Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 4
Livro 1 Capitulo 4 - Nem tudo o que luz é de cristal




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/702818/chapter/4

À medida que o comboio avançava, Efémero ia olhando pela janela para os campos cobertos de neve. Se bem que a magia do coração de cristal mantê-se os territórios circundantes num clima bastante agradável, à medida que se aproximava do norte o tempo ia ficando cada vez mais frio. Ademais, os pégasos não se preocupavam em cuidar do clima nas zonas afastadas das vilas e cidades. No horizonte começaram a ser visíveis as Montanhas de Cristal. Efémero observou-as atentamente. Para lá delas, à meia dúzia de milhares de anos, antes de Equéstria ser fundada, um estranho alicórnio espalhou o caos entre os unicórnios. Um alicórnio que possuía a mesma marca dele. Tão fascinante e peculiar era aquele facto que o próprio Efémero concentrou a sua atenção nos territórios para lá das montanhas, apesar de dali não os conseguir ver. Lembrando-se de que Cerejinha tinha chamado de demanda à sua então pequena busca, Efémero pensou se não estaria a meter-se em demasiados trabalhos para um simples pónei terrestre. Encontrava-se tão absorvido nos seus pensamentos que nem se apercebeu da aproximação de duas éguas.
—Acreditaste mesmo que te livrarias de nós assim tão facilmente?
Aquela frase caiu-lhe que nem uma bomba. Efémero desviou rapidamente o seu olhar da janela e deu de caras com quem menos esperava encontrar ali. Ao seu lado estavam Cerejinha e Violeta, lado a lado e a olhar para ele. Cerejinha encontrava-se sorridente como de costume mas Violeta apresentava uma expressão que oscilava entre o aborrecimento e a preocupação. Se ela se encontrava assim por ter sido arrastada para ali pela Cerejinha ou pelo amigo ter decidido fazer aquela viagem sozinho já era mais difícil de dizer.
—O que é que vocês estão a fazer aqui? - perguntou-lhes o Efémero muito admirado.
—O mesmo se poderia dizer de ti. - respondeu-lhe Violeta. - Quando a Cerejinha me contou que ias ao Império de Cristal sozinho não quis acreditar. O que te passou pela cabeça?
—Só vou lá ver se consigo obter algumas informações. Quero ter a certeza se isto tem ou não a haver comigo.
—Serei eu a unica pónei com juízo aqui? Quer dizer, uma rouba livros, o outro quer meter o focinho num roubo de livros. Vamos todos ser presos por roubar livros. Vou ter que escrever os meus romances na cadeia. - Violeta estava a mesmo a passar-se. - Minha querida Celéstia, vamos ser os presidiários mais letrados de Equéstria. Já estou a ver os títulos dos jornais. 'Preso o gangue das bibliotecas', 'Trio gama-contos foi hoje a julgamento'...
E Violeta continuava a perder o controle... Tinha-se levantado nas patas traseiras e bracejava como uma doida com as dianteiras. À medida que a voz dela aumentava de tom os outros passageiros começavam a olhá-la desconfiadamente. Cerejinha teve mesmo que intervir para acalmá-la.
—Violeta, pára, estás a assustar-me.
Violeta olhou-a por uns momentos e conseguiu acalmar-se um pouco. Sentaram-se as duas no banco em frente de Efémero. Apesar da Violeta estar ainda um pouco nervosa, estava ainda mais envergonhada pela sua explosão de loucura. Só conseguiu sussurrar "Desculpem.".
—Muito bem, para além de fazerem cenas, estão aqui para mais alguma coisa? - perguntou sarcasticamente o Efémero.
—Estamos aqui para te ajudar. Quer queiras quer não, precisas do nosso apoio.
Efémero abriu a boca para começar a protestar, mas não lhe apetecia entrar numa discussão, por isso resignou-se e suspirou. Se bem que lhe custasse admitir, até para si próprio, sentia-se melhor com a presença das suas amigas. "Talvez seja melhor assim." pensou ele.
