Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 10
Livro 1 Capítulo 10 - Bem vindos ao Inferno




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O nascer-do-Sol era particularmente magnifico no Norte Gelado. Apesar da espessa camada de nuvens, os raios solares conseguiam atravessá-las pelo ocidente quando o Sol ainda estava apenas a espreitar pelo horizonte. Uma bonita tonalidade cor-de-laranja inundou os extensos campos de gelo, e nem mesmo as Montanhas de Cristal escaparam ao espectacular fenómeno. Nenhum pónei poderia sequer imaginar que um deserto tão frio e desolado pudesse apresentar uma tal beleza, tão capaz de aquecer corações.
Por isso, apesar do arvoredo que se interpunha entre ele e o oeste impedirem-no de enxergar directamente o nascer-do-Sol, Efémero acordou rodeado da sua resplandecente luz. Com alguma sonolência ainda a enevoar-lhe a mente, fez algum esforço para se levantar e virou-se na direcção da tenda da Cerejinha. Ele não teria remédio a não ser inclinar-se perante a mestria da amiga. Mesmo na claridade do dia a sua camuflagem continuava a parecer um pequeno montículo coberto de relva e vegetação. Mas seria mesmo a tenda da Cerejinha? Tão enduvidado se encontrava Efémero que não resistiu a aproximar-se dela e apalpar-la com a pata, só ficar com a certeza.
Enquanto Efémero se encontrava a sentir a relva falsa por baixo do seu casco, a cabeça da Violeta surgiu mesmo ao lado dele. Efémero ficou meio envergonhado por ter sido apanhado a meio daquele acto, mas conseguiu disfarçar bastante bem a sua reacção.
—Ó, bons dias Efémero. O que estás a fazer? - cumprimentou-o a Violeta mal se apercebeu da sua presença.
—Olá. Vim acordar-vos. - mentiu ele. - Não sei o que vai acontecer hoje, mas provavelmente vamos ter um dia cheio. - E como se estivesse a preparar para o que o pudesse esperar, acrescentou sussurrando: - Pelo menos será para mim.
Virando-lhe as costas, Efémero focou a sua atenção na floresta que se apresentava perante eles. Cerejinha saiu alegremente da tenda e cumprimentou-o com um "Bom dia, Efémero." mas o amigo não lhe ligou. Encontrava-se preocupado com o que vira na noite anterior. Não conseguia perceber se as luzes que avistara antes de adormecer eram reais ou se tinham sido uma ilusão causada pelo sono.
Violeta aproximou-se dele e ficou ao seu lado. Como o seu amigo, olhava para a velha floresta
com alguma curiosidade e contemplação.
—Agora, o que é que fazemos? - perguntou-lhe ela ao fim de algum tempo. - Como é que encontramos esse tal de Primordial?
—Não sei. A única coisa interessante que é suposto existirem são umas ruínas algures no meio desta floresta. - respondeu-lhe Efémero. - Talvez o encontremos lá.
Enquanto os seus companheiros conversavam, Cerejinha vasculhava dentro do balão. Procurava no meio de toda a bagagem que trouxeram pela sua fiel mochila preta. Sempre que possível, evitava separar-se dela, e naquela ocasião não tinha sido uma excepção. Na realidade tinha sido a primeira coisa que juntou à sua bagagem quando ela e Violeta se preparavam para sair à pressa de Poneivile para irem em perseguição de Efémero. Dentro dela estavam as mesmas coisas de sempre: tintas e pincéis, cadernos de desenho e camuflagens, bombas de fumo e goblés, cordas e o seu imprescindível fato preto. Na realidade, era por esse mesmo fato que ela andava à procura.
Com intenções de o vestir, Cerejinha usou os seus bonitos travessões em forma de borboleta para transformar a sua crina e cauda em práticas tranças. Começou mesmo a enfiar as patas pelas calças adentro quando os seus amigos repararam no que andava ela a fazer.
—Er... O que estás a fazer? - perguntou-lhe Efémero.
—Não se vê mesmo? Estou a preparar-me para partirmos. - respondeu-lhe ela, abanando uma das suas patas traseiras no ar enquanto deslizava até ao fundo da respectiva calça.
—E tu pensas em ir com isso vestido? Vamos à procura de um ser alienígena e tu queres andar com isso?
—E o que é que tem de mal?
—O que tem de mal é que isso assusta qualquer pónei. Não é propriamente sensato usares isso quando estamos a tentar falar com algum pónei que não sabemos como vai reagir à nossa presença.
—Bom... Visto as coisas por esse ângulo... - Parando um momento para fingir estar a pensar no argumento de Efémero, Cerejinha vacilou. Ela não queria dar a pata a torcer mas a última coisa que desejava naquela altura era ter que discutir com os seus companheiros. Por fim, resignada, respondeu: - Está bem. Eu tiro-o.
