Dolores escrita por Marília Bordonaba
— Não vai comer mais? – o meu pai perguntou.
— Não, não quero. - me levantei apressada, joguei meu prato na pia e corri pro meu quarto, pra me arrumar pra quando o Lucca chegasse.
Eu não podia me arrumar demais, porque: um, eu to em casa e não faz sentido ficar arrumada em casa; dois, se eu me arrumar demais, o meu pai ficaria desconfiado e insinuaria que o Lucca é o meu namorado. Não que eu não queira que ele seja o meu namorado, eu só não quero aguentar as inconveniências típicas do meu pai.
Mas o que é “não se arrumar demais” no fim das contas? Reforçar o lápis de olho, passar mais uma mão de rímel, vestir uma roupa relativamente nova e usar sapato fechado dentro de casa não é se arrumar demais, é? Bom, agora tanto faz, porque ele já chegou.
***
Na mesma medida em que eu estava animada pelo Lucca vir pra minha casa pela primeira vez, eu também fiquei preocupada com o que ele veria. Minha casa é bem simples, tem uns sinais de infiltração aqui e ali, uns pedaços de piso faltando e nossos móveis, eletrônicos e eletrodomésticos são todos ultrapassados. Fora a maldita internet que não tem e que, sem dúvida, vai atrapalhar um pouco a nossa tarde de estudo.
— Ou o pobre acompanha a tecnologia ou fica sem comer e sem estudar, você escolhe. - meu pai sempre me vem com esse tipo de resposta quando eu pergunto por que não compramos uma televisão ou um computador novo.
Fiquei insegura quanto ao que o Lucca ia achar da minha casa, muito embora eu saiba que ele é legal demais pra ligar pra isso. Tão legal, que meu pai simplesmente não saía da cozinha pra que a gente pudesse estudar.
— E o que você pretende fazer depois da escola?
Essa pergunta foi a morte. Mas o Lucca é inteligente o bastante pra agradar na resposta, mesmo não sendo exatamente o que o meu pai gostaria de ouvir.
— Na verdade eu to um pouco perdido. Eu gosto muito de Biologia e Geografia, mas os meus pais falam que antes de eu decidir de vez o que eu quero, eu tenho que pesquisar todas as opções que as minhas áreas de interesse oferecem. Então eu não sei ainda.
— Entendo. - meu pai disse sério, surpreso com o formalismo do Lucca.
Quando finalmente meu pai nos deixou a sós e eu pensei que teríamos a chance de termos um momento juntos, o Lucca já foi logo pegando o caderno e tirando suas dúvidas do exercício de Geografia, que como ele disse, ele gosta muito, mas que no momento tá com dificuldade.
Dificuldade, sei.
Eu subestimava o Lucca até então. Sempre tive pra mim que os melhores alunos eram aqueles que nunca tiram dúvidas, justamente porque eles são bons. É o meu caso e o caso da Dani também. Eu ficava um pouco incomodada com a quantidade de vezes que o Lucca erguia a mão em sala de aula e o quanto ia à mesa dos professores pra fazer perguntas; parecia a Virgínia e por isso me incomodava. Eu pensava que isso demonstrava que ele tinha mais dificuldades do que eu, mas no fim das contas esse encontro “escolar” provou que eu estava enganada. O Lucca é um excelente aluno e suas dúvidas fizeram com que eu, que achava que tinha tudo muito bem entendido, duvidasse do meu conhecimento do assunto.
Fizemos o que demos conta da lista e eu quase aplaudi de felicidade quando vi que teríamos um tempinho para conversarmos.
— Devo confessar que eu não sabia que você era tão inteligente. - soltei com toda a minha admiração escancarada na minha voz e na minha cara.
— Ah não? – ele riu modesto.
— É que você é tão de boa, não fica se gabando. É difícil saber que alguém é tão bom aluno desse jeito.
— Você também não se gaba e todo mundo sabe que você é boa aluna.
Todo mundo sabe e todo mundo tenta tirar uma casquinha, copiando meus deveres e colando de mim. E eles sabem justamente porque eu não peço ajuda e quase sempre sou chamada pra receber as Cartas de Honra ao Mérito. Eu poderia ter dito isso em voz alta, mas aí eu contradiria o que ele acabou de dizer. Em vez disso, preferi alfinetar a concorrência:
— Diferente da Virgínia, né? Que não se aguenta e joga na cara de todo mundo que é a-melhor-aluna-de-redação-da-escola. - afinei a voz e falei com a língua presa, tentando imitar o jeito da Virgínia de falar.
— Não acho que ela joga na cara.
Fiz a minha melhor cara de descrença.
— Ah, ela só não nega que é boa. - o Lucca riu sem jeito.
— Num dá na mesma?
Ele deu de ombros e começou a guardar seu material, sem dar nenhum indicativo de que gostaria de alongar a conversa. Encarei isso como um mau sinal.
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