Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 9
Livro 1 Capitulo 9 - Está frio lá fora




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Novamente Efémero encontrava-se a observar as Montanhas de Cristal através da janela de um comboio. Da ultima vez que o tinha feito, à uma semana atrás, interrogara-se sobre os mistérios que o Norte Gelado encerrava. Tinha ido em busca de respostas ao Império de Cristal, e de novo tinha voltado lá, não para procurar respostas lá, mas ir procurá-las ao território dos antepassados dos póneis, onde nenhum pónei pousava os cascos à várias centenas de anos.
Apesar de tudo, Efémero não poderia ir às cegas. Precisava de obter um local mais exacto do que uma simples direcção. Por sorte não lhe foi difícil encontrar e contratar um unicórnio para lhe lançar o feitiço localizador uma vez mais. Traçando a nova direcção sobre o mapa, Efémero obteve assim a triangulação do seu destino ao cruzar as direcções que obteve em Poneivile e no Império de Cristal. Felizmente não era tão distante como Efémero contasse que fosse, mas mesmo assim ainda eram uns bons quilómetros para além das Montanhas de Cristal.
De todas as alternativas em que Efémero tinha pensado, voar foi a que lhe pareceu mais viável. Trepar as Montanhas de Cristal teria sido suicídio. Ele não percebia nada de montanhismo e aquelas montanhas eram um desafio mesmo para um montanhista experiente. O maior problema seria arranjar um veiculo voador. Efémero sabia pilotar balões mas pelos vistos os póneis de cristal não. Aparentemente o balonismo não era um passatempo muito espalhado no Império de Cristal, pois havia um numero muito reduzido de balões naquela cidade e eram quase todos pequenos balões de recreio ou de turismo, completamente inúteis para uma viagem daquela magnitude. Efémero gastou dois dias inteiros a trotar de um lado para o outro, a chatear póneis e a meter o focinho em todo o lado até conseguir encontrar um pónei que possuísse um balão minimamente decente. Também lhe custou os olhos da cara.
Igualmente difícil tinha sido encontrar um mapa das correntes dos ventos. À volta do Império de Cristal o tempo era sempre ameno, mas no Norte Gelado estava constantemente um clima tempestuoso e o vento era sempre um pouco aleatório. As correntes de ar regulares eram poucas mas existiam, e se Efémero quisesse ter alguma hipótese de chegar ao seu destino e voltar teria de saber onde elas se encontravam. Acabou por obter uma carta dos ventos na Associação de Quintas de Cristais. Aparentemente era frequente geólogos voarem pelas Montanhas de Cristal à procura dos melhores locais para abrirem novas quintas. Infelizmente, a cerca de meia dúzia de quilómetros para lá das montanhas o mapa encontrava-se muito incompleto.
Efémero tinha trazido com ele roupa quente e algum equipamento, mas teve que comprar no Império de Cristal todo o combustível e comida que iria necessitar. Demorou-lhe quase um dia a encomendar tudo, mas na manhã seguinte estava pronto para partir. Dirigiu-se à parte nordeste da orla da cidade onde estava o grande balão vermelho e verde que comprara e pôs-se a reler os mapas enquanto esperava que trouxessem os últimos mantimentos. Não demorou muito até um pónei lhe trazer uma carroça cheia de sacos e pacotes. Efémero preparava-se para começar a carregar tudo no balão quando o inacreditável simplesmente aconteceu.
Começou como um murmúrio, algo semelhante a uma cascata de intrépidos lamúrios sussurrados por uma égua que aliviava a sua frustração insultando o próprio universo. Teria sido dificil Efémero não o ouvir, e ao procurar a origem de tal fenómeno encontrou o inédito. Mesmo por baixo da carroça um vulto azul e purpura lutava para evitar espernear demasiado.
—Não! - exclamou ele.
—Como é que consegues fazer isto? - ouviu-se murmurar numa voz familiar. - Só estás a agarrar-te com uma pata.
—Violeta! - gritou Efémero, com uma expressão simplesmente impagável.
