do Lucca que me inspirava coragem. Às vezes era por isso que eu os evitava, eu temia ter coragem de falar as coisas que se passam pela minha cabeça e ele soubesse como que às vezes eu não sou tão de boa como tento fazer parecer. Por isso respondi apenas:

— Injustas. - o que não era bem uma mentira.

— Em que sentido?

— Ah, sei lá… - desviei o olhar novamente, dessa vez pra tentar organizar o meu raciocínio – Tem gente que parece que tem tudo. Não basta ter grana, tem que ser bonito, inteligente…

Ele soltou uma risada divertida.

— E isso te irrita?

— A você não?

— Não. - respondeu com naturalidade – Já me conformei em ser uma pessoa que não tem tudo. Desses itens aí que você falou, acho que só tenho um e fico feliz pelo meu item.

— Qual?

— Ô amor! Inteligente, né? – ele riu, ofendido – Fiquei chateado agora, você nem reconheceu qual era o meu item. - e fez bico.

— Mas é que você disse que só tinha um, daí fiquei confusa. Poderia ser “bonito” também. - eu queria ter falado isso sério, mas acabei me derretendo num sorriso.

— Num sei daonde que você tirou que eu sou bonito. - essa foi a sua vez de desviar o olhar, envergonhado – Mas obrigado.

— Olhando pra você, ué. Você é lindo… E não é pouco.

Ele sorriu tímido.

— Ainda bem que eu me contento só com a sua opinião.

— Ah, mas eu não sou a única a achar isso. - infelizmente, diga-se de passagem.

— Mas não é como que se muitas pessoas achassem também. Só que isso me deixa meio encasquetado, porque eu fico confuso, pensando se as pessoas não me acham bonito porque eu sou feio mesmo ou se é porque eu sou assim.

Toda vez que o Lucca ameaçava chegar nesse assunto, eu me sentia estranha e dessa vez não foi diferente. Eu queria muito ter uma opinião formada pra saber conversar dessas coisas.

— Você meio que já disse isso outra vez. - tentei arriscar aprofundar o papo – Que você acha que as meninas não te disputam porque…

— Eu não acho, eu tenho certeza.

— Por quê?

— Ué, olha as pessoas com quem eu ando. Sério, Lola, eu sou amigo dos meninos mais cobiçados da escola. Eles são populares e seja por tabela ou não, eu também sou. Aliás, as pessoas, de um modo geral, parecem gostar bastante de mim.

— Isso é verdade. - tão verdade! Não consigo enumerar quantas vezes eu fiquei plantada, esperando o Lucca terminar de conversar com sua infinidade de amigos.

— Só que o fato de as pessoas serem simpáticas comigo e até gostarem de mim não impede que elas sejam racistas. E, tipo, não to querendo ser egocêntrico e nem nada, mas por que nenhuma das meninas que vivem apaixonadas pelos meus amigos nunca demonstraram uma pontinha sequer de interesse por mim? Elas fazem rodízio de paixonites por eles, mas eu sempre to de fora dessa dinâmica aí. Não que eu sinta falta, até porque agora eu não ligo… - ele apertou mais forte a minha mão – Mas é que meio que me machuca quando as meninas se referem aos meus amigos por “lindo”, “gato” e coisas do tipo, enquanto eu sou sempre o “fofo”. Não acho que seja coincidência o único negro do meu grupo de amigos ser o único a não ser chamado de “gato”. Ou sei lá, talvez eu só seja feio mesmo… - ele riu no final, tentando aliviar a tensão do seu desabafo. E a julgar pela quantidade de coisas que ele disse, parecia estar entalado na sua garganta por muito tempo.

— Tira isso da sua cabeça: você é lindo.

— Obrigado, amor. - ela beijou a minha mão – E você é linda.

— Eu agradeço, embora eu saiba que eu não sou.

Ele arregalou os olhos, espantado. Mas não, ele não iria me convencer.

