O que não dá pra evitar e não se pode escolher escrita por The Escapist


Capítulo 5
V


Notas iniciais do capítulo

~olar



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V

2000

 

As pessoas costumavam dizer que o tempo curava tudo. Talvez isso fosse verdade, mas Ulisses não acreditava que aquela vergonha um dia o deixasse. Quando se olhava no espelho, já não via apenas um rosto bem feito, com lábios carnudos, nariz afilado e aqueles olhos verdes que a tantos encantavam. Agora, quem o encarava de volta era um garoto confuso que fazia tudo errado.  

Passou as mãos pelo cabelo, bagunçando-o um pouco, mas logo voltou a pegar o pente e deixá-lo arrumado. Terminou de abotoar a camisa e colocou a gravata borboleta. Queria estar feliz, no entanto, a única coisa em que conseguia pensar era que estava cometendo um erro. Ouviu uma batida na porta e, em seguida a cabeça de seu irmão mais velho surgiu dentro do quarto.

— Vamos? É suposto que a noiva se atrase, não você. — Marcelo entrou no quarto e ficou ao lado do irmão; deu tapinhas de apoio nas costas dele. — Júnior, você precisa se animar um pouco.

— Não me chama de Júnior. — Tentou sorrir enquanto pegava o paletó para vestir. — O pai e a mãe...?

— Já foram na frente, o Maurício também.

Ulisses parou no meio da escada, hesitante. Era uma péssima hora, ele sabia, mas sentia como se suas pernas se recusassem a continuar.

— Ulisses, é sério, nós estamos atrasados. Por que você está tão nervoso, mano? A parte mais difícil, você já fez.

Achou a tentativa de seu irmão de ser engraçado muito bizarra; preferia que Marcelo não fizesse piadas com sua situação. Rolou os olhos e respirou fundo.

— Você está fazendo um péssimo trabalho como padrinho.

— Ok, ok, quando eu for me casar, você vai poder dar o troco. Agora vamos embora.

Era maio, o mês das noivas. Tinham escolhido a data porque dava sorte. Bem, essa era a história oficial. A verdade era que a gravidez de Natália já estava entrando no terceiro mês. Não que isso fizesse muita diferença para Ulisses, mas ele não poderia simplesmente deixá-la sozinha com a responsabilidade de um filho e a pressão das duas famílias.

Ele ficou em silêncio durante todo o trajeto até a igreja, enquanto Marcelo tagarelava. Verdade seja dita, os esforços de seu irmão para animá-lo eram notáveis; de toda a família, ele fora quem mais o apoiara e, apesar de discordarem em muitas coisas, gostava de poder contar com ele. No entanto, havia outra pessoa com quem gostaria de contar.

Já chegou à igreja em cima da hora, de modo que foi direto para o seu lugar. Seus pais, a mãe de Natália e outros parentes mais próximos das duas famílias estavam sentados na primeira fila à esquerda. Arthur estava na da direita, junto com os amigos da república. Tentou fugir dos olhos dele, mas foi incapaz de fazê-lo. Enquanto qualquer outra pessoa não iria querer vê-lo, mas Arthur estava ali mostrando que era diferente, que, quando dizia que gostaria de superar o que tinha acontecido e seguir em frente, não estava falando por falar.

Tudo aconteceu exatamente como “mandava o figurino”. Apesar de diferente da garota que ele conheceu, Natália estava linda, com os cabelos presos e uma tiara na cabeça, maquiada, e a barriga de três meses de gravidez aparecendo um pouco.

Depois da cerimônia na igreja, os recém-casados e seus convidados seguiram para a recepção em um buffet cheio de pompa, algo que ambos teriam dispensado, mas — pelo que Ulisses gostava de chamar de ironia do destino — as mães dos dois tinham se unido para organizar aquela festa. Não era como se pudessem dizer “não” às duas.

— Será que a gente pode ir embora? Ninguém vai reparar, não é? Quer dizer, supernormal que os noivos saiam à francesa... — Os olhos pidões de Natália estavam fixos na taça de champanhe que Ulisses bebia. Ela meramente pôde fingir um brinde. — Não é justo que você possa beber e eu não.