Começavam a aproximar-se do Império de Cristal. Ao longe já viam o castelo reluzir com a luz solar. À sua volta o horizonte brilhava, como um se desenho de colagens gigante feito com vidros multicoloridos estivesse pousado por toda a planície.
— Finalmente chegamos, atrasados, outra vez. - resmungou a Cerejinha entre dentes.
A estação de comboios já se avistava. À sua volta dezenas de casas coloridas e resplandecentes erguiam-se orgulhosamente. Tudo aquilo parecia um enorme bufê para uma manada de dragões gigantes.
Eventualmente o comboio chegou à estação, mas antes de saírem Efémero pôs-se a ajeitar a sua mochila. Colocou-a mais para trás, tornando-se bastante desconfortável, mas ao mesmo tempo tapando a sua marca. Desconfiava que o memorando que Cerejinha trouxera de Canterlot tinha sido distribuído por entre os guardas reais, e o mais provável seria que a reconhecessem mal lhe pusessem a vista em cima.
Quando saíram para a estação as suas consciências ficaram pasmadas com o que encontraram. Tinha ouvido falar do Império de Cristal, é claro, e viram algumas fotografias. Mas nada os tinha preparado para tamanho assombro. Todo o que a vista alcançava era feito de cristal, literalmente. Não só as casas e as ruas, mas também a maioria dos póneis brilhava quando a luz dançava no seu pêlo. Havia alguns póneis com um aspecto mais normal, mas estes pareciam ser turistas. Ao longo das ruas diversas fileiras de árvores e arbustos decorativos reflectiam a luz como se fossem esculpidos em pedras preciosas. Esta visão era tão espectacularmente absurda que a Cerejinha não resistiu e pôs-se a apalpar uma árvore, só para ter a certeza de que era uma árvore autentica e não uma estátua de vidro.
—Por todos os alicórnios puros e sagrados deste lado abençoado do multiverso, isto é... - começara a Violeta a exclamar, mas sem chegar a terminar.
Cerejinha continuava a olhar para a árvore. Era uma árvore autêntica, ou mais exactamente um salgueiro. O tronco principal dividia-se em três troncos mais pequenos, e apesar da casca parecer cristal verdadeiro, com reflexos angulares e brilho prismático, tinha a textura rugosa de uma árvore verdadeira. Os ramos eram como lianas, rodeando a árvore com uma cortina de folhas que cintilavam quando ondulavam ao vento. O salgueiro lembrava alguns candelabros que Cerejinha tinha visto no castelo de Canterlot. Eram belíssimas obras de arte em prata decoradas com fieiras de diamantes, mas nada que conseguisse ombrear com aquela árvore. Não era a obra de um ourives mas um organismo vivo que tinha nascido e crescido pelas suas próprias razões e não pelos caprichos artísticos de algum pónei. A custo, Cerejinha afastou-se dela, em parte deslumbrada com o que tinha visto até ao momento, em parte preocupada com o que teria de fazer para pôr em prática a sua arte num local tão colorido como no qual se encontrava.
—Então, o que fazemos agora? - perguntou ela aos amigos, que ainda tentavam sair do estado de descrença em que estavam.
—Vejamos, Er... Bem, acho que deveríamos procurar um sitio onde ficar. Depois falamos no que devemos fazer. - respondeu-lhe o Efémero.
Não demoraram muito a encontrarem um hotel. Era um edifício de cristal rosa com uma grande tabuleta mostrando uma estrela azul sobre a entrada. Chamava-se Pousada do Cristal Brilhante, como se não houvesse já cristais e brilho suficiênte. Na entrada, por detrás de uma escrivaninha, um pónei de cristal, de crina cor de laranja e de uniforme vermelho, cumprimentou-os:
—Bem-vindos à Pousada do Cristal Brilhante. O meu nome é Tarte de Pêra e espero que a vossa estadia aqui seja agradável.
O hotel parecia ser bastante acolhedor e felizmente uma grande parte dos quartos ainda se encontravam desocupados. Depois de alugarem um quarto cada um e de se instalarem, reuniram-se todos no quarto da Violeta para combinar no que fariam.
