Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 5
Livro 1 Capitulo 5 - Fuga estelar




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Pela janela do seu quarto, Estelar olhava as Montanhas de Cristal com volúpia. A Lua iluminava-as magnificamente, assim como a todo o Império de Cristal. Mas a atenção de Estelar estava focada para além das montanhas. Ao fim de tantos anos, de tanto trabalho e esforço, o seu grande objectivo encontrava-se mesmo ao alcance do seu casco. Tão próximo que ela quase o conseguia ver à sua frente, tão nítido e imponente como na primeira vez que o avistou, à tanto tempo atrás. E então o inconcebível tinha acontecido e o destino tinha-lhe enviado um sinal. Um sinal do quê, ela não o saberia dizer, mas que era importante ela não o poderia negar.
Tinha-o procurado obsessivamente por ele desde a sua juventude. Tão fascinada que estava Estelar com aquele ser que ela venerava-o como um deus. Como poderia ele não ser um deus? Como poderia um pónei tão antigo e tão poderoso, tão velho que somente os mais antigos escritos o referiam, não ser objecto de culto? Como poderia algo tão primordial a tudo o que se conhecia não estar ligado ao próprio mundo? E era precisamente isso que Estelar lhe chamava, Primordial.
E na sua obstinada busca ela tinha atraído outros póneis que acabaram por se tornar tão fanáticos como ela. Eventualmente começaram a comportar-se como um culto, se bem que nenhum deles o consideraria isso. Eram apenas um grupo de póneis a reverenciar desmioladamente um estranho alicórnio de que nada sabiam, atribuíam-lhe poderes divinos e organizaram toda a sua vida numa demanda para o encontrar com o objectivo de servirem-no. Um culto? Não tem nada a ver, que ideia.
Depois de anos a pesquisar por entre documentos antigos e ruínas esquecidas, as únicas coisas que Estelar tinha obtido eram rumores e mitos. Somente migalhas que pouco lhe serviram. Ela calculara que viera algures das terras habitadas pelos póneis antes da fundação de Equéstria. Mas esse território era imenso, para não dizer que entretanto se tinha tornado completamente desconhecido. Parecia que a lenda não era mais do que isso, uma lenda. Ironicamente, foi uma lenda que lhe renovou a esperança. O Império de Cristal, depois de séculos perdido nas sombras ressurgiu em Equéstria. Uma cidade inteira intocada durante mil anos era o reservatório ideal de conhecimento antigo.
Então Estelar dirigiu-se ao Império de Cristal, fazendo-se acompanhar por alguns dos seus companheiros. Como membro da Sociedade Arqueológica de Equéstria, não lhe foi muito difícil arranjar desculpas para andar a pesquisar em tudo o quanto é sitio. Mas não o fez às claras. Para evitar suspeitas, costumava usar um disfarce quando se envolvia nas suas pesquisas particulares. Naquela ocasião não abriu uma excepção.
Com uma cidade inteira para explorar, Estelar começou por criar uma espécie de base. Uma casa antiga para alugar foi o sítio ideal. Com os seus associados espalhados por hotéis em toda a cidade, aquela casa oferecia um lugar onde se encontrarem sem levantar muitas suspeitas. Infelizmente eles não se assemelhavam em nada com os nativos, por isso tinham que ser discretos para evitar atenções indesejadas. Com o tempo o seu bando foi-se espalhando e metendo o focinho em todos os assuntos que pudessem trazer novas revelações sobre o Primordial. À primeira vista todos os esforços tinham sido infrutíferos, apesar de tudo, e contra todas as probabilidades, Estelar ter conseguido trazer alguns póneis de cristal para a sua pequena seita.