Mas ela odiava separar-se do seu fato preto. Se bem que ela parecesse estar calma, Cerejinha encontrava-se um pouco nervosa. Uma parte dela encontrava-se excitada por estar no meio de nenhures a apoiar o seu amigo. Porém, ela também se encontrava receosa, afinal nada garantia que que as respostas que Efémero teria iriam ajudá-lo, ou que aquele alicórnio não seria hostil. Para ela, aquele fato sempre tinha funcionado como um amuleto e envergá-lo ajudava-a a acalmar-se e a focar-se. Mandando-o de volta para dentro da sua mochila, Cerejinha colocou-a às costas, e vendo que os amigos já iam a embrenhar pela floresta dentro, trotou para junto deles.
—Ao certo qual é o teu plano? - começou ela a perguntar ao seu amigo quando chegou à beira dele. - Chegar ao pé dele e perguntar-lhe: "Hei, senhor alicórnio de origem duvidosa, por acaso não se importa que comparemos os nossos rabiosques, pois não? É que não tenho mais do que fazer do que cruzar meio mundo para andar a exibir o meu traseiro a desconhecidos."
Se bem que o comentário da Cerejinha tivesse recordado a Violeta o medo que sentia por irem ao encontro daquele ser mítico, ela teve que se conter para não desatar às gargalhadas que uma tal imagem lhe provocara.
—Por acaso eu fui raptado propositadamente pelo meu traseiro, por isso até que não é uma ideia assim tão disparatada. - disse sarcasticamente Efémero. - E eu vou provavelmente mostrar-lhe a minha marca quando lhe perguntar porque é que ele tem uma igual à minha.
Continuaram a avançar por aquela floresta dentro sem encontrar nada de estranho. Parecia não era nada mais do que uma espessa e aparentemente interminável floresta. O pergaminho do Império de Cristal referia o que parecia ser os restos de uma aldeia chamada Inferno. Pelo que Efémero se lembrava, os unicórnios estiveram mais interessados em documentar as características místicas daquele lugar do que propriamente em descrevê-lo, consequentemente ele não tinha muitas informações sobre com o que poderia contar. Tanto mais que tinha sido redigido à alguns milénios atrás. Entretanto, a aldeia já poderia ter sido invadida completamente pela floresta e tanto quanto Efémero poderia calcular, eles poderiam estar já a caminhar com os seus cascos sobre o seu terreno e não o saberem.
Mas acabou por não ser esse o caso. Passado um bocado o espaço entre as árvores começou a aumentar progressivamente e o trio de companheiros depressa alcançou o que parecia ser o Inferno. Era uma área muito pouco arborizada, limitando-se a apenas alguns pinheiros e abetos espalhados pela clareira. Mais raros ainda do que as árvores eram as casas que ainda se poderiam considerar intactas. Apenas uma meia dúzia de edifícios decoravam a paisagem, espalhados aleatoriamente pela região central daquele lugar. Todos os restantes indícios de construções artificiais resumiam-se a pequenos restos de paredes e muros, a maior parte deles completamente cobertos de heras e musgo. Somente as suas formas pouco naturais poderiam revelar as suas verdadeiras naturezas.
Quase todo o terreno encontrava-se coberto por todo o género de vegetação, mas ao contrário da restante floresta, a diversidade das plantas parecia estar muito mais equilibrada. Poderia-se até dizer artificialmente equilibrada. Havia todo o género de plantas, desde fetos e cactos, até cogumelos e arbustos. Não faltavam pequenos aglomerados de frutos rasteiros, como abóboras e tomateiros. Dezenas de tipos de plantas herbáceas estendiam-se em pequenos tapetes, muitas dos quais estavam a florir, dando um magnifico ambiente colorido a toda aquela região.
Pónei algum conseguiria imaginar que um jardim tão belo e silvestre pudesse existir no meio do Norte Gelado. Era o tributo perfeito à entropia da civilização a ser reclamada pela natureza, e era uma visão bastante atraente para algum pónei que se interessasse por esse tipo de coisas.
—Isto é o Inferno, presumo. - disse Cerejinha.
Sem terem grandes receios, os três amigos entraram por aquela região dentro. Efémero reparou então no que tinha testemunhado na véspera. Espalhado por aquele lugar estranho havia alguns focos de luz que pareciam ter a sua origem por debaixo do chão. Havia um directamente à direita deles, não muito longe de onde se encontravam. Somente outros quatro pontos luminosos pareciam existir naquela cidade esquecida, espalhados uniformemente por toda a área. Tão ténue era a sua luminosidade que somente a protecção das árvores impedia que demasiada luz solar os ofuscassem completamente.