—Muito bem. Agora que estamos aqui o que estás a pensar fazer? - perguntou a Violeta ao Efémero.
—O artigo que roubaram da biblioteca tinha sido retirado recentemente da secção de história antiga para restauro. Quem o roubou devia andar à procura de informações sobre o tal pónei naquela secção. O que quer dizer que possa haver lá algo que me indique o que procuro.
—Mas se não sabes o que procuras, como vais saber que o encontraste?
—Eu... não sei.
A pergunta da Violeta tinha deixado Efémero inseguro. Na verdade, ele não sabia porque motivo estava a fazer tudo aquilo. Sentia curiosidade em descobrir o significado da sua marca e a sua verdadeira familia, mas na realidade possuia um vazio que não compreendia totalmente. À alguns anos atráz, quando a Cerejinha lhe contou a sua verdadeira vocação de ser uma ninja, Efémero tinha-lhe perguntado o porquê dela se dedicar àquilo. Ela respondeu-lhe que só estava a ser ela própria. Aquela resposta tinha-lhe causado uma grande impressão porque ele nunca se tinha sentido ele próprio. Inclusive até aquele, dia algo lhe dizia que ele precisava de se encontrar consigo mesmo.
—Eu não sei o que procuro nem como o vou encontrar, só sei que existe muito de mim que não faz sentido. Quando começar a fazer saberei que estou no caminho certo.
Apesar da resposta do Efémero ter falhado completamente em iluminar a pobre Violeta, esta, pelo menos, ficou muito contente em irem-se limitar a visitar uma biblioteca. Pelo menos o Efémero não parecia disposto a praticar os disparates tipicos da Cerejinha, como assaltos a castelos e roubos de documentos valiosos.
Ao sairem do hotel, Cerejinha não trouxe consigo a sua habitual mochila preta. Violeta e Efémero suspiraram de alivio, visto que isso significava que ela não trazia o seu arsenal de ninja atráz. Menos uma coisa com que se preocuparem. Entretanto Efémero tinha tido uma ideia.
—Vocês podem ir indo. Vou fazer uma coisa primeiro. - disse ele, e dirigiu-se a um ardina.
A melhor espionagem que se pode ter é feita com conhecimento de dominio publico. Vulgar mas verdadeiro, mesmo em Equéstria. Efémero comprou alguns jornais na esperança de encontrar algo interessante. Infelizmente a unica referencia que encontrou foi a noticia do assalto à biblioteca num jornal editado à cerca de duas semanas atráz. Desapontado por ter desperdiçado tempo e bits, prosseguiu para a biblioteca.
A biblioteca era um edificio enorme, construido todo em cristal azul e com duas grandes estátuas de grifos a ladear a escadaria que levava à entrada. O interior era um enorme espaço aberto com dezenas de metros de altura. As paredes de ambos os lados estavam completamente cobertas de estantes com milhares de livros e pergaminhos, com diversos passadiços e escadas a permitirem aceder-lhes.
Quando Efémero lá chegou já Cerejinha e Violeta tinham entrado. Cerejinha encontrava-se a conversar com a bibliotecária, uma velha égua de crina grisalha chamada Ametista Maresbury com um pergaminho rodeado de estrelas como marca, enquanto Violeta olhava admirada para a enorme colecção de livros que a biblioteca albergava. Esta sentiu a aproximação do companheiro e murmurou-lhe receosa:
—Por favor, diz-me que não precisamos de ler estes livros todos.
—Não te preocupes. Só me interessa informações de história anterior à criação de Equéstria. - respondeu-lhe Efémero.
A secção de história antiga não era tão grande como prometia ser. Limitava-se a duas estantes no terceiro andar e tratava sobretudo de história anterior à fundação de Equéstria. Apesar de tudo, eram duas estantes bastante grandes e a tarefa ameaçava ser austera. Os três companheiros olharam-nas penosamente, adivinhando o trabalho que os esperava.
—Muito bem. - suspitou Cerejinha. - É melhor começarmos se queremos encontrar alguma coisa.