Então, para sua surpresa, ela encontrou na biblioteca pública do Império de Cristal referencias a um pergaminho que falava de vários avistamentos daquele alicórnio. Lamentavelmente, Estelar não tinha sido a primeira a dirigir-se ao Império de Cristal com objectivos educativos. Pouco depois da derrota do Rei Sombra um grupo de historiadores de Canterlot tinham ido estudar o Império de Cristal. No meio das investigações deles foram descobertos vários documentos que estavam em tão mau estado que corriam o risco de serem destruídos, por isso foram retirados das estantes públicas e submetidos a restauro. Entre eles estava aquele precioso pergaminho, subtilmente retirado dos cascos de Estelar pelas artimanhas irónicas do destino, mesmo antes dela se aperceber que ele lá estava.
Estelar tentou ter acesso a esse documento que lhe era tão fundamental, mas revelou-se completamente inútil. Os estudiosos de Canterlot recusaram deixá-la acederem-no. Os documentos estavam tão danificados que nenhum pónei poderia sequer tocá-los sem estarem totalmente restaurados. Mesmo depois disso seria pouco provável que voltassem a ser colocados à disposição do público.
Atormentada por se encontrar tão perto da única pista sólida que lhe tinha surgido em anos e simultaneamente tão longe de lhe conseguir pôr os cascos em cima, Estelar tomou uma atitude arriscada. Ela decidiu assaltar a ala da biblioteca para onde o documento tinha sido levado. Teria sido a coisa mais absurda que ela poderia ter feito, não fôra o facto da biblioteca não estar guardada. Afinal de contas, quem pensaria em assaltar uma biblioteca quando podia simplesmente requisitar um livro?
Durante uma noite ela e mais dois companheiros dirigiram-se à biblioteca. O maior problema era estroncar a porta principal. Era grande e resistente. Ademais, não podiam fazer muito barulho na rua para não atraírem a atenção das patrulhas de guardas. Porém, bastou algum cuidado e um bom pé-de-cabra, e lá conseguiram entrar sem problemas. Uma vez dentro da biblioteca tudo se tornou mais fácil. A secção de restauro encontrava-se na cave e a sua porta não ofereceu qualquer resistência a um coice bem aplicado. Estelar e os seus companheiros começaram então a vasculhar tudo.
Havia livros e pergaminhos espalhados pelas mesas, todos eles com um aspecto de bastante maltratados e envelhecidos. Para além disso as paredes estavam cobertas com armários. Alguns deles continham material de restauro, mas outros possuíam os livros que já tinham sido restaurados. Foi aí que eles encontraram o pergaminho que procuravam. A sorte continuava a sorrir para Estelar, pois tinha sido acabado de ser restaurado. Tinha sido colado sobre uma longa folha de papel e coberto por verniz protector. Bem precisava, pois estava literalmente a desfazer-se aos pedaços e assim pelo menos podia ser manipulado sem o risco de se desfazer em pó.
Apesar da escrita ser bastante antiga e de estar tão estragado que algumas partes tornaram-se ilegíveis, com alguma prática podia tirar-se o sentido do texto. E então abriu-se caminho para as esperanças de Estelar. Falava de um sítio chamado Inferno, um lugar que existia no meio de uma floresta verdejante, algures do meio das terras que os póneis tinham habitado antes de fundarem Equéstria. Todos os póneis evitavam-no como se fosse a entrada para o próprio Tártarus, pois muitos tinham tentado lá entrar, mas a maioria não voltou. Os poucos que voltaram falavam de uma cidade que parecia odiá-los de morte, mudava de forma como um labirinto vivo e tornava o próprio terreno hostil debaixo das suas patas. Porém, o mais importante foi que o ser que Estelar chamava de Primordial fôra avistado várias vezes perto daquele lugar. Estelar estava maravilhosamente extasiada.
O problema era a localização do Inferno. O pergaminho possuía um mapa bastante pormenorizado, mas infelizmente todos os locais de referência eram completamente desconhecidos. Visto que aquele território estava desabitado à vários milénios, seria quase impossível usar o mapa para traçar um caminho minimamente preciso.