De repente, Cerejinha pareceu tropeçar nalgumas pedras. Batendo com o focinho no chão, soltou um sonoro 'Ugh...' que fez os seus amigos virarem-se na sua direcção.
—Querida Celéstia. Cerejinha, estás bem? - Violeta estendeu-lhe a pata e ajudou-a a levantar-se.
—Sim, não é nada. Só tropecei numa pedra. - disse ela.
Mas não era só uma pedra. Cerejinha tinha ficado com o casco traseiro direito preso no que parecia ser uma protuberância formada por algumas rochas. Estranhamente, aquelas rochas eram demasiado grandes para ela não ter reparado nelas, e no entanto acabou por enfiar a pata no meio delas. Ademais, ela não estava a conseguir libertar-se. Puxando e torcendo, Cerejinha estava a magoar-se mais do que a situação merecia. Efémero teve mesmo que ajudar a amiga, enfiando-se por baixo do seu ventre e tentando erguê-la do chão. Mas o casco da sua companheira parecia estar soldado àquela estranha amalgama de pedras. Só a muito custo a força conjunta dos dois póneis terrestres conseguiu arrancar a pata do seu grilhão geológico.
As rochas rangeram quando a Cerejinha se libertou, e misteriosamente encolheram até ficarem ocultas pela erva rasteira. Somente Efémero reparou naquela insólita ocorrência. (Ele estava literalmente com a sua cara mesmo ao pé da pata da amiga.)
—Mas que raio... - exclamou ele, surpreso.
Cerejinha tinha ficado com o casco dorido e bastante arranhado. Abanou a sua pata dormente para recuperar a sua circulação sanguínea O Efémero, por outro lado, estava mais preocupado com o que tinha visto. Tinha-lhe escapado completamente da memória, mas aquela situação voltou a recordar-lhe o que tinha lido no velho pergaminho. Terreno que alterava de forma, solo que parecia atacar conscientemente póneis e outras estranhas ocorrências que tornavam aquele lugar num sitio bastante perigoso. Naquele momento foi abalado por uma estranha sensação de perigo iminente.
—Ora bolas... Não podemos ficar aqui muito tempo. - disse ele.
A Cerejinha nem o tinha ouvido. Ainda se encontrava frustrada por ter ficado presa numa simples rocha. (Para quem possuía tanto orgulho na sua destreza, era um valente golpe no ego.) Por sua vez, a Violeta mal se tinha apercebido do comentário do companheiro.
—O que é que disseste? - perguntou ela.
—Lembrei-me agora que este sitio é perigoso. Não nos convém demorarmos muito.
Violeta ficou tão aparvalhada com aquela declaração de Efémero que abriu a boca em descrédito. Não conseguia acreditar que somente depois de chegarem aquele destino o amigo se preocupava finalmente com o risco que estavam a correr. Quando conseguiu voltar a controlar as suas expressões faciais, disse-lhe:
—Por tudo o que é... Mas que tamanha estupidez. Isso é o que tenho andado a dizer-te desde que meteste na cabeça fazer esta viagem idiota.
Tão focados estavam os dois póneis naquela conversa que nem se aperceberam do que estava prestes a acontecer. Tentando encontrar algum indicio do ser que tinham vindo procurar, Cerejinha avançou para o interior e observava atentamente aquela antiga vila, não reparando na situação insólita que se passava mesmo ao lado dela. Rastejando por entre a erva, algumas trepadeiras cresciam a uma velocidade sobrenatural e deslocavam-se na direcção da pequena égua rosa. Somente quando aquelas agressivas plantas se enrolaram à volta do seu tornozelo (O mesmo que tinha ficado preso no chão. Ela estava realmente a ter pouca sorte.) é que ela se apercebeu que estava na mira de uma ameaça.
O seu primeiro instinto foi puxar frenéticamente a pata, mas não serviu de muito. Com as heras a crescer rapidamente sobre o seu flanco, começou a roê-las numa tentativa de se libertar. Provavelmente teria resultado, não fora o facto de que as plantas começarem a envolver-lhe a cabeça. A ultima coisa que ela tinha conseguido fazer antes das trepadeiras lhe taparem o focinho foi gritar por socorro.
—Acudam. - ouviram os seus amigos.