E meteram-se ao trabalho. A tarde foi bastante longa e pareceu-lhes ter-se arrastado infinitamente.

**********************************************

Quando a biblioteca começou a fechar, sairam os três para a rua um tanto ou quanto descontentes e esfomeados. O dia tinha sido bastante monótono. Passar uma dezena de horas a esfolhear literatura completamente desinteressante foi excepcionalmente cansativo e infrutifero para os três companheiros. Ademáis, só tinham percorrido cerca de um terço dos livros presentes e ainda não tinham achado nada relacionado com o tal ser, nem com a sua marca, nem tão pouco alguma coisa parecida com uma seita. Efémero e Cerejinha estavam extremamente cansados e frustrados. Violeta encontrava-se somente aborrecida. Dos três amigos era a que tinha sofrido mais com as emoções dos ultimos dias e na realidade aquela tarefa pacifica e sedentária ajudara-a a recuperar algumas forças.
Felizmente pera eles havia um restaurante na mesma rua da biblioteca. Será inutil dizer que foram lá jantar. Apesar de estarem mortos de cansaço e quererem terminar o resto do dia a descansar no hotel, não puderam evitar a arrastar o jantar enquanto falavam sobre aquele dia.
—Não te preocupes Efémero, de certeza que encontraremos uma pista para o que se está a passar. - comentou a Cerejinha entre duas dentadas na salada. - Esta cidade é enorme. De resto, mesmo que não encontremos algo aqui, vou voltar a meter o focinho nos arquivos de Canterlot da próxima vez que lá for. - terminou ela com um simples sorriso enquanto olhava para o amigo.
O à vontade com que ela disse aquilo surpreendeu tanto a Violeta que esta engasgou-se e quase espirrou sumo pelas narinas. Efémero, esse parecia não ter ligado muito. Continuava calmamente a comer. Eventualmente falou com uma voz grave e disse:
—De certeza que deve haver qualquer coisa naquela biblioteca. Se não houver, porque é que foi assaltada?
—Efémero, por Celéstia, tem calma. Esta história toda pode estar ou não estar relacionada contigo, mas não podes esperar resolver tudo dum dia para o outro. - disse a Violeta. - Especialmente agora com essa história do roubo. Não podias ter deixado passar algum tempo?
—Já passaram duas semanas desde o assalto à biblioteca. Com certeza que um trio de turistas não haverá de levantar muitas ondas. - resmungou Efémero enquanto olhava para os outros póneis em volta. A maior parte dos clientes do restaurante eram estrangeiros e o numero de póneis de cristal era surpreendentemente baixo.
—Mesmo assim continuo a achar que tudo isto é simplesmente muito arriscado, Efémero. Sei que queres encontrar a tua familia verdadeira, mas...
—Não é por causa da minha familia, é por causa dela. - voltou a resmungar o Efémero enquanto mirava para o seu flanco. A sua marca pareceu lançar-lhe um sorriso antes de desaparecer. - Às vezes sinto-me como se não soubesse quem sou, e a minha estupida marca está lá sempre para me lembrar disso.
Violeta olhou para a expressão carrancuda que se formou no rosto de Efémero. Como sempre ficou pasmada com a facilidade em que ele se impressionava com o que lhe parecia ser algo supérfulo. Com um esforço dominou o seu impulso de se afligir, pois se antes não tinha servido para nada não era agora que adiantaria para alguma coisa. Ao invéz disso, tentou distrair o amigo ao mudar de assunto.
—Não é que esta viagem esteja a ser um desperdício. O Império de Cristal é simplesmente magnifico. - disse ela. - E a arquitectuta... Como é que eles constroem estes edificios? Deve exigir um esforço enorme escavar as casas em cristal, para não falar em trazer os gigantescos blocos para a cidade.
—As casas não são escavadas. São construidas empilhando cristais e fundindo-os com magia. - corrigiu a Cerejinha. - É dificil reparar nas juntas, mas se se observar com atenção são fáceis de distinguir.