Imediatamente todo o movimento e barulho pararam. Por uns momentos nada pareceu acontecer. Efémero começou mesmo a julgar que tinha sido tudo uma ilusão da sua imaginação. Então, muito timidamente, a cabeça da amiga começou a surgir por debaixo da carroça.
—Er... Olá, Efémero. - disse Violeta, esperando temerosamente pela reacção do companheiro. - Como tens passado?
—O que estás aqui a fazer?
—Bem, não estavas mesmo à espera que íamos deixar-te meter nesta aventura sem ajuda. Quando notei que tinhas desaparecido avisei a Cerejinha e então viemos as duas atrás de ti.
—A Cerejinha também está cá? - perguntou inutilmente Efémero. Tão surpreendido estava ele com o aparecimento da Violeta que lhe escapou completamente o facto de que a amiga nunca se lembraria de se esconder por baixo duma carroça se não tivesse sido incentivada pela ninja de serviço.
—Claro que eu também vim. - disse uma cabeça coberta por uma máscara preta que subitamente espreitou ao lado da Violeta. - Não me digas que pensaste que te deixaríamos perderes-te sozinho em terra de nenhum pónei.
Ambas as éguas rastejaram de baixo da carroça e durante alguns momentos limitaram-se a fitar o amigo nos olhos. Efémero também não mostrou qualquer reacção. Já era a segunda vez que as suas companheiras o tinham perseguido daquela maneira e de novo se colocavam em risco para o ajudar. Ele preparava-se para dizer alguma coisa quando a Violeta não aguentou mais e rompeu o silêncio.
—O que te passou pela cabeça para nos abandonares assim sem mais nem menos? - disse-lhe ela.
—Tu próprio o disseste. Esta viagem é perigosa.
—Mas isso não te está a impedir de ires.
—Mas eu tenho mesmo que ir, vocês não. Não quero arriscar a vida de duas simples éguas inutilmente quando posso fazer isto sozinho.
—Simples éguas? Seu... seu... seu machista de uma figa. - Nessa altura aquela conversa com o Efémero estava a deixar a Violeta mesmo irritada. - Ouve lá, seu idiota chapado, nem penses em voltar a deixar-nos para trás. Por Celéstia e todos os alicórnios, juro que se voltas a fugir de nós enfio-te o casco pelo focinho dentro. Vamos contigo e não quero mais discussões.
—Pronto, pronto. Está bem. - aceitou finalmente Efémero, surpreso pela reacção da amiga. Depois virou-se para a Cerejinha e discretamente perguntou-lhe: - O que raio é que ela andou a comer ao pequeno almoço?
—Hoje de manhã foi uma sanduíche de courgette. - recebeu ele como resposta dela.
—Era uma pergunta retórica. Eu queria saber o que se passa com ela. Parece-me tão diferente da Violeta que conhecemos.
—Ela tem andado a reavaliar a vida dela. Vamos lá, se queremos chegar a algum lado ainda hoje convinha partirmos o mais rapidamente possível.
Com o trabalho de carregar o balão dividido entre os três companheiros, não demorou muito a prepararem-se para partir. Alimentado a ar quente pelo esquentador, o balão começou a puxar o cesto com cada vez mais força. Eventualmente começou a levantar-se. Os três póneis saltaram lá para dentro e soltando as amarras, o balão elevou-se no ar.
—Muito bem. E agora? - perguntou-lhe Cerejinha. - Vamos voar para o tal Inferno ou não?
—Existe uma pequena aldeia mineira perto do caminho. Estava a planear parar lá para comprar mais combustível. Provavelmente teremos que passar lá outra vez durante o regresso.
—Tens a certeza de que sabes guiar isto? - perguntou-lhe por sua vez Violeta.
—Sim, não há nada que saber. Para subir é só ligar o esquentador e aumentar a temperatura no interior do balão. Para descer puxa-se esta corda para abrir aquela válvula ali mesmo no topo do balão e baixamos quando o ar quente se escapa. Para nos movermos só temos que procurar a altitude da corrente de ar que segue a direcção que desejarmos.