Por outro lado, havia outra solução. Uma equipa de unicórnios tinha decidido pesquisar aquele sítio. Entre os estudos efectuados, os unicórnios mediram as ressonâncias mágicas que emanavam daquela área. Sem surpresas, a quantidade de energia mágica era anormalmente alta lá, e as suas características pareciam alienígenas, para dizer o mínimo. Felizmente estavam registadas naquele documento as principais medições que os unicórnios tinham obtido. Não seria muito difícil criar um feitiço que pudesse ser usado para detectar aquele lugar. Havia sempre a possibilidade da ressonância mágica ter mudado o suficiente para tornar aqueles registos inúteis. (E com o tempo que tinha passado, essa possibilidade era bastante alta.) Mas era a melhor hipótese que Estelar tinha, por isso ela ordenou a dois unicórnios que começassem o desenvolvimento do feitiço que finalmente os conduziria ao tão desejado destino.
Mas o assalto à biblioteca não tinha sido ignorado. Guardas reais começaram a investigar o roubo e uma das primeiras coisas que fizeram foi verificar quem tinha tentado ter acesso ao documento roubado, o que os levou à casa que Estelar tinha alugado. Felizmente, Heliotrópio, um dos póneis de cristal que recentemente se tinha juntado a Estelar, trabalhava no castelo e por sorte descobriu que os guardas tinham descoberto a ligação entre ela e o seu esconderijo alugado. Se bem que conseguiram abandoná-lo antes que os guardas reais lá chegassem, foi bastante inconveniente terem-no perdido, pois a maior parte do grupo estava dividido por diversos hotéis espalhados por todo o Império de Cristal. Tornou-se bastante inconveniente organizar os encontros, pois eles eram muitos e não podiam arriscar ao aglomerar massivamente em sítios públicos ou hotéis, muito menos com os guardas a investigar o assalto à biblioteca.
Apesar de todos os inconvenientes, Heliotrópio miraculosamente conseguiu outro trunfo para Estelar. O Alicórnio Voador, um dirigível real acabado de construir, estava ancorado nos arredores do Império de Cristal pronto para uma viagem até o outro lado do mar. Era um gigantesco navio aéreo, com três andares de compartimentos para carga e passageiros, a perfeita base voadora para a expedição ao Norte Gelado. Heliotrópio tinha conseguido meter a pata entre a burocracia do palácio e potenciou um plano para desviar o Alicórnio Voador. Uma simples lista dos tripulantes era tudo o que ele tinha obtido, e era precisamente tudo o que Estelar necessitava.
Enviando cartas falsas aos tripulantes do Alicórnio Voador a anunciar que a partida tinha sido adiada uma semana permitiria a ela e ao seu bando tomar o lugar deles com relativa facilidade. Se bem que a tripulação esperada era uma fracção dos companheiros da Estelar, estava a ser planeada um ponto de recolha dos restantes póneis por detrás de um monte a este do Império de Cristal. Na realidade já tinha sido depositado a maior parte dos mantimentos e equipamento que seria usado naquela expedição. Com um pouco de sorte demoraria três ou quatro dias a descobrirem o golpe, e por essa altura já estariam suficientemente longe para serem encontrados. Se Estelar fosse um pouco mais nova e muito mais impulsiva estaria a saltitar de tanta alegria.
Mas apesar de tudo nada a tinha preparado para o que iria acontecer de seguida. Alguns dos seus companheiros tinham vindo avisá-la de algo que os tinha deixado perplexos. Tão absurdo que era que ela própria nem queria acreditar enquanto não estivesse à sua frente, ao alcance dos seus próprios sentidos. Enquanto esperava com os olhos postos nas Montanhas de Cristal, a sua mente meditava no seu deus, em tudo o que sabia dele. De repente algum pónei bateu à porta.
–Senhorita Estelar, eles acabaram de chegar. - soou uma voz do outro lado da porta. - Conseguiram capturá-lo. Posso trazê-lo para aí dentro?
O coração de Estelar parou durante alguns segundos. Quando voltou a funcionar ela mal conseguiu falar.
–Sim, sim... Raio Azul. Traga-o.
