A Filha do Coringa: a Origem escrita por Apenas mais alguém qualquer


Capítulo 2
Ha, ha, ha


Notas iniciais do capítulo

Aqui vai o primeiro capítulo!!!



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Cinza ou azul? Castanho ou âmbar? Não, não, não, não, não. Azul cinzento e castanho amarelado. Sim, exatamente isso. Essas eram as cores dos olhos que me encaravam no espelho toda manhã.

            Sim, eu tenho uma cor em cada olho. Sim, eu tenho heterocromia. Sou uma aberração? Talvez. Isso depende do dia. Há dias que eu me olho no espelho e vejo uma menina normal, onde a única característica diferente é a falha genética visível em meus olhos. E há dias em que a única coisa que eu vejo é uma menina desequilibrada, louca, psicopata, demente e os olhos apenas complementam a esquisitice.

Os meus olhos são uma marca de que eu sou diferente dos outros, embora heterocromia não seja tão anormal assim. Algumas pessoas acham esse “defeito” uma perfeição. Mas eu estou bem longe de ser perfeita e muito menos normal. Porém, o que eu posso falar? Eu nem sei quem eu sou de verdade, mesmo.

Hoje era um daqueles dias em que eu me olhava e não sabia quem era aquela menina com cara de doente de tão pálida e cabelos castanhos meio cinzentos, sem vida ou brilho, que não eram nem totalmente enrolados nem totalmente lisos. Parecia que minha vida era uma dúvida ou incerteza constante. Até Libra, meu signo indicava indecisão. Nem uma coisa, nem outra.

Nem louca, nem normal.

         Eu morava em um subúrbio em Nova York, que mais parecia uma segunda cidade. Mas agora estava me mudando para Gotham novamente, nasci em morei lá até os 3 anos de idade. Vários sentimentos tomavam conta de mim, mas apenas 2 se destacavam. Medo e alívio.

            Dois sentimentos tão distintos, geralmente opostos. Medo e receio por estar voltando à cidade onde havia nascido e que talvez eu pudesse descobrir algumas coisas sobre o meu passado, das quais eu poderia não gostar. E ainda, havia esse estranho sentimento. Toda vez que via Gotham City no mapa, na TV ou no jornal, prendia meus olhos naquilo por alguns instantes e me perdia. Sabia que pertencia de tal maneira àquele lugar, mas tinha um certo receio por causa dessa atração. Podia ser algo perigoso, já que meu passado naquela cidade era tão sombrio quanto a cidade em si.

            Também sentia alívio por estar deixando o subúrbio de NY que fora meu lar por tanto tempo. Eu sei que é meio estranho, mas se vocês estivessem em meu lugar também sentiriam alívio. Já causei muito naquele bairro de elite e em minha escola. Todos os moradores de lá pensavam que eu era louca, e eles tinham razão. E eu tinha dado para eles outra razão para me temerem 6 meses atrás...

            Eu tenho Transtorno Dissociativo de Identidade, também conhecida como dupla personalidade. Em outras palavras, louca. Tenho isso desde que me lembro de mim mesma, não sei como surgiu, mas geralmente é uma forma da mente bloquear algum trauma, e eu nunca soube que trauma era esse. Entretanto eu sei que há um... eu simplesmente sei.

   Meus pais também não sabem, eles dizem que foi algo repentino, um dia eu era a Cecily que eles conheciam e no outro eu era uma demoninha que pulou da sacada do 2º andar da casa e depois não lembrava de ter feito isso. Uma criança de 3 anos de idade com tendências auto-suicidas não é uma coisa normal.

Eu já falei que a última coisa que eu me lembro antes daquele incidente é ter perguntado pros meus pais o que aconteceria se eu pulasse da sacada? Eles me responderam e depois eu me lembro de ter acordado no hospital completamente desorientada.

Meus pais acharam que era um pequeno surto infantil e que eu tinha aprendido com a lição. Bom, eu não pulei mais da janela, mas isso não me impediu de arrancar todas as cabeças das minhas bonecas e rabiscar todas as paredes dos corredores. Claro que eu não lembrava de nada e continuava a ser a menina meiga, obediente e calma que eles conheciam.

Esses meus surtos foram piorando e piorando, até que eles desconfiaram que eu podia estar doente da cabeça. Eles eram psiquiatras e trabalhavam em manicômios, mas dentro de casa eles eram apenas pais. Que pai ou mãe, mesmo psiquiatras, desconfiariam que a filha queridinha deles era louca?

Eles achavam muito estranho eu não lembrar das proezas que eu fazia e me colocaram em quarentena domiciliar durante algumas semanas. Instalaram câmeras pela casa inteira e vigiavam através delas. Até então eles não tinham visto pessoalmente a “outra eu” e quando a viram pelas imagens das câmeras ficaram assustados. Aquela não era eu. E mesmo assim continuava sendo eu mesma depois dos surtos.

Foi então que eles me diagnosticaram com dupla personalidade. E para contribuir para a infelicidade deles, não há uma cura, apenas um tratamento psicoterápico que duraria o resto da minha vida. E mesmo com esse tratamento, eu ainda estaria suscetível à crises de insanidade caso a minha “outra eu” descobrisse uma pequena brecha em mim.

Pelo menos, pensei, não vou precisar nunca mais ver as pessoas que me apontavam e diziam que eu era louca. Podia recomeçar minha vida em Gotham e dar motivos para as pessoas de lá pensarem que eu não era tão louca assim. Era isso que eu pensava ao me despedir do meu quarto na nossa pequena mansão.