À medida que avançavam em direcção ao Norte Gelado as Montanhas de Cristal erguiam-se cada vez mais na sua resplandecente glória. O Sol reflectia esplendidamente nos picos vidrados e espalhava pelo horizonte um belíssimo e brilhante burrão colorido. Também começou a ficar mais frio. O trio de amigos não demorou muito a agasalhar-se com toda a roupa que tinham trazido naquela viagem. Por outro lado, o frio não parecia ser um incómodo muito grande comparado com a força terrível do vento. Preocupado com a proximidade das montanhas, Efémero baixou o balão até encontrar uma corrente de ar que lhe pareceu branda o suficiente para não se arriscarem a chocar contra algum penhasco.
Na base de uma das montanhas situava-se uma pequena aldeia mineira. Era na realidade mais uma grande quinta de cristais do que propriamente uma aldeia. Possuía um posto de controle, algumas casas e lojas e meia dúzia de minas a perfurarem as entranhas da enorme montanha que a ladeava. Chamava-se Vila Velha de Berílio e Efémero dirigia o balão para lá.
—Agarrem-se, vamos descer. - disse ele para as amigas.
A aterragem foi mais complicada do que prometia. Os ventos fortes não permitiam descer o balão na vertical e perto do solo a situação não era melhor, muito pelo contrário. As montanhas funcionavam como uma asa que desviava os ventos vindos do Sul e forçava-os a ascender para as ultrapassar. Consequentemente, no sopé da montanha o ar fazia um poderoso remoinho antes de subir abruptamente. O balão dançava enquanto Efémero lutava para o controlar.
—Efémero. Sem te querer pressionar, nem nada, mas tens a certeza de que sabes o que estás a fazer? - perguntou Violeta ao companheiro enquanto tentava não parecer muito assustada.
—Não te preocupes. O vento é demasiado forte ao pé da montanha. Deve ser mais fácil se nos afastamos, mas vamos ter que trotar até à vila pelos nosso próprios cascos.
—Deve ser? Quer dizer que não tens a certeza?
Efémero estava demasiado concentrado a tentar manobrar o balão. Ao invés, foi a Cerejinha que lhe respondeu:
—Relaxa, Violeta. Já estamos bastante baixo e a neve amortece-nos a queda. Se cairmos não nos havemos de magoar muito, só partimos uma ou duas patitas.
—Ainda bem que te estás a divertir, porque eu não estou a achar piada nenhuma.
Com alguma perícia, Efémero foi dirigindo o balão para Sul. A partir de uma altura, pareceu que tinham entrado numa zona de calmaria. Mesmo assim o vento encontrava-se um pouco forte e à medida que iam baixando também iam ganhando velocidade. Mesmo quando o cesto bateu no chão continuou a ser arrastado pela neve durante cerca de meio minuto até se imobilizar completamente.
—Finalmente. Estava a ver que só iríamos parar quando nos espatifássemos. - disse a Violeta, sentindo-se um pouco aliviada por pousarem em terra firme.
—Bom... Aterramos, não aterramos? - retorquiu Efémero.
O três companheiros apressaram-se a cravar estacas à volta do balão para o manter amarrado ao chão. Antes de partirem, Efémero certificou-se de que o balão se encontrava bem cheio de ar quente. Ainda demorava um bom bocado a ir e voltar a Berílio e também estava bastante frio. Ele temia que o balão pudesse arrefecer até esvaziar e então teriam de o encher completamente, o que provavelmente significava gastar demasiado combustível.
Puseram-se a caminho o mais rapidamente possível. Trotar toda aquela distância acabou por ser uma óptima maneira de se manterem quentes e com as temperaturas gélidas a golpearem-lhes os traseiros, estavam bastante incentivados a manter um passo acelerado. Não demoraram muito a chegar à Vila Velha de Berílio. Como no Império de Cristal, todos os edifícios eram construídos em cristal, mas naquela aldeia as casas eram largas e na maior parte dos casos só possuíam o rés-do-chão. Também tinham poucas janelas. Com o frio daquela região convinha reduzirem as aberturas para ajudar a conservar o calor.