A porta abriu e um pónei terrestre azul-escuro com crina e cauda azul claro entrou carregando o coitado do Efémero na garupa dele, muito bem enrolado num tapete. Limitou-se a largá-lo no meio do chão e a desenrolá-lo, depois retirou-se do quarto. Amarrado, vendado e amordaçado, Efémero não podia fazer mais nada do que espernear. Estelar ficou a observá-lo durante um bocado. No seu flanco a sua marca surgia e desvanecia intermitentemente sob o seu olhar. Ela era realmente igual à do Primordial em todos os aspectos, até nos mais pequenos pormenores. Por uns momentos a mente de Estelar bloqueou de tão atónica que ela estava.
Finalmente Estelar abocanhou-lhe a venda e tirou-lha, seguido da mordaça. Efémero parou de estrebuchar e pôde finalmente observar Estelar. Ela era uma pégaso nos seus trinta e poucos anos. Possuía pêlo vermelho e tinha a crina e a cauda preta, tal e qual a descrição de Pena Escarlate no memorando da guarda real. Somente a sua marca era diferente, um livro púrpura ao invés de uma pena vermelha escura. Estelar reparou que ele mirava o seu flanco e sorriu ao adivinhar o que lhe ia na mente.
–Sim, fui eu que assaltou a biblioteca. E sim, esta é a minha marca verdadeira. - disse ela enquanto se virava para que Efémero pudesse ver melhor a sua marca. - A Pena Escarlate era apenas um disfarce. Estranhamente, serviu-me como uma luva. Pena Escarlate parece ser-me um nome muito mais apropriado, não achas?
Olhando-a nos olhos, Efémero reparou que, apesar dela parecer calma, encontrava-se exitadíssima, quase ao ponto de explodir. Assustado, confuso e sem saber o que fazer, só conseguiu dizer o primeiro disparate que lhe passou pela cabeça:
–Por favor, diz-me que não me raptaram só para poderes mostrares-me o traseiro, porque nesse caso tenho mesmo razões para ficar assustado.
–Ó não... Não é a minha marca que é importante. É a tua. Ainda não consigo acreditar. Não acredito, não acredito mesmo! - exclamava Estelar com um enorme sorriso no rosto. Era bastante visível o enorme esforço que ela fazia para não desatar aos pulinhos. - É mesmo igualzinha à marca dele. Não acreditei quando aquele idiota do Raio De Sol disse a que tinha visto naquele restaurante.
Se não estivesse amarrado, Efémero teria levado o seu casco à cara com força suficiênte para deixar um galo. A Cerejinha costumava dizer-lhe que um bom ninja só é apanhado quando se descuida com os detalhes, e foi isso que o tramou. Durante o dia inteiro ele tinha sido bastante cuidadoso ao esconder a sua marca com a mochila, mas estupidamente tirou-a para se sentar na biblioteca e no restaurante. De certeza que a Cerejinha teria fartado de gozar com ele se ela tivesse lá estado.
–E agora estás aqui. Mesmo aqui ao pé de mim. - continuou Estelar. -Estávamos mesmo prontos a partir à procura dele e agora temos um pónei com a mesma marca, a mesma marquinha, para nos fazer companhia na viagem.
–Estás louca? Andaste a comer queques fora do prazo? Aquela coisa não é vista à milénios, já deve estar a fazer pó à muito tempo. Mesmo que não esteja morto sabe-se lá onde ele poderá estar. Acreditas que não tinha mais nada que fazer do que sentar-se muito quietinho em Equéstria durante séculos à espera de ser abordado por póneis malucos?
–Óh... Mas ele não só está vivo como têm andado por Equéstria. - Estelar aproximou o seu focinho do de Efémero e sussurrou: - Vi-o. Vi-o como te estou a ver agora, à minha beira. Foi à vinte e um anos atrás e lembro-me como se fosse hoje.
Vinte e um anos. Efémero não ficou muito espantado mas não conseguiu evitar um arrepio. Era a sua idade. Foi nessa altura que ele foi parar ao orfanato.