Viraram a cabeça mesmo a tempo de ver a pobre da Cerejinha cair por terra por ter os seus membros emaranhados naquelas plantas animadas. Quase imediatamente Efémero galopou na direcção dela, com a Violeta a segui-lo mal o seu cérebro conseguiu processar o que estava a acontecer. Atacaram as estranhas heras, mordendo-lhes e pisando-as. Cerejinha ao principio estrebuchava violentamente, tentando libertar-se. Parou quando se apercebeu de que não lhe adiantava nada. Ela sabia lidar com cordas. Em outra situação semelhante ela provavelmente teria conseguido libertar-se. Mas aquelas trepadeiras tinham uma vontade própria. Por cada uma que Cerejinha conseguia desatar, havia umas três ou quatro que se enrolavam à volta dela com novo vigor.
Com todos os anos de treino ninja, Cerejinha aprendeu a conhecer as suas limitações. Em certas ocasiões tal bênção pode também ser uma maldição, como naquela situação. Saber que não tinha maneira de se soltar daquela malha vegetal sozinha fazia-a sentir-se terrivelmente impotente. Felizmente que os seus amigos não demoraram muito a conseguir soltá-la.
—O que é que aconteceu aqui? - indagou a Violeta, sem esperar realmente uma resposta. De qualquer das formas, Cerejinha deu-a:
—Não sei. Parece que as plantas ganharam vida e decidiram atacar-me.
—É o terreno. Está como que amaldiçoado.
As duas éguas viraram-se para o Efémero, que se pronteou a terminar o que estava a dizer.
—Lembrei-me agora que este tipo de coisas já aconteceu antes. Os unicórnios estudaram o que se passou aqui. Este sitio parece ter uma vontade própria e tenta atacar qualquer pónei que aqui entre.
Ó minha querida Celéstia... Então temos que sair daqui antes que...
Mas Violeta não conseguiu completar o que pensava dizer. Tinha sido interrompida pelo súbito obscurecer do Sol. Sem qualquer aviso ou indicio do que estava para acontecer, uma enorme sombra cobriu o trio de amigos. Virando os seus pescoços para cima, os póneis ficaram boquiabertos com o que contemplaram. Lá alto no céu, voando na direcção deles, estava a estranha criatura que tantos trabalhos tinham passado para encontrar. As descrições textuais que Efémero tinha lido eram bastante precisas, mas de maneira nenhuma lhe faziam justiça.
Era simplesmente enorme, maior do que qualquer criatura que aqueles póneis jamais se lembravam de ter visto. A admirar pelas suas proporções corporais, deveria ser um garanhão, se bem que era simplesmente demasiado colossal para que algum pónei pudesse tirar conclusões fidedignas a esse respeito somente a partir duma vulgar observação. As suas patas eram grossas e musculadas, e o seu pêlo cinzento escuro. No meio dos seus pequenos olhos negros possuía um chifre bastante grosso, curvo e igualmente negro. Se bem que fosse um pouco difícil para os póneis conseguirem discernir àquela distância, a marca que lhe adornava o flanco era mesmo igual à do Efémero. Tanto a sua cauda como a sua crina eram longas e esgadanhadas, e de um vermelho vivo muito luminoso. Porém, aos olhos dos três companheiros a sua característica mais saliente não era nem o seu tamanho nem a sua crina. O que realmente o tornava bastante monstruoso eram os apêndices que lhe ladeavam a garupa. Pareciam caudas de cobra, com pêlo ao invés de escamas, ou os tentáculos que algumas criaturas menos destras têm nas pontas dos cascos para segurar nas coisas. A preencher o espaço entre aqueles tentáculos havia uma espécie de pele desprovida de pêlo. Pela maneira como ele agitava aqueles apêndices, de certeza que deveriam ser asas que ele estava a usar para se deslocar pelo ar.
Ele desceu a pique, planando de encontro a eles e parecendo ser extremamente hostil. Tão surpresos ficaram os três companheiros com a sua aparição que nem lhes passou pela cabeça esconderem-se ou fugir. Mas em última análise, não houve qualquer necessidade disso. Aquele estranho ser parou a vários metros de distância deles. Por uns momentos ficou a esvoaçar no mesmo sítio, olhando para eles com uma expressão ambígua. Os três amigos também não reagiram de uma maneira muito diferente. Durante alguns instantes, que para todos os intervenientes pareceu durar vários minutos, os póneis e o alicórnio contemplaram-se mutuamente nos olhos uns dos outros.
Violeta encontrava-se aterrada e confusa. No entanto, não parecia nada que ela estivesse assustada, pois a sua mente bloqueara ao tentar lidar com com o súbito aparecimento daquela criatura. Por sua vez, Efémero e Cerejinha encontravam-se fascinados com o estranho ser, observando-o atentamente enquanto de retorno eram por ele observados.