—Muito bem. - disse a Cerejinha enquanto olhava em redor. - E agora, o que é que fazemos?
—Precisamos de comprar mais combustível para a viagem. - respondeu-lhe Efémero. - E já que vocês as duas se fizeram convidadas, convinha arranjar alguns mantimentos extra.
—Está bem, então. Eu e a Violeta tratamos da comida. Encontrá-mo-nos aqui.
Vendo as suas amigas afastarem-se, Efémero dirigiu-se a um grande edifício construído em cristal verde. Era dos poucos edifícios que possuíam mais do que um andar e tinha uma faixa com a bandeira do Império de Cristal a decorar a fachada frontal. Era o edifício administrativo, que também servia de câmara da aldeia e de escritório das operações mineiras.
Entrando lá dentro, Efémero viu-se no meio de um turbilhão de póneis que parecia estar demasiado ocupados para o poderem ajudar. Andando de um lado para o outro, carregando papéis e documentos, nenhum deles parecia disposto a interromper os seus afazeres para lhe prestar alguma informação. Felizmente Efémero não precisava de depender deles. Ao fundo do salão de recepção, mesmo no lado oposto da entrada, um par de éguas ocupava o balcão de atendimento. Elas indicaram a Efémero um armazém onde ele poderia adquirir o que procurava.
Era um grande edifício cor-de-rosa que não se localizava muito longe dali. Na realidade, Efémero só teve mesmo que descer a rua uma dúzia e meia de metros e viu-se logo à sua porta. Ao entrar lá dentro encontrou-se numa enorme divisão repleta de todo o tipo de bens. Num labirinto de montes de sacos e caixotes que quase que chegavam ao tecto, encontravam-se também prateleiras que, sem surpreender, disponibilizavam artigos próprios de uma mina. Pás, picaretas, candeias, capacetes e até barras de dinamite, havia um pouco de tudo.
Também havia um pónei muito sonolento. Sentado numa cadeira e a ressonar a bom tom encontrava-se Vidro Opaco, um pónei com uma esmeralda como marca a adornar-lhe o flanco. Possuía pêlo cinzento, como Efémero, e a sua crina e cauda eram de um preto reluzente. O que também era preta era a sua maciça barba encaracolada, a maior que Efémero jamais vira num pónei.
—Er... desculpe-me? - disse Efémero ao dirigir-se a Vidro Opaco. Este não mostrou o mínimo sinal de que estaria a despertar. - Aham... - ruidosamente voltou ele a insistir.
Erguendo a cabeça, Vidro Opaco abriu os olhos com um esforço exagerado. Sem se preocupar em atender Efémero, espreguiçou-se e bocejou demoradamente, como se tivesse todo o tempo do mundo. Só então se dirigiu ao seu cliente.
—Sim? Em que o posso ajudá-lo?
—Bons dias. Queria comprar combustível para um balão de ar quente.
—Um balão? Não me diga que veio a Berílio admirar as vistas. É uma bela aldeia, mas não é propriamente um ponto turístico.
—Não exactamente. Estava a planear dar uma volta pelo Norte Gelado.
—O quê? Pelo amor de tudo o quanto é cristalino, você ainda tem tantas razões para viver. - definitivamente Vidro Opaco estava horrorizado, a sua reacção não deixava margens para duvidas. - Ainda é um garanhão jovem. Não faça uma loucura dessas.
—Não se preocupe. Já planeei tudo. É só uma viagem rápida. Preciso é de mais combustível.
—Tem a certeza de que não lhe seria mais útil um caixão? - perguntou-lhe Vidro Opaco enquanto se levantava. - Tenho uns quantos modelos muito elegantes em pinho.
—Só preciso do combustível, se fizesse favor. - Efémero estava a ficar impaciente, mas fez os possíveis por evitar demonstrá-lo.
—É o seu funeral. Que tipo de combustível é que precisa? - continuou o seu atendedor enquanto se dirigia para uma porta na parte de trás do armazém. - Tenho álcool etílico, carvão, gás propano, etanol...