–Eu era apenas uma potra. Ele olhou para mim e eu olhei para ele. Foi a meio da noite. - continuou Estelar. - Acordei ao ouvir barulho no telhado. De repente o tecto caiu e uma enorme sombra entrou pelo buraco. Era ele. Quase que ia ficando debaixo dos escombros, mas não fiquei. Ele era simplesmente gigantesco, e era tão majestoso. Estava lua cheia, por isso via-o bem. Era tão grande que quase não cabia no meu quarto. As pernas musculadas pareciam árvores, as enormes asas eram como a noite a cobrir o mundo inteiro e o seu cabelo era fogo a ondular ao vento.
Efémero olhava incrédulo para Estelar. A excitação dela assemelhava-se mais à paixoneta de uma égua pré-adolescente do que a qualquer outra coisa. A partir daquele momento Efémero teve a certeza de que Estelar era realmente insana.
–A marca dele estava mesmo ao pé da minha cara. Um meio circulo castanho com linhas e símbolos arcanos, piscando como um vaga-lume. Ficou ali um bocado a olhar-me, a perscrutar-me com aqueles enigmáticos olhos negros.
Sem conseguir resistir ao impulso, Estelar começou a rir-se e a saltitar. Com a aproximação do seu reencontro com o Primordial e a presença de algum pónei relacionado com ele, o seu auto-controle começava a decair. Por outro lado, o momento que ela esperava à tantos anos finalmente a aproximar-se ela podia dar-se ao luxo de estar feliz. Passado um bocado acalmou-se um pouco e continuou:
–Pouco depois levantou voo e nunca mais o vi, se bem que tenha conseguido recolher alguns testemunhos que dizem que o viram em vários pontos de Equéstria naquela noite. Aquilo passou-se precisamente na véspera de teres dado entrada no orfanato, Efémero. - disse Estelar enquanto olhava para a cara de espantado de Efémero. - Ó, sim... Eu sei o teu nome. Fiz algumas investigações enquanto esperava que te trouxessem.
–Mas... o que é que eu tenho a ver com ele?
–Não faço a mínima ideia, mas de certeza que és importante. É uma sorte teres aparecido, mais um dia e já estaria muito longe daqui. Não, sorte não. Foi o destino que te trouxe. O destino quer-me ao lado dele e trouxe-te até mim por alguma razão. Agora tenho a certeza disso.
Efémero sentiu-se abatido. Nem mesmo uma pónei maluca, que tinha sabia-se lá quantos anos dedicados a investigar obsessivamente aquele alicórnio, podia guiá-lo para mais próximo das suas origens.
–Não consigo sequer começar a imaginar o alcance do Primordial neste mundo. Ele é mais velho do que a própria história e raramente foi visto, mas à alguns anos atrás ele reapareceu. Ele simplesmente reapareceu. E tu apareceste com ele.
–Mas quem é ele? O que é que ele quer?
–Eu não faço ideia, mas para um pónei que existe desde o princípio dos tempos, o que quer que esteja a preparar só pode ser grandioso. E eu quero fazer parte disso.
'Cnoc, cnoc, cnoc...'. Algum pónei tinha acabado de bater à porta.
–Senhora, tem uma encomenda para si. - soou a voz de um dos paquetes do hotel.
–Espere um momento. Já vou. - disse Estelar, enquanto rapidamente punha uma das patas sobre o focinho de Efémero para o impedir de gritar.
Estelar voltou a colocar-lhe a mordaça e empurrou-o para debaixo da cama. Ela tinha que se certificar que o Efémero não podia ser visto nem ouvido. Quando foi abrir a porta viu um pónei de cristal de uniforme vermelho e com um pacote sobre a garupa. Estelar abocanhou-o e voltou a fechar a porta, sem dizer nem obrigada nem nada ao pobre do pónei. Pousou a encomenda no chão e olhou para ela.