— Fala sério! Eu que sou branca e loura, que de acordo com a lógica dos racistas deveria ser tomada como linda, mas que, muito pelo contrário, sou considerada horrorosa, é porque deve ter uma coisa de muito errada comigo, não acha? - aproveitei o clima pra fazer o meu desabafo também.

— Pois saiba que não tem!

— Ai Lucca, eu tenho espelho, tá? Eu sei quais são os meus defeitos. Olha só o meu cabelo! Ele não tem forma, é todo esquisito. - a sua expressão foi de total desaprovação, então eu preferi trocar de item – Eu sou vesga…

— Para, Lola.

— Parar por quê? Se eu sou mesmo. E o que é que tem? – na verdade tem muita coisa, mas eu não queria que ele se preocupasse, pensando que eu fico magoada por ser assim, por mais que eu fique.

— Tá, ok. Você até pode ser, mas é só um pouquinho. E só aparece mesmo em foto. Pessoalmente quase não dá pra notar… E pra ser bem sincero, eu até acho bonitinho. - ele fez uma rápida carícia entre as minhas sobrancelhas.

— Não importa. E, além disso, ainda sou magrela.

— Ok, você é magra. E daí?

— Magra não, magrela. - corrigi, porque tem uma diferença.

— Eu não sei qual é o problema nisso.

O duro é que no fundo ele tá certo. Afinal, qual é o problema nisso? Eu sou magrela, ele é negro. E? O que mais? Por que isso tem que ser motivo pra que os outros nos deixem desconfortáveis? Mas o fato é que, no fim das contas, conscientes de que não estamos fazendo nada de errado apenas existindo, ainda assim ficamos na bad quando nos constrangem por essas razões. Só que eu não queria mais falar sobre isso e tentei desconversar. 

— Posso te desenhar? – perguntei enquanto abria meu caderno.

Ele foi pego de surpresa e começou a sorrir, fazendo charme.

— Por que você quer me desenhar?

— Porque você é lindo. - disse acariciando seu rosto – Vai! Fica parado. - dei o comando enquanto eu apontava meu lápis.

— Acho que eu nunca vou me acostumar com esse elogio. São tão poucas pessoas que acham isso de mim… - ele tentou retornar ao desabafo inicial. Eu o entendia, acho que por guardar esses pensamentos pra si por tanto tempo, ele devia ter muitas coisas a dizer.

— Quantas pessoas?

— Ah, tem você e a minha mãe e… Só. - soltou mais uma risada, pra disfarçar o quanto fica magoado com isso. 

— Como assim “só”? E a Virgínia?

Não sei pra que eu meti a Virgínia no meio, mas me pareceu justo comentar e dar o devido crédito, até porque se não o Lucca não ia acreditar no fato de que éramos mais pessoas que admiram sua aparência. Só que tudo o que ele disse foi:

— Ih…

— O que foi?

— Já percebeu que nós sempre terminamos falando dela?

— Mas eu to mentindo? Ela também te acha bonito.

— Não sei se ela acha. - senti que ele queria finalizar logo essa parte da conversa.

— É claro que sabe! 

— Ela é legal comigo, só isso.

— Todo mundo é legal com você. - revirei os olhos - Não é só isso, ela é apaixonada por você.

— Lola… - ele usou o tom repreensivo, mudando a expressão que eu estava desenhando.

— O que? Vai fingir que nunca percebeu?

Ele ficou calado, voltando à pose inicial.

— Tudo bem, a culpa não é sua. E eu sei que vocês nunca teriam nada.

— Por que não?

Eu não queria dizer o que eu tinha em mente em voz alta. 

— Vira o rosto assim. - e mexi no seu queixo pra desconversar mais uma vez.

O Lucca tem razão quando diz que o racismo não é o único problema do mundo. E eu também sei que não se está isento de ser alguém que discrima só porque é mais esclarecido com relação a um dos preconceitos. Não é porque você se opõe ao racismo que deixa de ser preconceituoso de outras maneiras. E falando nisso, eu to bem contente por ver que a Virgínia tá engordando de novo.