— Você sabe que a vida não é justa, né? — Ela deu de ombros. — E, pelo que eu sei, nós ainda vamos ter que dançar valsa.

— Não. Ulisses, eu te amo o suficiente pra me casar com você, mas dançar é algo que eu não faço.

— Tudo bem por mim, mas você vai ter que contar à mamãe.

Natália choramingou e Ulisses a abraçou e beijou sua bochecha. Ele a amava, disso nunca duvidara, porém, já tivera uma amostra de que amor não era sempre o bastante.

— Ei, vai lá falar com o Arthur. Ele está muito quieto. Eu vou procurar algo pra comer. Esse garotão aqui não é moleza. — Depois de um beijo rápido nos lábios dele, ela o deixou. Ulisses hesitou um pouco antes de ir até seu amigo.

— Parabéns, a sua noiva está linda. — Havia uma nota de sarcasmo na fala de Arthur, no entanto, Ulisses nem sequer poderia dizer qualquer coisa sobre isso. Ele seria eternamente refém dos seus erros. — Bom, eu ia mesmo te procurar, pra me despedir. Eu tenho que ir.

— Arthur, eu sinto muito.

— Você deve sentir mesmo, só que isso não muda muita coisa na prática, sabe? Eu realmente pensei que você fosse contar pra ela antes de assumir esse compromisso, mas...

— A Nat já passou por muita coisa. Ela não precisa de mais isso. Eu errei com você, não vou errar com ela.

— Eu espero que você cumpra essa promessa. — Antes de conseguir dizer alguma coisa, Ulisses sentiu a mão de Arthur em seu ombro e ele continuou: — Eu falo isso de todo o coração. Ainda vai levar um tempo pra que eu possa deixar o que houve entre nós pra trás, mas... eu sei que a vida é feita de encontros e desencontros. Agora você está com a Nat, e ela é uma ótima garota, a mãe do seu filho... Essa pode não ser a vida que você planejou ou sonhou, mas é a que você tem. Eu espero que possa ser feliz com ela.                               

Quando Ulisses ia abrir a boca para prometer se esforçar para que aquilo acontecesse, Natália apareceu. Ela ainda estava mastigando e lambeu os dedos para retirar os farelos de docinhos que haviam ficado neles.

— Ai, desculpa roubá-lo de você, Arthur, mas é que a dona Ruth tá chamando a gente pra tirar foto. — Rolou os olhos. — Ela não vai se cansar disso nunca? E a gente vai ter que dançar mesmo. Eu tentei, até fingi que ia desmaiar... — Suspirou. — Desculpa...

— Não, imagina! Ele é todo seu. Literalmente e com a benção de Deus! — Natália deu uma de suas risadas exageradas.

Ela parecia muito feliz, alheia à troca de olhares entre seu marido e o amigo dele. Arthur não a culpava por isso também; enfrentar uma gravidez não planejada provavelmente era muito difícil — talvez tão difícil quanto ser traído pela pessoa a quem amava, embora de um jeito diferente —, então tinha direito de estar radiante por ter alguém ao lado para dar apoio.  

— Você não existe, Arthur. Olha, se não fosse por você, a gente não estaria aqui hoje. — Apontou de si para Ulisses, enquanto os olhos começavam a ficar marejados. Arthur atribuía a emoção tanto ao momento quanto aos hormônios da gravidez. — Esse palhaço teria me deixado dormir na rua se você não estivesse em casa naquele dia.

— Nat, tem certeza de que você não tá bêbada? — Ulisses tentou brincar, embora sua voz estivesse falhando um pouco. Ele levou uma cotovelada nas costelas.

Não havia como negar que eles formavam um belo casal. Se um dia conseguisse esquecer a traição de Ulisses, talvez até pudesse acreditar que os dois tinham sido feitos um para o outro.

— Bom, eu já estava indo embora mesmo.

— Arthur... — Natália fez uma cara tristonha, mas depois sorriu. — Aposto que você “tem que estudar” — citou o amigo. Ele deu de ombros.