Efémero foi o primeiro a mostrar sinais de vida. Deu alguns passos na direcção do alicórnio e tinha intenções de lhe dirigir a palavra, mas viu-se incapaz de pronunciar o que quer que fosse. Desde que tinha sabido da existência dele que Efémero desejara perguntar-lhe o que sabia sobre ele, mas agora a sua mente não conseguia conceber uma simples frase.
Porém, acabou por ser poupado daquela provação. O alicórnio tomou a iniciativa e abriu a boca para soltar um urro que nenhum dos companheiros iria esquecer tão facilmente. Um gurutal 'Grrarr hurr...' fez-se ouvir e o ar vibrou com aquele fugido, propagando a tenebrosa vocalização pela floresta em seu redor.
É claro que Violeta foi quem mais se intimidou com aquela reacção. Assustou-se tanto que se atirou para o chão e botou as patas sobre a cabeça. Por sua vez, os seus dois amigos não se deixaram amedrontar tão facilmente, se bem que seria inútil negar que aquele grito os deixara muito pouco à vontade.
—Que bela maneira de receber as visitas. - disse a Cerejinha, tentando disfarçar o seu nervosismo. - Não admira que à séculos que não tenham vindo póneis explorar este sitio.
—Ele parece estar simplesmente a ser territorial. - observou por sua vez o Efémero. - Temos de lhe mostrar que não lhe desejamos fazer mal.
E prosseguiu então na direcção dele, mas acabou por não avançar muito. Parou quando o alicórnio pareceu fixar o seu olhar nele. A sua mente estagnou enquanto revirava o cérebro à procura de algo para lhe dizer. Nos dias anteriores, durante toda a viagem, pareceu-lhe perfeitamente natural procurar um estranho e perguntar-lhe se sabia quem ele era, mas naquela altura não conseguia encontrar as palavras para formular uma única frase. É claro que o alicórnio não estava a ajudar. A sua atitude hostil não facilitava nenhuma conversa.
—Nós viemos em paz. - disse por fim Efémero.
E arrependeu-se quase imediatamente, pois o que tinha dito lembrou-lhe algo saído de um livro de ficção cientifica de muito mau gosto. O ser misterioso aparentou ter a mesma opinião, pois mergulhou num voo rasante, mesmo por cima da cabeça deles.
—Eeck... - gritou a Violeta com o susto, e tentou abrigar-se ainda mais.
Efémero e Cerejinha viraram-se mesmo a tempo de verem aquela estranha criatura dar a volta e carregar contra eles uma outra vez. De novo voltou a passar somente a alguns cascos de distância por cima deles.
Levantou então alguma altitude. Lá alto no meio das nuvens começou a voar em círculos, como uma ave de rapina a vigiar a sua presa. Carecia porém de qualquer vontade aparente de atacar para matar. Parecia estar somente interessado em observá-los. Mais uma vez Efémero tentou chamar-lhe a atenção, e erguendo-se precariamente sobre as patas traseiras pôs-se a acenar com as dianteiras. Aparentemente parecia que a criatura não estava interessada no Efémero. Deu lentamente mais um par de voltas no céu e depois afastou-se em direcção ao norte. O seu primeiro instinto foi correr atrás dele, mas uma voz travou-o:
—Efémero, volta já imediatamente para aqui.
Virou-se e viu a expressão aterrorizada da Violeta. Era difícil de dizer se ela estava assim por ter sido atacada por um alicórnio gigante ou por o amigo estar disposto a ir atrás dele depois de ele o ter ameaçado.
—O que é que pensas que estás a fazer? - perguntou-lhe ela.
—Viemos aqui para falar com ele, não viemos?
—Depois do que aconteceu? Para que é que continuas a insistir? É óbvio que ele não nos quer aqui. - disse a Violeta. - Ele é perigoso, para não falar nas plantas que nos querem matar.
—Acho que ele não nos quer mal. Se ele nos quisesse magoar já poderia tê-lo feito com a maior das facilidades. Provavelmente deve estar a ser afetado por qualquer que seja a maldição que infesta este lugar.
—Mais uma razão para nos afastarmos daqui. Vamos voltar para o meio da floresta. Podemos tentar contactá-lo mais tarde, quando ele estiver mais calmo. Preferencialmente de uma maneira que não precise que nós enfiemos aqui os cascos.
—Isso não seria uma boa ideia. Gostaria de resolver isto o mais depressa possível. Não trouxemos muitos mantimentos e este sitio é perigoso. Quanto mais tempo nos demoramos, pior será.
—Mais uma razão para sairmos daqui rapidamente.
Efémero odiava ter que pôr as amigas em perigo. Tinha sido essa a principal razão porque tinha tentado fazer aquela viagem sozinho. Vária vezes já ele tinha tentado mantê-las afastadas, mas elas sempre se mantiveram coladas a ele como um par de lapas.