A encomenda era uma simples caixa atada com um cordel. Colada num dos lados, uma etiqueta tinha a morada do hotel e o numero do quarto, mas não possuia nem selo nem remetente. Pensando que era algo de um dos seus colegas, Estelar não pensou duas vezes e abriu-a.
E foi o pandemónio total. A caixa estava cheia de grilos e percevejos, que fartos de se sentirem fechados saltaram de lá de dentro e espalharam-se pelo quarto. A primeira reacção de Estelar foi desatar aos gritos, mas no último momento dominou os seus impulsos e conteve-se. Com um pónei prisioneiro dentro do quarto a ultima coisa que ela queria era atrair atenções. Decidiu tentar enxotar a bicharada com um travesseiro, mas não adiantou muito. Então, suspeitando que algo de errado se passava foi falar com os seus companheiros. Saiu para o corredor do hotel como se nada de anormal se passasse, certificou-se de que tinha trancado a porta e dirigiu-se ao quarto de Raio Azul.
Efémero ficou debaixo da cama por uns instantes a contorcer-se, com os insectos a passearem por cima dele, quando ouviu uma voz familiar:
–Uhu... Efémero, onde estás tu?
–Muff, muff, muf... - ao ouvir a voz da Cerejinha, Efémero começou a tentar gritar e a bater no chão e na cama com o seu próprio corpo.
Não demorou muito até a sua amiga conseguir encontrá-lo. Tirou-o debaixo da cama e roeu-lhe as cordas. Liberto das suas amarras, Efémero levantou-se e pôs-se a sacudir os insectos do corpo.
–Cerejinha, que bom ver-te. - disse ele. - Onde estamos?
–Estamos num hotel no nordeste do Império de Cristal. Foi uma sorte eu ter-me apercebido a tempo de que foste raptado, caso contrário não fazia a mínima ideia de onde te procurar.
–Presumo que esta bicharada tenha sido ideia tua. Ainda tenho carrapatos a rabearem-me por sítios que nem sabia que tinha. Não arranjaste uma ideia menos maluca de me salvares?
–Ora muito obrigadinha. Se eu soubesse tinha-te deixado com aquela doida. - respondeu-lhe a companheira, fingindo-se ofendia. - Sabes o quanto custou apanhar centena e meia de insectos às escuras, só com a luz da Lua?
Efémero dirigiu-se à porta e tentou abri-la, mas infelizmente estava trancada. Ainda começou a pensar se conseguiria arrombá-la sem fazer muito barulho, mas Cerejinha interrompeu-o.
–Não nos convém sair pelo corredor. Arriscamo-nos a ser vistos por algum pónei desta seita maluca. - disse-lhe ela enquanto se dirigia à janela.
Pendurada do lado de fora baloiçava uma corda feita com lençóis atados uns aos outros. Cerejinha pôs a cabeça de fora e olhou para baixo. A corda descia quase até ao primeiro andar. Ela conseguiria saltar para a rua, mas o Efémero não. Cerejinha voltou para ao pé da cama e olhou para as cordas que até há uns instantes amarravam Efémero. Infelizmente não restava nenhum bocado suficientemente grande para dar um bom nó, por isso Cerejinha abocanhou a roupa da cama e arrastou-a até à janela.
–Vamos sair pela janela? - perguntou Efémero surpreso. Entre dois nós Cerejinha acenou afirmativamente. - Mas nós estamos no terceiro andar.
–Não é nada de especial. Eu desci desde o telhado até aqui. Ademais, não temos mais nenhum sítio por onde sair.
Acabado de atar a corda que tinha acabado de fazer com a que se encontrava pendurada lá fora, Cerejinha atirou-a pela janela. Ela viu satisfeita que quase chegava ao chão. Entrelaçando-a numa das patas, Cerejinha saltou para o lado de fora e foi descendo suavemente.
–Vá lá, É mais fácil do que parece. - disse ela para o Efémero. - Só tens que enrolar os lençóis à volta do teu corpo e das tuas patas. Flectindo os membros, ficas preso nos lençóis. Depois começas a descontraí-los até começares a deslizar. Se começares a descer muito depressa, só tens que voltar a dobrar as patas e páras. Ó, e é verdade... Aconteça o que acontecer, não olhes para baixo. - acrescentou ela enquanto começava a descer.