— Ano de monografia. — Abraçou-a, depois trocou apenas um aceno rápido com Ulisses; foi embora sem se preocupar em se despedir de mais ninguém.

Quando chegou ao seu apartamento, atirou-se à cama sem nem mesmo trocar a roupa. Então chorou. Era sincero quando dizia torcer pela felicidade do casal, o que não tornava nada mais fácil. O que ele iria fazer? Queria voltar a ser amigo de Ulisses como antes, e estava se esforçando, contudo, se continuasse tão próximo a ele, aquela ferida nunca iria cicatrizar. Era uma pessoa boa, mas até sua bondade tinha limites, e mais dia, menos dia, surpreenderia a si mesmo desejando que aquele casamento fracassasse. E não gostaria de se tornar o aquele tipo de pessoa. O único remédio que lhe parecia possível era se afastar um pouco e, talvez assim, pudesse salvar aquela amizade.    

 

— x —

 

Arthur usou-se de todas as estratégias para se manter ocupado. Prometera a si mesmo que não deixaria de viver por causa de Ulisses, ainda que seus sentimentos não tivessem mudado. Seus planos para o futuro poderiam existir sem ele.

Estava no último ano da faculdade, com a cabeça voltada para o trabalho final. Além das aulas regulares, tinha um estágio — agora em sua área de formação, numa empresa de telecomunicações — e, para preencher o pouco que lhe restava de tempo livre, treinava para melhorar seu inglês. Paralelamente ao trabalho de conclusão de curso, estava se preparando para disputar uma vaga para fazer pós-graduação na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Aquilo era o mantinha com foco na realidade. Talvez a perspectiva de morar fora do país fosse crucial para ele superar o fracasso do namoro.

Ulisses voltara para a casa dos pais. O plano era que ele e Natália ficassem lá por alguns meses enquanto encontravam um apartamento de que gostassem. Porém, o tempo foi passado, ele estava ocupado com o último semestre da faculdade e a gravidez de Natália se tornou difícil, com riscos de complicações, por isso, ela passava a maior parte do tempo em repouso — até decidiu trancar o curso por um tempo. Assim, o pequeno Gabriel nasceu, Ulisses se formou, e eles continuaram lá.

Quando terminou a faculdade, Arthur pôde passar a se dedicar às provas da seleção. Felipe havia se formado também naquele ano e já voltara para sua cidade natal; Leonardo e Davi tinham viajado para a casa dos parentes, assim, Arthur havia bastante tranquilidade para estudar. Estava no meio da revisão de um artigo que seria publicado em uma revista científica internacional quando Ulisses apareceu para uma visita. Dizia ter passado para pegar o resto das coisas que estavam ali, mas isso era uma desculpa ridícula, porque ele já fora várias vezes a fim de recolher seus pertences, e sempre sobrava algo. Perguntava-se o que ele faria quando não restasse mais nada.

A tentativa de ficar longe era unilateral, e Ulisses não ajudava em nada, sempre tão carente de atenção. Ele enrolou um pouco, fazendo perguntas sobre seus planos para o ano seguinte, mas Arthur tratou logo de desconversar. Os “planos” ainda nem poderiam ser chamados assim. Primeiro, teria que ser aprovado em Stanford. Não queria que expectativas fossem criadas ao redor deste assunto.              

— E como a Nat está? — perguntou. Pretendia que fosse uma pergunta educada, daquelas que a pessoa fazia e esperava por uma resposta padrão.

Estavam sentados no sofá, agora desocupado, já que, com o fim das aulas, Davi tinha encaixotado tudo. 

— Estranha, pra falar a verdade.

— Como assim? 

— Ela e a mamãe não se dão muito bem, você sabe...

Não era de admirar. Dona Ruth e Natália eram como água e vinho; estranho seria se elas se dessem bem.

— A gravidez foi difícil e depois ela ainda ficou um pouco deprimida... Enfim, como não tem muita paciência com o bebê, mas não pode brigar com ele, ela briga comigo. — Passou a mão no rosto. — Por qualquer motivo. Se eu respirar perto do Gabriel, ela já fica nervosinha.