—Gás propano serve muito bem. Vou precisar de quarenta litros.
Efémero ficou a ver Vidro Opaco desaparecer pela porta. Não muito tempo depois, voltou a surgir, rolando duas botijas de gás à sua frente.
—Deixe-me ver... Duas garrafas de propano devem dar... São vinte e quatro bits, se faz favor.
—Por acaso não teria um conselho que me pudesse dar?
—Sim. Não arrotes em publico, é má educação. Mas se não o puderes evitar, fá-lo com o máximo de força possível. Se arrotares suficientemente alto os póneis vão te aplaudir ao invés de te censurarem.
Efémero rebolou os olhos perante tamanho disparate. Não conseguia perceber se Vidro Opaco achava mesmo que aquele conselho teria alguma utilidade ou se estava a gozar com ele.
—Eu referia-me à viagem ao Norte Gelado. - disse Efémero, tentando não parecer muito chateado.
—Ó, isso. Para além de que não a faça... - respondeu-lhe Vidro Opaco. - Apenas que nestas paragens o vento é mais frio do que parece. O balão pode arrefecer muito rapidamente, se não se tiver cuidado. Mantém um olho no combustível e outro na altitude. É preciso sempre mais combustível para manter o balão no ar do que o que se estava à espera e se você apanhar uma corrente de ar frio arrisca-se a descer muito subitamente.
—Muito obrigado. - respondeu-lhe Efémero secamente.
Depois de pagar a Vidro Opaco, Efémero saiu, levando as botijas consigo. Como eram demasiado pesadas para ele as carregar, rolava-as pelo chão. Quando chegou à entrada da aldeia é que se apercebera de que lhe esperava um destino pior do que a morte. Teria de esperar, no meio de um nevão e exposto ao vento gélido, que duas éguas se decidissem a terminar de fazer compras. Passado algum tempo Efémero começava a pensar, meio a sério meio a brincar, que deixar as suas amigas para trás não era um ideia tão má quanto parecia quando as avistou dirigindo-se na sua direcção. Elas caminhavam, sem pressas e conversando animadamente, enquanto carregavam uns quantos sacos cheios de viveres.
—Realmente?
—Sim. Ele nunca tinha lido nada meu. Só queria o meu autógrafo.
—Há póneis para tudo.
As duas amigas pararam e pousaram os sacos no chão nevado. Violeta olhou em volta, tentando avistar o seu companheiro.
—Espanta-me que Efémero ainda não tenha voltado. - disse ela. - Será que estamos no sitio certo?
—A mim o que me espanta é que a noite ainda não tenha chegado. - fez-se ouvir a voz do amigo. - Vocês fazem ideia do tempo que estou à vossa espera?
—Efémero? Onde estás tu?
Sacudindo-se vigorosamente, Efémero desembaraçou-se da espessa camada de neve que o cobria quase na totalidade. Agasalhado num grosso casaco de algodão e com a cabeça envolvida por um cachecol branco, confundia-se bastante com o terreno circundante. Os flocos de neve que se tinham acumulado sobre o seu corpo completavam o disfarce perfeitamente e Efémero não parecia mais do que um monte de neve um pouco maior do que os outros montes de neve que enchiam as ruas de Vila Velha de Berílio. Não é preciso ser-se um génio para adivinhar o que passou pela cabeça da Cerejinha no momento em que se apercebeu da presença do amigo.
—Caramba, Efémero. É a melhor camuflagem de sempre. - gritou ela, fazendo um esforço enorme para evitar desatar aos pinotes com tanta excitação. - É simplesmente perfeita, digo eu que o sei. Ainda hei de fazer de ti um ninja.
—Ainda bem que achas piada, porque eu não. Está um frio de rachar, estamos no meio de uma tempestade, temos que fazer uma enorme viagem antes que seja demasiado escuro para voar e vocês andam a perder tempo a passear e a conversar enquanto eu estou aqui ao relento a congelar até aos ossos.