— Até quando vocês vão levar essa briga ridícula de vocês? - ele perguntou meio impaciente. E não posso negar, ele me contagiou e respondi seca:

— Até acabarmos a escola e nunca mais nos vermos.

— Sério isso? – ele parecia decepcionado – Será que antes disso, não seria melhor ser mais gentil?

— E por que eu seria? Ela não é comigo, oras. 

— Aí você vai ser grossa por conta disso?

Afirmei com a cabeça.

— Eu acho que vocês deviam ser mais agradáveis uma com a outra. Vocês se surpreenderiam.

— Lucca, não é assim que funcionamos.

Não mesmo.

Embora que… Bom, teve um dia, no 8º ano, que eu tava largada agoniadíssima em uma cadeira no corredor da diretoria, com muito enjoo e acreditando que eu morreria a qualquer hora, porque meu pai parecia que não chegaria nunca pra me levar ao hospital ou mais provavelmente pra casa. Até que nessa hora, a Virgínia estava passando rumo à sala da diretora Luíza, quando ela me viu e parou na metade do caminho, perguntando:

— Você tá passando mal?

Até me passou pela cabeça responder um “não é da sua conta”, mas eu tava mal demais pra caçar confusão e só confirmei com a cabeça, com os olhos pesados. Eu me lembro de tê-la visto preocupada e foi quando ela disse:

— Vou pegar a sua mochila. - e saiu correndo.

Foi sutil e rápido, mas ela foi gentil. E se eu estivesse me sentindo um pouquinho melhor, eu teria agradecido quando ela voltou com a mochila e disse:

— Melhoras.

Na realidade, eu até pensei em agradecer no dia seguinte, mas eu descobri que tava com virose, fiquei de atestado e faltei 3 dias que emendaram com o final de semana. Acho que isso foi tempo suficiente pra Virgínia se esquecer do seu lapso de bondade. 

Na segunda-feira, quando voltei pra escola já recuperada, durante o intervalo, quando estávamos só a Dani e eu, eu aproveitei pra mostrar um vídeo de uma coreografia de matsuri que assisti mil vezes nesses dias de folga e que eu já havia aprendido.

— Ai amiga, eu não gosto muito dessas coisas. - a Dani tentou se esquivar.

— Não, não precisa gostar. Só presta atenção na coreografia, que ela é muito boa! - e apertei o play.

Eu tinha passado a noite anterior inteira ensaiando a coreografia, imaginando em como que o Lucca ia me achar descolada caso me visse dançando com perfeição essa coreografia – pois ele havia me dito que achava bonitinho em uma conversa descontraída qualquer. Só que eu tinha vergonha de dançar em um lugar muito evidente e me conformei de que o Lucca nunca me veria naquele corredor vazio. De toda forma não liguei muito, e comecei a acompanhar os passos de dança só pra Dani ver mesmo.

Até então o corredor estava vazio, só com a Dani sentada, segurando meu celular, e comigo dançando na sua frente, mas acho que o som chamava atenção e algumas pessoas começaram a espiar o que tava acontecendo. Tentei bancar a superior e fingir que nem mesmo os vi, mas era tarde, eu já tinha notado que eram os meninos da minha sala. Eles não só estavam espiando, como assistindo escancaradamente o que eu tava fazendo. Foi nessa hora que a Virgínia esticou o pescoço pro corredor e bastou que ela me visse, pra começar a me imitar de um jeito ridículo, fazendo chacota e arrancando risadas de todo mundo. Só não sei dizer direito se estavam rindo com ela ou dela, porque tava realmente muito feio o que ela tava fazendo, mas de toda forma só quem se sentiu mal fui eu, então acho que no fim das contas estavam mesmo rindo de mim.

Então não, não nascemos pra sermos gentis uma com a outra. Na única vez que parecia que ia rolar uma trégua, a Virgínia deu um jeito de ser escrota de novo e anular qualquer sinal de agradabilidade da sua parte. Por isso nem me dou ao trabalho de contar quando ela foi legal pra mim, porque isso não quis dizer nada.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dolores" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.