—É melhor vocês as duas voltarem para ao pé do balão. - disse-lhes ele. - Eu vou já lá ter. Vou só tentar falar com o alicórnio mais uma vez.
E lançou-se pelo meio das ruínas. Vendo o seu amigo galopando atrás daquela criatura, as duas éguas acharam que não tinham outra solução a não ser acompanhá-lo. Correram no seu encalço, mas não o fizeram por muito tempo. Uma outra bizarria voltou a ameaçá-las . Ao passarem ao lado duma parede, ou mais propriamente, dum vestígio de uma parede coberta de musgo, esta dobrou-se sobre as duas póneis desprevenidas e envolveu-as como se fosse uma garra.
Surpresa por aquele ataque súbito, Violeta soltou um grito esganiçado. Teria sido difícil para Efémero não o ouvir, e quando se virou não quis acreditar no que viu. A apenas alguns metros atrás dele estava um chouriço de pedra com as suas amigas enfiadas nele. Do lado da frente saia dele a cabeça e uma pata da Cerejinha, do outro somente se via o traseiro de Violeta com a cauda da respectiva cor.
—Socorro, Efémero. - berrou Cerejinha, encurralada e olhando temerosamente para o amigo.
Efémero não perdeu tempo e despachou-se a ir acudi-las. Tentou primeiro puxar a Cerejinha para fora daquela prisão, mas parecia não haver maneira de a mover.
—É inútil, Efémero. A pedra está moldada à volta do meu corpo. - disse-lhe ela. - Eu sinto-a. Tens que arranjar uma forma de a quebrar, não há outra maneira de sairmos daqui.
O seu companheiro virou-se então para o estranho canudo que mantinha cativas as duas éguas. À primeira vista parecia um muro perfeitamente normal, construido com tijolos de barro cozidos ao Sol e unidos com uma vulgar argamassa. Tinha um aspecto muito velho e estava quase coberto de musgo e cheio de pequenas fissuras. Mas apesar de tudo isso, aparentava ter uma elasticidade surpreendente e conseguia envolver as duas póneis como se fosse feito de borracha.
Apontando-lhe as costas, Efémero reuniu todas as forças que conseguiu e aplicou-lhe um valente coice. Aquela estranha armadilha estremeceu violentamente enquanto pequenos fragmentos de barro, musgo e cimento eram projectados em todas as direcções. Contudo, exceptuando algumas rachas novas, o muro permaneceu intacto. Mas aquele acto não foi desprovido de consequências. Como resposta a uma tentativa de libertar as suas prisioneiras, aquele muro animado redobrou a força com que segurava as éguas. Sentindo-se a ser esmagada, Violeta não evitou a soltar um grito de pânico. Quanto a Cerejinha, essa nada fez a não ser flectir os músculos para tentar contra-actuar o aperto de que estava a ser vitima. Ela sabia muito bem que a melhor hipótese que ela e que Violeta possuíam era o Efémero conseguir destruir a armadilha macabra de que tinham sido vitimas. Ela temia que se ele suspeitasse que o muro estava a vingar-se nelas do ataque dele, ele parasse com o medo de as magoar. Elas estavam em perigo e quanto mais tempo demorassem a sair daquela situação, pior seria.
Efémero repetiu outra tentativa. Com o novo coice o muro voltou a reagir da mesma maneira. Cerejinha aguentou o desconforto e manteve-se silenciosa. Por outro lado, Violeta estava a atingir o seu limite de dor e de medo e não resistiu a berrar desalmadamente.
—Aaahh... Está a esmagar-me, está a esmagar-me... Pára, pára... Eeeck...
Aquilo foi o suficiente para o Efémero se aperceber do que estava a acontecer. Ao ouvir o desespero da amiga virou-se e viu aquele canudo de pedra a contorcer-se, moendo e mastigando as éguas que se encontravam dentro dele. Temendo pela vida das companheiras, decidiu mudar de táctica. Começou a procurar por um ponto fraco naquele muro. Um tijolo solto, uma fenda profunda, alguma coisa que lhe permitisse abrir um buraco.
—O que estás a fazer? - disse-lhe a Cerejinha. - Não pares.
Apesar da idade, do mau estado e do bizarro evento que o levou a dobrar como uma folha de papel, aquele muro aparentava ser sólido como se fosse feito de aço. Efémero apalpava-o desesperadamente procurando encontrar qualquer coisa que nem ele sabia o que era.
O ser conhecido como Primordial tinha voltado. Somente Cerejinha tinha reparado que o alicórnio estava de novo a observá-los no alto dos céus, mas estava demasiado ocupada a tentar não ficar esborrachada para lhe prestar muita atenção. Por isso é lhe desculpável que não se apercebesse do que ele faria em seguida. Levantou-se em direcção ao topo do céu e uma vez lá em cima mergulhou em direcção a um dos focos de luz, mais precisamente ao que estava localizado no nordeste daquele sitio.