—Não sejas melodramático. Anda, está a ficar tarde. - disse Violeta enquanto levitava algumas das compras que tinha trazido. Para muito espanto de Efémero, ela não pareceu dar muita importância aos seus devaneios. - Quanto mais depressa voltarmos ao balão, melhor.
A caminhada de regresso ao balão acabou por ser bastante dolorosa. Com a enorme quantidade de mantimentos que tiveram de carregar, acabaram por empregar muito mais tempo e esforço do que pretendiam. Com o frio horrível que os fustigava e o vasto cobertor de gelo e neve que cobria a distancia que os separava do balão, só a muito custo os três companheiros conseguiram alcançar o seu destino sem deixar nenhum dos viveres para trás. (Algo que realmente chegaram a considerar.)
Quando finalmente chegaram ao local da aterragem tiveram uma péssima surpresa. Estando frio, vazio e quase completamente coberto com uma camada de neve, o enorme balão encontrava-se tombado no chão. Tinham demorado tanto tempo a voltar que o seu meio de transporte tinha arrefecido até esvaziar. Os três amigos ficaram momentaneamente especados, a adivinhar o monumental trabalho que lhes esperava para conseguirem voltar a erguer-lo.
—Isto não é nada bom. - disse por fim a Violeta.
—A culpa é inteiramente vossa. - resmungou Efémero. - Se não andassem a desperdiçar tempo isto não tinha acontecido.
Voltar a encher o balão não foi uma tarefa propriamente agradável. Tiveram que remover a neve toda e manter erguida a entrada do balão enquanto este se enchia de ar quente. Conseguir controlar o balão no meio daquele vendaval sem deixar o esquentador pegar-lhe fogo foi um desafio por si próprio, agravado pela tempestade gelada, que tornou a tarefa muito mais demorada e dispendiosa do que seria num ambiente mais ameno. No final, gastaram quase todo o combustível que Efémero tinha acabado de adquirir em Berílio para insuflar de novo o seu veiculo de maneira a voltar a voar.
—Acho que não devemos ter combustível suficiente para fazer esta viagem. - disse a Cerejinha enquanto saltava para o cesto juntamente com os amigos. - O que é que achas, Efémero?
—Acho que se tivermos cuidado deve chegar mesmo à justa. Se bem que agora tenho a certeza que teremos de parar aqui durante a vinda. É bastante improvável que possuamos combustível para fazer a viagem de regresso directamente ao Império de Cristal.
A Violeta deixou escapar um decepcionado "Óh...". Se bem que ela soubesse que seria apenas um adiamento temporário, quando ouviu o comentário da Cerejinha ficou com esperanças de que aquele percalço os obrigasse a abortar aquela expedição e tivessem que voltar ao Império de Cristal.
No final de contas ultrapassar as Montanhas de Cristal acabou por não ser tão complicado como era esperado. Se é verdade que a tempestade tornava o controlo do balão difícil, os fortes ventos que contornavam as montanhas empurravam-no ascendentemente com muita facilidade. Por isso, apesar de Efémero ter tido dificuldades em evitar que o balão chocasse contra alguma falésia, acabaram por conseguir erguer-se acima das montanhas sem gastar uma gota a mais de combustível.
E com que visão desoladora os três amigos se depararam. Até ao limite da vista deles todo o terreno era composto por neve e gelo. O céu não era muito melhor. Somente um interminável tapete de nuvens cinzentas sobrevoava-os. Para completar o panorama, a constante queda de volumosos flocos de neve limitava o alcance visual a cerca de quatro quilómetros. Qualquer coisa para lá dessa distância assemelhava-se a um borrão cinzento, independentemente da quantidade de luz solar que conseguisse atravessar as nuvens.
Transpondo as montanhas, os três póneis encontraram-se finalmente em território desconhecido. O frio era terrivelmente indescritível. O violento nevão que cobria todo o Norte Gelado acabou por ser uma bênção, pois Efémero podia descobrir as correntes de vento muito facilmente observando a direcção da neve. Naquele lado das montanhas o mapa dos ventos que Efémero tinha adquirido era quase inútil. Infelizmente isso não lhes servia de nada para os proteger do frio. Toda a roupa que levavam foi quase insuficiente para se agasalharem. Efémero começou a ficar preocupado com o combustível. Vidro Opaco tinha razão, estavam as gastar mais carburante do que Efémero esperava. Ele tinha mantido à parte metade do combustível para poder garantir o seu regresso, mas temia que gastassem tanto que teriam de voltar atrás antes de chegarem ao seu destino.