—Com magia? Mas como? Tanto quanto eu pude ver, todos os póneis de cristal são póneis terrestres.
—Isso eu não sei.
—Eles usam um óleo encantado. Ao secar actua como uma poção, cristalizando-se a si próprio enquanto se transforma nas substâncias com que está em contacto. Basicamente é uma modificação da cola mágica criada por Star Swirl, o Barbudo para enxertar rebentos em plantas.
Cerejinha e Violeta olharam para o Efémero. Este reparou nas expressões das companheiras e perguntou:
—O que foi?
—Como é que sabes isso tudo? - perguntou a Cerejinha.
—Li sobre isso. Interesso-me muito por ciências, inclusive as místicas.
—Vocês podem ir indo para o hotel. - disse a Cerejinha enquando devorava os ultimos pedaços da sua refeição. - Eu sinto-me um pouco enferrujada por passar o dia inteiro sentada. Vou dar uma volta.
Violeta olhou para ela um pouco desconfiada. Temia que a amiga pudesse estar a cozinhar algum problema.
—Aonde vais? - perguntou ela à Cerejinha. - Espero que não estejas a pensar em andar a praticar os teus disparates ninja onde não deves.
—O meu treino não é um disparate. - respondeu-lhe Cerejinha, sem sequer se preocupar em esconder que se sentia ofendida pela observação da Violeta. - Vou simplesmente dar uma volta pela cidade, e talvez comprar uma coisa de que preciso. - E virando as costas, afastou-se dos amigos.
Cerejinha observava atentamente a cidade enquanto trotava. Era realmente uma maravilha, mas ela nutria-lhe um rancor terrivel. Ela não tinha conseguido adaptar-se. As suas experiências com camuflagens para usar no Império de Cristal tinham produzido alguns resultados interessantes, mas assim que Cerejinha viu pela primeira vez a cidade com os seus próprios olhos soube que tinha sido derrotada. Ela tinha conseguido criar pinturas de cristal com aspecto realista e até tinha trazido duas das melhores camuflagens para experimentar, mas a diversidade de cores e texturas das casas tornavam qualquer camuflagem completamente inútil excepto em situações muito limitadas. Para alguém esgueirar-se por uma rua teria que se fazer acompanhar por dezenas de camuflagens e estar constantemente a mudar entre elas, o que seria impossivel.
Cerejinha sentia-se frustrada, e quando se sentia frustrada pintava. Eventualmente encontrou o que procurava, uma loja de pintura chamada Dança dos Pinceis. Era uma pequena casa redonda construida em cristal purpura, a porta estava ladeada por montras mostrando não só quadros mas também esculturas em madeira e barro. Cerejinha comprou lá duas telas, como uma pónei normal, não sorrateiramente como gostava de fazer, e voltou para o hotel. Ela tinha trazido algum do seu material de pintura na bagagem, mais por impulso do que por escolha, pois não esperava ter vontade de pintar enquanto estivesse no Império de Cristal.
Abrindo a janela do seu quarto, Cerejinha observou atentamente a bonita paisagem sobre a cidade. O seu quarto possuia uma bela vista das ruas, com as casas multicolores e as árvores brilhantes aleatoriamente alinhadas, como um caleidoscópio gigante. No horizonte, o castelo, majestoso e imponente, resplandecia na luz do Sol. Era um magnifico cenário que implorava ser imortalizado numa tela e a Cerejinha não conseguiu resistir. Pegando uma pena com a boca, desenhou o contorno dos edificios e ruas. Depois esperou pacientemente pelo por-do-Sol para começar a pintar. Cerejinha esperava que o por-do-Sol criasse as combinações ideais de luz e sombras que ela adorava utilizar. Infelizmente por qualquer razão as princesas gostavam de levantar e descer o Sol e a Lua bruscamente ao invês de ajuizadamente movê-los a uma velocidade constante. Consequentemente ela só teria alguns minutos de por-do-Sol para aplicar as cores.