–Mas tu estás a olhar para baixo.
–Eu sou uma ninja treinada. Despacha-te.
Relutantemente, Efémero fez o que Cerejinha lhe tinha mandado. Se bem que estivesse cheio de medo, lá se pendurou nos lençóis e foi descendo aos soluços. Em boa altura o fez, pois Estelar, seguida por Raio Azul, não demorou muito a voltar para o quarto. Ela estava visivelmente irritada e descarregava a sua raiva sobre o pobre Raio Azul.
–Não quero saber se foi uma partida ou não. - dizia ela. - Avisa todos os póneis que estão aqui para... - Estelar parou de falar ao ver a sua cama toda escangalhada e a janela aberta.
Ao aproximar-se da cama, Raio Azul viu as cordas e a venda espalhadas e apercebeu-se quase no mesmo instante que Estelar o que tinha acontecido.
–O pónei fugiu. - declarou ele inutilmente. - Alguém deve tê-lo ajudado.
Estelar tinha-se aproximado da janela aberta. Não havia viva-alma na rua, somente a corda feita de lençóis entrelaçados balouçando ao vento trazia algum movimento à paisagem. Dominando a sua fúria, Estelar começou a puxar os lençóis para dentro do quarto antes que algum pónei os pudesse ver.
–A senhorita tem que sair daqui agora. Os guardas podem chegar a qualquer momento. - disse-lhe Raio Azul. - Felizmente a nossa partida para o Norte Gelado já está programada para amanhã.
–Duvido muito que ele alerte os guardas. Mas tens razão, será mais prudente sairmos daqui. - respondeu-lhe Estelar. Com uma dentada cortou a corda e fechou a janela. Ainda restava uma boa porção pendurada do lado de fora, mas naquele momento ela não tinha tempo para removê-la. - Aliás, vamos mudar-nos todos deste hotel imediatamente. Mas há uma mudança de planos. Amanhã não vamos partir directamente para norte.
–Desculpe? Acha prudente estarmos a adiar desnecessariamente a nossa estadia em Equéstria? Sabe, com toda a confusão que tem acontecido ultimamente...
–Não vamos desviarmo-nos muito. Só vamos pegar um passageiro antes de começar a nossa expedição. - disse Estelar sorrindo. - Vamos dar um saltinho a Poneivile.

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Cansada e deprimida, Violeta estava deitada na cama na esperança de adormecer. Depois do desaparecimento dos amigos à somente algumas horas atrás, (Se bem que lhe parecia ter ocorrido à um dia inteiro.) ela encontrava-se emocionalmente esgotada. Naquele momento um milhão de questões atormentavam-lhe o cérebro. O que teria acontecido aos seus amigos? Será que voltaria a vê-los? O que deveria fazer na manhã seguinte? Seria melhor revelar aos guardas a verdadeira razão da sua viagem? Deveria voltar para Poneivile e avisar os familiares de Efémero e Cerejinha? Ou seria melhor permanecer no Império de Cristal até ter alguma notícia deles?
A única conclusão a que a pobre da Violeta chegou foi de que se encontrava demasiado cansada para pensar. Com um esforço fechou os olhos e tentou adormecer pela décima vez naquela noite, e por uns momentos pareceu que a sonolência finalmente iria vencer as suas emoções.
'Poc'.
Perdida no seu desgosto e esgotamento, Violeta nem escutou o barulho vindo do lado de fora da sua janela.
'Poc'.
O som fez-lhe lembrar quando ela e Cerejinha eram potras. Cerejinha tinha a mania de a ir acordar a meio da noite pelos mais variados motivos. Punha-se sempre a atirar bolotas à janela do seu quarto no sótão da casa de seus pais.
'Poc'.
Cerejinha... Embalada pelas recordações de infância, Violeta começou a sonhar com a amiga.