Um terrível impacto fez-se ouvir quando ele embateu contra o chão, e como consequência a luminescência que emanava para os céus a partir daquela localização fez-se imediatamente cessar. Então, como uma resposta da própria terra, tudo começou a tremer violentamente. Começou primeiro como uma gentil vibração, impercetível a todos excepto aos mais sensíveis dos póneis, mas não demorou a rugir suficientemente alto para qualquer pónei ser capaz de se aperceber do tremor de terra.
Efémero parou com a sua fútil tentativa de libertar as amigas, assustado com o que se estava a passar. Tudo à sua volta, desde o chão que pisava até às árvores que o cercavam, oscilava intensamente. E então tudo acalmou, tão rapidamente que qualquer pónei chegaria a duvidar que tinha sequer havido um terramoto. Foi então que o inesperado aconteceu. O muro começou a endireitar-se e a desenrolar, e como se tudo o que tinha acontecido fosse demasiado para que a sua robustez pudesse aguentar, rachou ao meio e desfez-se em pedaços. As duas éguas caíram no chão juntamente com uma boa quantidade de entulho. Cerejinha encontrava-se dorida e com o corpo quase todo dormente. Violeta não estava muito melhor. Tinha tido o azar de lhe cair em cima um bocado bem grande do muro e ficado com o lombo bastante magoado.
—Ugh... - gemeu a Violeta. Doíam-lhe as costas e custou-lhe levantar-se.
—Estão bem? O que é que aconteceu? - perguntou-lhes Efémero.
—Eu... Eu não sei. - Tentando recordar-se do que tinha acontecido, Cerejinha revirou o cérebro procurando uma resposta. - Acho que houve um tremor de terra, ou algo assim.
—Óh... Olhem.
Apontando para o céu, Violeta avistava o alicórnio. Estava a voar sobre outro dos focos luminosos, que por acaso era o que se encontrava mais próximo deles. Os três companheiros então observaram-no com espanto a repetir a proeza anterior. Daquela vez, afastados de qualquer tipo de perigo eminente e sem nada para os distrair, teria-lhes sido difícil não repararem naquela estranha acrobacia. Aquele ser alienígena mergulhou rapidamente em direcção ao solo e a coluna de luz deixou de se avistar.
—O que está ele a fazer? - Violeta foi a primeira a falar.
Efémero observava a floresta à sua volta. Reparou então que havia um outro foco luminoso que se tinha extinguido, algo que só poderia ter acontecido quando estava a tentar libertar as amigas da prisão de pedra onde tinham ficado aprisionadas. Ele tinha a certeza que aquele foco ainda estava bem visível quando andava à procura do alicórnio.
—São as luzes. - murmurou ele.
—O quê? - Cerejinha não tinha percebido bem o que o amigo disse.
—São as luzes. Ele está a destrui-las.
As suas companheiras olharam para ele enquanto Efémero prosseguia com a explicação:
—Havia outra fonte de luz ali. - disse ele, apontando na direcção nordeste. - Deve ter desaparecido ainda há pouco, quando vocês estavam presas em... naquela coisa. E depois houve aquele terramoto, e de seguida vocês libertaram-se. As luzes devem estar relacionadas com a maldição deste lugar.
—Isso é muito interessante, mas o que é que tem a ver com aquela criatura? - perguntou a Violeta.
—Acho que ele está a tentar destruí-las. Deve estar a tentar libertar-se ou a livrar-se da influência deste sítio.
—Ó não... - A resposta para o que o amigo estava a pensar veio quase instantaneamente à mente da Violeta. - Nem penses em fazer uma loucura dessas.
—Nem penso em fazer o quê?
—Nem penses em ajudar aquela coisa a fazer o que seja lá que está a fazer.
—Mas que alternativa tenho eu? Se ficarmos aqui sem fazer nada ou nós ou o alicórnio acabaremos por morrer. Mas se conseguirmos parar o que quer que tenha andado a atacar-nos então pelo menos teremos todo o tempo do mundo para tentar falar com ele.
—Efémero, quero apoiar-te nisto. A sério que quero. Mas de nada te servirá saber que relação tens com aquilo se acabares morto.
—Detesto concordar com a Violeta mas ela tem razão.
Os dois póneis viraram a cabeça na direcção da Cerejinha. Se bem que a égua estivesse longe de estar em pânico, era visível que tinha perdido muito da confiança e optimismo que a caracterizavam.