Quando a luz ideal começou a banhar as casas, Cerejinha lançou-se numa corrida para tentar pelo menos aplicar a primeira camada antes do Sol se pôr completamente. Para uma pintora experiente como ela era facil misturar a olho as tonalidades correctas e o quadro começou a ganhar cor. À medida que se empenhava na sua pintura, ela ia aliviando a sua frustação e embrenhava cada vez mais na sua criatividade. Imaginava que a sua experiência a fazer camuflagens para usar no Império de Cristal pelo menos serviriam para dar um acabamento bastante espectacular àquela pintura.
Pelo canto do olho, Cerejinha reparou um grupo de póneis a passar pela rua. Isso desconcertou-a por alguma razão. Cerejinha continuou a pintar mas a sua mente estava sempre a voltar àqueles póneis. Porque razão lhe perturbara tanto? Ela debruçou-se na janela para ver se os via, mas a rua estava deserta. Tentando voltar a sua atenção para o quadro, Cerejinha recomeçou a pintar, mas não conseguia abster-se do que tinha visto. Ela apercebeu-se que eles pareciam estar a mover-se como se não quisessem ser vistos, de uma maneira atrapalhada, amadora e vergonhosa, pelo menos pelos padrões dela. Cerejinha voltou para a janela e olhou em volta. Por uns momentos ela não viu viva-alma, mas de repente aquele mesmo grupo de póneis saiu do hotel e pareciam carregar alguma coisa, ou algum pónei. Instintivamente Cerejinha soube o que se passava. Saiu do seu quarto a correr e olhou para o fundo do corredor. Ela viu aquilo que temia, a porta do quarto de Efémero aberta. A galopar, Cerejinha bateu rapidamente à porta do quarto da Violeta e entrou no do Efémero. Não havia sinais do amigo e apenas um candeeiro de mesa quebrado no chão mostravam evidências que algo de anormal se passara. Cerejinha abriu a janela do quarto e olhou para o fundo da rua. Umas sombras, que lhe pareciam pertencer àquele grupo acabavam de virar uma esquina. Nesse momento a cabeça de Violeta surgiu à porta do quarto.
—O que foi? O que se passa? - perguntou ela.
—Raptaram o Efémero. - respondeu-lhe a amiga. - Tenho que ir. Fica aqui.
Sem tempo a perder e para surpresa da Violeta, Cerejinha saltou para o lado de fora da janela, agarrando-se ao beiral com as patas, e deixou-se cair para a rua. Pôs-se a galopar o mais rápido que pôde e alcançou o sitio onde ainda à pouco os deixara de os ver num instante. Olhando discretamente pela esquina viu que eles não se tinham ainda afastado muito. "Felizmente esta manada de idiotas é incompetente, para dizer o minimo." pensou ela para si mesma, enquanto amarrava a sua crina e a sua cauda com as fitas dos seus laçarotes. Entretanto ela ia pensando no que poderia fazer, mas não lhe ocorria nada que lhe parecesse sensato ou praticável. Quando os póneis se afastaram o suficiênte para não a verem ou ouvirem, Cerejinha pôs-se a seguir-lhos. Não havia mais nada que ela pudesse fazer, e o importante naquela altura era não perder o Efémero de vista. Ela não teve nem tempo e nem sequer pensou em vestir o seu fato negro, mas também teria sido inútil. Se havia coisa que o Império de Cristal fosse, era ser brilhante como tudo. Mesmo só com o luar, havia demasiada claridade para um pónei de negro conseguir ocultar-se convenientemente nas sombras. Felizmente Cerejinha não precisava de se manter indetectavel para todos os póneis, apenas para o gangue que estava a seguir.

**********************************************

Ao descer as escadas aos tropeções, Violeta tentava assimilar o que havia acontecido. Ainda não tinha acreditado que o Efémero tinha sido raptado, apesar de que sempre soube que qualquer coisa do género acabaria por acontecer. Encontrava-se num tal estado de choque que nem se apercebeu da enorme concentração de vozes que vinha do andar de baixo.
Quando finalmente chegou ao fundo das escadas, ela encontrou uma enorme confusão. Uma multidão de póneis rodeava Tarte de Pêra. Este não parecia estar bem e um dos paquetes estava a dar-lhe um como de água. Todos os outros póneis falavam simultaneamente.