A noite começou a cair e tornava-se cada vez mais difícil de se distinguir o horizonte. Os três amigos começaram a pensar se seria melhor dar a volta e regressar à Vila Velha de Berílio enquanto ainda possuíam alguma luz diurna para os guiar quando avistaram uma enorme mancha no meio da neve. Era uma floresta, uma gigantesca floresta, onde estranhamente diversos tipos de árvores e plantas cresciam aparentemente insensíveis ao frio e à neve.
—É ali o Inferno? - perguntou a Violeta. - Espero que seja o Inferno, caso contrário temos mesmo que voltar para trás.
—Deve ser. Devemos estar perto da sua localização e o pergaminho dizia que era no meio de uma floresta. - respondeu-lhe Efémero. - Aquele sitio é a única coisa parecida com uma floresta que há por aqui.
Ele dirigiu o balão para lá e aterrou ao pé da periferia daquela estranha floresta. Puderam então aperceber-se como toda aquela vida vegetal proliferara. O ambiente era anormamente temperado. Os três póneis tiveram mesmo que tirar toda a roupa que tinham para se sentirem confortáveis.
—E agora, o que fazemos? - perguntou a Cerejinha aos seus amigos. - A noite está a chegar. Não seria melhor acamparmos?
Efémero não lhe respondeu. Estava ocupado a verificar a quantidade de carburante. Tinham gasto quase toda a primeira metade dele, mas ainda restava o suficiente para encher totalmente o balão. Sem esperar pelo companheiro, as éguas começaram a montar um acampamento. Desempacotando alguns cobertores e sacos-cama, elas conseguiram improvisar três camas relativamente confortáveis onde poderiam dormir durante aquela noite. Quanto ao Efémero, tinha passado esse tempo a esvaziar e enrolar o balão. Teria sido bastante catastrófico se algum vento forte o arrastasse sabe-se lá para onde durante a noite ou se o balão se rasgasse contra os galhos de alguma árvore.
—Pronto. Podemos ter uma noite bastante relaxante nestas camas, se me permitem dizer-lo. - declarou Cerejinha quando todos terminaram os seus afazeres. Por outro lado, Violeta não se sentia tão confiante como a amiga.
—E se houver animais selvagens?
—Não te preocupes. Fazemos uma fogueira. Isso deve assustar todos os bicharocos que andem por aqui.
—Ou então atrí-los. - Definitivamente não agradava nada a Violeta ter que dormir ao relento naquela selva desconhecida.
Efémero despachou-se logo a acender uma fogueira com a Violeta a tentar ajudá-lo. (Sendo o ênfase em tentar, já que a magia dela mal dava para provocar fumo.) Apesar de Efémero não ser muito hábil naquele tipo de coisas, não demorou muito para uma constante esfregadela maníaca entre dois paus produzir faúlhas suficientemente quentes para iniciar um lume. Tão ocupados estavam eles com aquela tarefa que nem notaram no enorme rolo de pano que Cerejinha tirara da sua bagagem. Só quando viram desenrolar mesmo à beira deles um tecido verde e felpudo dum lado e branco e fofo do outro é que repararam no que ela andava a fazer.
—Cerejinha, o que é isso? - perguntou-lhe Efémero, mesmo antes de se arrepender de ter feito aquela pergunta. - Não, por favor, não me digas. Só pode ser outra das tuas camuflagens malucas.
—Fiz-la à pressa antes de vir atrás de ti, mas não ficou nada mau, pois não? - disse Cerejinha aos amigos, enquanto exibia com orgulho o seu trabalho. - Num lado está a imitar neve. Fi-la com algodão em rama e polvilhei-lhe vidro em pó misturado com cola para lhe dar aquele brilho típico dos cristais de gelo. No outro lado fiz relva artificial com fios de tecido verde envernizados. Ficaram bem firmes, não ficaram? Parece mesmo relva.
