Dolores escrita por Marília Bordonaba


Capítulo 33
Dolores




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— Pode passar o sal, Ceição?

Não. Não enquanto ele continuar me chamando assim.

— Ceição?... Ceição?! - meu pai gritou.

— Dolores! - minha mãe o deu suporte.

Peguei o sal e passei pra minha mãe, que me olhou com desaprovação, passando, ela mesma, o sal pro meu pai.

— E esse mau humor todo, hein? Brigou com o namorado? - meu pai me provocou.

— Não. - respondi seca, assim como ele merecia.

— Dá pra falar direito com a gente? - minha mãe se meteu, como de hábito.

Era muito difícil pra mim falar direito com eles. Volta e meia eles reclamam que eu sou muito fechada, que vivo no meu quarto, num falo com ninguém e todo esse mimimi de pais supostamente rejeitados pelos filhos, só que eles falam como que se dessem abertura pra que fôssemos próximos. Não é mesmo esse o caso. Só eu sei o quanto eles são intimidadores e julgam Deus e o mundo.

— Você tá toda azeda hoje!

— Só hoje? - minha mãe completou.

— Nem parece que tá apaixonada.

— Caramba! Será que vocês não conseguem me deixar em paz? - e empurrei o prato de comida, perdendo o pouco apetite que eu tinha.

— Deixaríamos se você nos colocasse a par da sua vida.

— Pra que eu faria isso, mãe? Vocês fazem pouco caso de tudo que eu conto mesmo.

— Experimenta. - ela me incentivou.

Analisei rapidamente a situação e vi potencial na proposta, afinal de contas, sei que o Lucca não entenderia e ainda por cima ficaria defendendo aquela cobra o tempo inteiro, enquanto a Dani… Bom, a Dani não tem sido a mesma desde que começou a namorar.

— Hoje eu fui na casa da Virgínia.

— Virgínia é quem? – sem nem levantar a cabeça, meu pai perguntou perdido, já que ele sempre confundiu o nome das pessoas que estão na minha vida, como que se elas fossem muitas.

— A menina que bateu na Dolores naquela vez. - minha mãe deu uma forcinha.

— A da suspensão?

Afirmei com a cabeça.

— E o que diabo você foi fazer na casa dessa selvagem?

Lembro do escarcéu que o meu pai fez na época da suspensão. Ele bateu boca com a mãe da Virgínia e tudo, dizendo que ela teria de pagar a conta do hospital, já que por culpa da filha meu joelho deslocou. A mãe dela, tão irritada quanto o meu pai, disse que ele me levasse a um hospital público se quisesse, porque ela não pagaria a conta da “víbora” - sim, nessas palavras - que arrancou metade do cabelo da filhinha e ainda a expôs de um jeito irresponsável. No fim das contas minha mãe, que estava mais por dentro da confusão toda, se meteu, apaziguando a situação e impediu que uma segunda pancadaria acontecesse naquele dia.

— É que teve uma reunião da festa que eu to ajudando a organizar e foi na casa dela.

— E o que tem? Aconteceu alguma coisa por lá?

— Não exatamente. - puxei o prato da minha janta de volta, apenas pra mexer no arroz com o garfo e ter pra onde olhar enquanto eu falava – É que… Não. Deixa pra lá. Vai parecer besteira. - desisti em cima da hora.

— Fala. - minha mãe me encorajou novamente.

Ergui o olhar e notei que meu pai não tava muito interessado naquela conversa, então aproveitei a deixa e disse:

— Por que a Virgínia tem que ter tudo melhor do que eu?

Essa frase prendeu a atenção do meu pai e agora os dois olhavam pra mim, espantados e mudos.

— Falei que era besteira. - e voltei a mexer no prato.

— De onde você tirou isso? – meu pai perguntou ofendido.

— De lugar nenhum, eu… - pra que mentir agora se eu já falei a parte mais difícil? – Ah, ela tem uma casa incrível! E tem mil amigos, é popular, sabe falar em público, sabe articular as ideias, provavelmente já tem tudo planejado pro futuro e eu tenho certeza que ela vai se dar super bem. Fora que ela sempre consegue o que quer, não importa quantos obstáculos coloquem no caminho, ela sempre dá conta de conseguir as coisas. E, não bastando, ela, com certeza, cresceu melhor que eu, tem mais corpo que eu, é mais bonita… E até tem o nome melhor que o meu! - respirei fundo depois do desabafo – Eu sei que tudo isso só parece drama, mas como que uma pessoa tão insuportável pode conseguir tudo sem o menor esforço, enquanto eu, que me esforço todo dia pra ser uma pessoa melhor, não consigo nada? Eu sou uma ninguém na escola, todo mundo ri de mim, todo mundo me detesta e me quer longe.

Odeio ter colocado meus pais naquela situação, onde eles se sentiam obrigados a falarem alguma coisa que me consolasse. Eu até diria alguma coisa como “nem precisam dizer nada”, só que eu queria que eles dissessem, que me explicassem por que a vida é tão injusta.

Os dois trocaram olhares e a minha mãe foi a primeira a se manifestar.

— Filha, você é linda…

— Ah, mãe! Por favor, me poupe. - revirei os olhos, indignada com essa abordagem totalmente amadora. Ela acha que eu não tenho espelho?

Minha mãe ajeitou a postura e tentou novamente:

— Eu aposto que você também tá sendo injusta. Como que você diz que não consegue nada? Você é uma boa aluna, os professores dizem que é uma das melhores.

— Nota qualquer um consegue. - a interrompi.

— É uma menina boa, num faz nada de errado, não se mete em muita confusão, tem amigos…

— Tenho só a Dani. - contra-argumentei.

— E o Lucca? Essa Virgínia tem um namorado bacana que nem o Lucca?

Nessa ela me pegou. Acho que o Lucca é a única exceção à regra de que a Virgínia consegue tudo o que quer.

— Não. - respondi cabisbaixa – Mas até a amizade e a admiração do Lucca ela tem. Se eu to ajudando nessa festa, por exemplo, é só porque a Virgínia foi proibida e ele tomou as dores dela, daí tá lá, fazendo o que pode pra fazer as vontades dela, sabe? É isso que eu to tentando dizer. Como ela consegue? Que bicha sortuda!

— Não sei. - meu pai, por fim, resolveu dar a sua opinião – Você diz que ela consegue conquistar tudo isso, que terá sucesso e outras coisas. Você acha mesmo que ela não se esforça pra isso?

— É, filha. E mais: você se lembra do motivo daquela briga de vocês?

— Mãe, o que isso tem a ver?

— Tudo! Você tá enviesando demais a sua raiva e tá deixando de enxergar o todo. Lembre-se de que ela não tem tudo o que quer e se tem agora, bom, não foi sempre assim.

Pra que eu inventei de contar pra eles? Sabia que ninguém me entenderia. E eles ignoraram coisas que eu disse, nem mesmo deram bola quando eu disse que as pessoas riem de mim. É por isso que vale a pena ficar calada. Eu sou uma idiota mesmo.


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