—O que se passou? - perguntou uma égua.
—Parece que algum pónei atacou o recepcionista. - respondeu-lhe outro pónei.
Com um esforço, Tarte de Pêra levantou a cabeça e finalmente conseguiu começar a falar.
—Eram um grupo de pôneis. Deviam ser cinco ou seis e pareciam ser estrangeiros. Entraram por aqui dentro e um deles, um unicórnio, acho eu, empurrou-me e devo ter desmaiado.
—Mas que queriam eles? Roubaram alguma coisa? - perguntou um garanhão de meia idade. - Alguém deu por falta de bagagem?
—Raptaram o meu amigo.
Apesar de Violeta ter falado em voz baixa, o efeito daquelas palavras foi avassalador. Todos os póneis presentes viraram-se para ela e ficaram um momento a observá-la em silencio.
—Eles raptaram o meu amigo. - repetiu ela passado um bocado.

**************************************************************

Quando os guardas reais finalmente chegaram, Violeta estava sentada nas escadas a levitar uma chavena de chá que lhe serviram. Se bem que parecesse calma, na realidade continuava abalada. Depois do dono do hotel, um pónei de cristal chamado Ambar Cintilante, contar-lhes o que se tinha passado, os guardas dividiram-se e foram falar com os póneis individualmente. Um deles dirigiu-se para a Violeta.
Começou por lhe perguntar o que se passara, o que vira e outras coisas do género. Violeta ia respondendo a tudo, mas ocultou o verdadeiro propósito da visita. "Viemos ver o Império de Cristal. Ouvimos falar tanto deste sitio que não resistimos a vir cá passar uns dias." disse ela. O problema surgiu quando lhe pediu a descrição de Efémero. Ela sabia pelo memorando que a Cerejinha tinha roubado que ele reconheceria facilmente a sua marca. A ultima coisa que ela queria era mentir-lhe, em parte porque estariam em sarilhos quando descobrissem a verdade, em parte porque dar-lhe uma descrição falsa só prejudicaria a busca pelo Efémero.
—A marca dele é, bem, é um meio circulo castanho escuro, e com, assim, uns riscos pretos. - disse ela meio atrapalhada. Esperava que aquela descrição podesse ser ambigua o suficiente para os guardas não associarem imediatamente com a descrição do memorando. Violeta não mensionou nada sobre a marca dele estar constantemente a aparecer e desaparecer.
Felizmente o guarda real parecia não ter ligado muito à marca, nem tão pouco reparou na hesitação da Violeta ao mentir, provavelmente por ela já estar em choque devido ao rapto. Achou estranho, isso sim, ao comportamento da Cerejinha.
—Está a dizer que a outra pónei atirou-se da janela abaixo? Do primeiro andar?
—Sim. Quer dizer... Ela está sempre a fazer esse tipo de coisas. - A cara que o guarda fazia mostrava que ele achava bastante duvidoso o que a Violeta estava a relatar. - É uma boa atleta e está sempre a treinar. Para ela trepar ou descer uma árvore não é nada.
—E não sabe em que direcção ela foi?
—Não, não olhei pela janela. Nem sequer entrei no quarto. Vim directamente para aqui.
Felizmente para Violeta, o guarda não achou necessário perguntar-lhe mais nada. Ademais, ela estava demasiada perturbada com o desaparecimento de Efémero para se preocupar com o que os outros póneis achavam do comportamento da amiga. E apesar do senso comum lhe indicar que a Cerejinha seria a que estaria em melhor estado deles os três, ralava-se com ela como se também tivesse sido raptada. Violeta levitou a chavena até à altura da sua boca, mas ao invéz de beber o chá, simplesmente pôs-se a olhar para ele.
—O que lhes terá acontecido? - murmurou ela.
No fundo da chávena, inaudível e deprimido, o reflexo do seu próprio rosto não lhe ofereceu qualquer resposta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os póneis bonzinhos vão para o Inferno" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.