—Isto ultrapassa-nos. - continuou ela. - Desde que aqui chegamos temos sido quase mortos várias vezes. Não há de demorar muito até deixarmos de ser 'quase' para passarmos a ser completamente mortos.
—Mais uma razão para vocês saírem daqui. Aquele ser é a única coisa que pode ter respostas sobre mim. Eu simplesmente não posso desistir agora.
Efémero sentia-se péssimo. Ele sentia que teria de fazer alguma coisa. Senão porque razão tudo o que tinha acontecido nas últimas semanas o guiou àquele alicórnio? Estelar também acreditava nisso. Claro que ela era meio doida, mas isso não a impediria de ter razão. Enquanto tudo aquilo e muito mais passava pela cabeça de Efémero, ele apercebeu-se de que deveria retirar as suas companheiras da equação onde ele próprio as tinha metido. O facto de ter sido somente um dia antes que lhes prometeu que aceitaria a ajuda delas e não voltaria a deixá-las para trás só o fazia sentir pior.
—Por favor, prometam-me que vão sair daqui imediatamente. - disse ele, encarando as duas éguas o melhor que pôde. - Vou só fazer uma coisa, depois volto imediatamente para o balão. Esperem por mim lá.
—Efémero... - gemeu aflita a Violeta ao aperceber-se da resolução do amigo.
—Voltem para o balão imediatamente. - repetiu ele enquanto lhes virava as costas e se afastava a galopar.
—Efémero, seu estúpido. - gritou-lhe a Cerejinha. - Não vás sozinho ou ainda te metes em sarilhos.
—O pónei nem lhe ligou. Continuou a correr, deixando as amigas para trás. Cerejinha começou mesmo a segui-lo quando a voz da Violeta a fez recordar que não deveria abandonar a sua companheira:
—O que é que fazemos agora, Cerejinha? - A voz da unicórnio tinha uma entoação extremamente deprimente.
Cerejinha parou, limitando-se a seguir o Efémero com o olhar. Avançando por entre a vegetação, o pónei já quase que tinha desaparecido da sua vista.
—Não sei. - disse ela. - Talvez ele tenha razão e devêssemos mesmo ir esperá-lo fora daqui.
—Mas e o Efémero? Nós não...
Violeta parou abruptamente de falar. Foi naquela altura que ela se apercebeu de que algo de terrivelmente errado estava a acontecer-lhe. Começou a sentir algo húmido e sujo a banhar-lhe os cascos e a subir-lhe pelas patas acima. O seu primeiro impulso foi espernear numa tentativa de se livrar do que a estava a envolver. Deverá ser dito que foi completamente inútil, pois mal se conseguiu mexer. Não havia nada a trepar por ela acima. Ela é que estava a afundar-se no chão, com as patas a entrar pela terra adentro. Horrorizada, Violeta soltou um grito. Em resposta, Cerejinha virou-se. A visão da companheira a desaparecer por entre a relva foi suficiente para o seu coração lhe saltar uma batida.
—Violeta, não te mexas - disse-lhe ela. - ou arriscas-te a afundar mais depressa.
Cerejinha aproximou-se da companheira. Ao principio prudentemente, pois temia que ser arrastada para o subsolo pela mesma força que estava a sugar a amiga. Mas assim que se apercebeu de que o chão estava completamente sólido (Pelo menos para ela, pois Violeta estava a afundar que nem uma pedra num lago.) saltou para a companheira e abraçou-a com firmeza.
—Cerejinha, por favor, não me largues. - gemeu a muito assustada Violeta.
Metendo as sua patas dianteiras por baixo das da amiga, Cerejinha puxou com quanta força tinha. Com todo o esforço da pónei cor-de-rosa, Violeta conseguiu libertar a sua pata direita, mas pouco mais lhe adiantou. Ela continuava a afundar, se bem que muito mais lentamente. O seu traseiro já tinha sido tragado pela terra e somente a ponta da sua bonita cauda ainda se conseguia ver por entre a relva.
Virando e revirando o seu cérebro, Cerejinha procurava uma maneira de salvar a sua companheira. Ela poderia atirar-lhe um ramo para se apoiar, poderia atar-lhe uma corda para a puxar, poderia tentar escavar à volta dela para a libertar. Ela poderia fazer muitas coisas, mas tudo do que ela se lembrava envolvia ter que largar a Violeta por um momento. Lamentavelmente, ela sabia muito bem que ela era a única coisa que estava a impedir a amiga de ser sugada para o interior da terra. Não lhe restava outra opção a não ser gritar por socorro.
—Efémero, socorro. Algum pónei me ajude. - berrou ela a plenos pulmões.
Sem nenhuma surpresa, as suas implorações por auxílio caíram em ouvidos moucos.


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