— Ninguém disse que seria fácil, Ulisses.

— Não, mas também ninguém disse que seria tão difícil. Nós não temos nem um ano de casados e... Cara, se eu tiver que mediar mais uma discussão da minha mãe com a Nat... — Parou de falar e baixou a cabeça.

Não deveria estar ali se lamentando, não com Arthur. Porém, quem mais poderia ouvi-lo? Se fosse conversar com o pai, ele apenas lhe daria um sermão sobre ter pensado antes de fazer besteira; seus irmãos fariam piadas.

— Desculpe, é que você continua sendo a única pessoa em quem eu confio.

Arthur queria que Ulisses percebesse que não poderia ser o ombro amigo naquele caso, que não era a pessoa mais indicada com quem ele poderia desabafar, mas sempre fora incapaz de dizer não a ele.

— A gravidez mexeu com a Nat. Daqui a pouco, ela volta ao normal — foi a coisa mais otimista que conseguiu dizer. — As coisas vão melhorar quando vocês estiveram na própria casa. Sei lá, acho que é natural que a sogra e a nora não se deem muito bem... Vocês estão pensando em ter sua própria casa, né?

— Claro, claro, só que pra isso eu preciso ter um emprego. — Ulisses deu uma risada, como se a ideia de ter um emprego fosse a coisa mais engraçada do mundo. Então voltou a ficar sério e a passar as mãos nos cabelos, exasperado. — Meu pai fica mandando mil e uma indiretas por causa disso. O que ele quer que eu faça? Eu me formei há menos de um mês! Essas coisas não acontecem da noite pro dia... E ainda tem o vovô, que fica me azucrinando, dizendo que eu deveria estudar pra ser juiz.

Arthur ficou um instante pensando nos próprios pais e em como eles eram tranquilos. Quase nunca se metiam na sua vida, apesar de serem amorosos o bastante; quando conversavam, faziam perguntas sobre o que ele andava fazendo, mas, de forma geral, limitavam-se a apoiar suas decisões. Certamente teriam ficado contentes se decidisse ser médico ou advogado, contudo, quando contou que preferia “estudar computadores”, não houve nenhum tipo de cobrança. Detestaria viver numa família na qual todo mundo se achava no direito de decidir sua vida. Por isso que, às vezes, ele pensava que os dramas de Ulisses não eram tão infundados. 

— Pelo menos o bebê está legal, não é?

Ulisses sorriu. Ele havia ficado apavorado quando soubera que seria pai, mas agora um sorriso bobo parecia brotar dos lábios sempre que falava do filho.

— Sim, sim, está ótimo. Chora muito e acorda mil vezes durante a noite. Não é à toa que a Nat vive parecendo um zumbi... Mas ele é saudável e esperto. Aliás, tem uma foto aqui. — Tirou a carteira do bolso e pegou uma foto de Gabriel. — A cara do pai e o gênio da mãe. Ele ainda é tão pequeno... Quando eu penso que sou responsável pelo adulto que ele vai se tornar... isso me assusta mais do que qualquer coisa no mundo.  

Vendo-o falar daquele jeito, Arthur lembrava-se por que o amava tanto. Ulisses às vezes parecia a pessoa mais confusa do mundo, no entanto, tinha um grande coração. Talvez um dia se tornasse um homem admirável. A paternidade provavelmente ajudaria com isso, porque a chegada de Gabriel já tinha provocado muitas mudanças na vida dele e ainda traria outras tantas.

— Parece que finalmente você chegou à vida adulta.

— É, acho que sim. Espero que se torne mais fácil com o tempo. E obrigado por tudo.

— Ok. Você pode contar comigo... sempre.

 Aquilo contrariava sua tentativa de manter uma distância segura de Ulisses, todavia, não era uma daquelas coisas que se dizia por dizer. Parte de si sempre sentiria aquela dor pela traição que sofrera, mas talvez seu destino não fosse ficar longe dele.


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