Parecia que eu estava deixando todo o meu passado e o da “outra eu” aqui. E eu não queria que minha outra personalidade arruinasse a minha nova vida em Gotham como ela fez na minha vida no subúrbio. Era até doloroso lembrar de tudo que Ela tinha feito não apenas comigo, mas com os meus amigos, meus vizinhos, pessoas que eu nem conhecia direito e os meus pais. Meus pais eram os que mais sofriam, pois a responsabilidade dos meus “atos” era deles e eu sei que eles tentavam fazer de tudo para que todos me aceitassem do jeito que eu sou, mas é difícil ser aceita quando é impossível saber qual estrago irei fazer amanhã.

 A vida tinha me presenteado com um botão de RESTART e eu iria apertá-lo com o maior prazer.

— Cecily! Cecy, desça logo!

Dei meu último vislumbre em meu quarto detonado, cheio de rabiscos e buracos nas paredes e prometi às duas versões de mim que tudo o que tinha acontecido naquela casa, iria ficar ali, em segredo profundo. Ninguém da minha nova vida iria era obrigado a saber do meu passado sombrio. Fechei meus olhos bem forte e disse o mantra que eventualmente usava para reprimir qualquer lembrança da minha “outra eu” ou até ela mesma.

ENTERRE, ENTERRE BEM FUNDO.

            E ainda com os olhos fechados, tateei até a porta rapidamente e a fechei tão rápido quanto. Encostei a cabeça na porta fechada, respirando bem fundo até conseguir recuperar o fôlego e acalmar o coração. A minha “outra eu” não estava gostando do que eu estava fazendo, na verdade ela não gostava de nada que a reprimia, e isso incluía meu mantra, e como conseqüência, causava um certo mal-estar em mim. Ficava enjoada e meio tonta, além  de ficar sem fôlego e meu coração acelerar.

            - Cecy? Cecy? Cecy, você está bem? – senti uma mão no ombro.

            Acordei do meu transe rapidamente e vi que era minha mãe. Não falei nada, só aquiesci com a cabeça e a encarei com o olhar que só ela era capaz de decifrar. Então ela deu o seu típico sorriso franzido no canto da boca, que significava “eu entendo”. Ela sabia que era difícil lidar com as lembranças ou qualquer coisa relacionada à “outra eu”.

            - Quando estiver pronta desça então, - ela deslizou a mão pelos meus cabelos – só falta você.

             Então me deixou sozinha no corredor. Demorei um pouco para conseguir sair do lugar e dar alguns passos pelo corredor em direção à escada, não pensei que seria tão difícil finalmente sair daquela casa que me trazia tantas lembranças ruins. Era como se a minha outra personalidade tivesse se agarrado à elas e não quisesse soltar, por mais que eu a puxasse.

            A casa estava tão vazia que cada passo que dava, ecoava pela casa inteira. Cada barulhinho era intensificado pelo silêncio profundo. Parecia um filme de terror. Alguns móveis cobertos com lençóis, os rangidos do piso de madeira e os fantasmas da minha “outra eu” passeando pela casa.

Então, surgiu um obstáculo em minha frente.

Um espelho.

 Tinha que correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo. Correr e ignorá-lo.

Passando por ele o mais rápido que conseguia, com a cabeça ereta e olhar fixo em minha frente, vi, através de minha visão periférica, a minha “outra eu”.  Sua cabeça estava virada em minha direção, seguindo-me com seu olhar com aquele sorriso torto de psicopata, rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo. Rindo.

Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!

            Finalmente o ultrapassei e senti um descarregamento em minha mente e corpo. Meu corpo chegou até tremer de alívio. Sentia-me liberta, como nunca tinha me sentido antes.

            Aproveitando meu estado de enlevo, desci as escadas rapidamente e corri pelos cômodos, até chegar na porta de entrada. Não era sempre que eu deixava de sentir o peso da consciência da minha “outra eu”, o qual era  constante. Todos os dias, todas as horas, todos os minutos e  segundos eu a sentia em minha mente. E nada era tão bom quanto sentir que ela tinha sumido, mesmo que por alguns instantes.

            Ao cruzar a porta de entrada da casa pela última vez em minha vida, percebi que estava abandonando todas aquelas lembranças ruins, aqueles fantasmas que tanto me atormentavam. Meus pais diziam que ia ser bom para mim, que eu podia melhorar se eu realmente me esforçasse, tentasse criar amigos, sair mais de casa e me divertir. Fazer todas essas coisas que quase nunca tinha feito enquanto morei aqui no subúrbio.

            Meus pais estavam me esperando no carro e impaciente como todo pai é, ele buzinou, me apressando. Mas eu insisti em olhar apenas uma última vez aquela casa assombrada e disse baixinho:

 Até nunca.

Finalmente entrei no carro e enquanto atravessávamos pela última vez aquelas ruas não olhei para trás nenhuma vez, estava focada em minha música no fone de ouvido, com os olhos fechados.

 Naquele momento, escutando minha música, eu me sentia liberta, como se fosse alguém que tinha ficado preso por muito tempo e agora estava saindo da cadeia. A diferença era que eu tinha um mar de possibilidades diante de mim neste momento e não tinha a menor ideia do que me aguardava.


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Notas finais do capítulo

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