—Sim, muito impressionante. - disse Efémero ironicamente. - Mas para que é que queres usar isso agora? Não me digas que vais andar a passear por aí com isso às costas a uma hora destas.
—É bastante grande. Aposto que consigo construir uma tenda com ela.
Como para provar o que dizia, Cerejinha começou a montar uma simples armação sobre a sua cama. Começou por espetar alguns ramos em circulo à volta do seu saco-cama, de seguida dobrou-os em direcção ao centro e prendeu-os entrelaçando-os de maneira a formar uma pequena cúpula. Quando ela cobriu a sua pequena construção com a sua camuflagem parecia mais um pequeno morro verdejante do que uma tenda.
—Querem dormir aqui? É suficientemente grande para nós os três. - sugeriu Cerejinha, mal acabou de terminar a sua construção.
—Não é nada. - disse Efémero. - Ainda por cima só tem uma cama.
—Não é preciso cama. Está bastante calor e a tenda protege-nos das intempéries.
—Isso é ridículo. - observou por sua vez Violeta. - Se quiseres podes dormir aí, mas eu vou ficar na minha cama. É mais confortável.
—E mais exposta a qualquer monstro que passe por aqui.
Quase instantaneamente, Violeta reinterpretou a sua situação. A possibilidade de ser devorada por alguma criatura durante o sono não era uma perspectiva muito agradável. Como que impulsionada por uma mola, levantou-se num salto e dirigiu-se logo para o pé da Cerejinha.
—Bem visto. - disse ela enquanto entrava na tenda com a amiga. - Vens, Efémero?
—Deves estar a brincar. - disse ele, descrédulo. - Está bom tempo aqui. Tiveram um trabalhão enorme a preparar as camas. Não me digas que estás mesmo a pensar em passar a noite aí debaixo só porque a Cerejinha se lembrou de invocar monstros.
—Minha querida Celéstia, deixa mas é de dizer disparates. Vem mas é abrigar-te. Está-se mais confortável aqui.
—Nem penses nisso. - continuou ele. - Fico muito bem cá fora.
—Como o quiseres. Boa noite.
As duas éguas desapareceram para dentro da tenda improvisada. Efémero, esse permaneceu durante um bocado a observar a fogueira enquanto se recordava da ultima vez que tinha acampado com as suas amigas. Tinha sido à mais de ano e meio atrás, quando os três companheiros decidiram passar alguns dias num descampado, não muito longe de Poneivile. Tinha sido apenas algo que fizeram por diversão, apenas alguns dias longe que qualquer outro pónei, saltitando pela relva, nadando no rio, petiscando as flores e frutos que cresciam lá, dormindo na velha tenda do tio de Violeta. (Muito bem transformada em arbusto pela Cerejinha. Algumas coisas simplesmente nunca mudam.) Era uma vida simples e descontraída.
De novo encontravam-se a acampar, mas desta vez a situação era muito mais grave. Estavam demasiado distantes de qualquer civilização conhecida. Se bem que se encontrassem numa zona temperada, à volta deles o céu rugia com uma tempestade gélida. Nas suas costas, uma floresta desconhecida ocultava o seu destino, juntamente com hipotéticos perigos desconhecidos. Efémero revia mentalmente tudo o que o levou até lá. Parecia-lhe que tinha sido à uma eternidade quando ele e Violeta tinham ficado completamente abismados quando Cerejinha lhes contou o que andava a fazer por Canterlot, mas na realidade nem sequer tinham passado mais do que três semanas desde então.
Sentindo o sono chegar, Efémero apagou a fogueira e enfio-se no seu saco-cama. Tão cansado se encontrava que adormeceu quase de imediato. Antes dos seus olhos se fecharem completamente, teve quase a certeza de que no meio da espessa escuridão da floresta, algumas estranhas luzes erguiam-se por detrás das árvores em direcção ao céu.


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