'Poc'.
Durante um momento ela pareceu despertar, mas depressa a sua mente voltou ao estado onírico de onde tinha sido arrancada.
'Poc'.
Desta vez a consciência de Violeta não conseguiu ignorar o barulho. Esta abriu os olhos e tentou compreender se estava a sonhar ou não.
'Poc'.
Agora ela tinha a certeza de que aquela pancada era real. Virando-se na cama, Violeta pôs-se a mirar a janela, quando...
'Poc'.
Uma pedrinha tinha ido embater contra o vidro. Apesar de ainda não estar completamente desperta, Violeta levantou-se e foi espreitar pela janela. Para seu espanto, lá em baixo na rua, estavam quem ela menos esperava. Olhando mesmo para ela achavam-se Efémero e Cerejinha. Ele parecia estar com ar aborrecido, mas exceptuando isso, encontrava-se aparentemente bem. Cerejinha, por outro lado, pareceria estar quase alegre, não fôra o facto de estar a tentar ser discreta.
Tão surpresa ficou Violeta que começou a gritar. Se Cerejinha não tivesse levado a pata aos lábios num sinal de silêncio, Violeta teria acordado todo o hotel. Esta abriu a janela e ficou ali por uns instantes, sem articular palavra, a olhar os amigos antes de conseguir finalmente falar:
–Pela princesa Celéstia. Efémero, Cerejinha, vocês estão bem!
–Shiu... Não faças barulho. - disse-lhe Efémero. - Temos que voltar para Poneivile o mais rapidamente possível.
–Estão dois guardas na entrada. Sabes o que se passou? - perguntou-lhe a Cerejinha.
–Que queres dizer com 'o que se passou'? Vocês os dois desapareceram. - respondeu-lhe Violeta. - É claro que chamaram os guardas.
–Tu chamaste os guardas?
–Sim... Quer dizer... Não. Já não sei. Acho que não. Estava uma confusão enorme aqui. Alguém atacou um empregado.
–Então andam à nossa procura. Não vamos conseguir passar pela porta sem causar confusão. - continuou Cerejinha. - Violeta, vai buscar as nossas coisas. Passa-as aqui para baixo.
–O quê? Quer dizer, atirá-las pela janela? Estou no primeiro andar.
Cerejinha rebolou os olhos e resmungou algo sobre ter de ser sempre ela a fazer tudo. Com agilidade trepou para o arco da janela do rés-do-chão e daí foi apenas um saltinho para entrar no quarto da Violeta. Saiu para o corredor e passado um bocado voltou com as mochilas dela e de Efémero.
–Vê se as apanhas. - disse-lhe ela para o amigo.
Na rua o Efémero fez o que pôde para apanhar as bagagens que Cerejinha lhe lançou pela janela.
–Agora nós. - disse Cerejinha à Violeta.
–O quê? Queres que eu salte pela janela?
–Não podes sair pela porta da frente. Vão desconfiar e não nos podemos arriscar a chamar ainda mais as atenções.
–Mas... Estamos no primeiro andar!
–Anda, eu levo-te.
Sem dar tempo à Violeta de reagir, Cerejinha agarrou na amiga e saltou para o lado de fora da janela com ela sobre a garupa. A coitada da Violeta nem soube o que lhe aconteceu, limitou-se a fechar os olhos de tão cheia de medo que estava enquanto se agarrava fortemente ao pescoço da Cerejinha. Esta começou a descer lentamente, com algum esforço. Quando finalmente chegaram ao chão, Violeta abriu os olhos e virou-se para o Efémero. Olhou-o nos seus grandes olhos verdes por uns momentos, e então abraçou-o. Ela estava a tremer, terrivelmente, com as suas patas dianteiras à volta do pescoço de Efémero. Com tanta força ela o apertava que quase o magoava. Em parte ainda encontrava-se assustada por ter sido atirada dum primeiro andar pela Cerejinha, mas sobretudo porque ainda não tinha conseguido lidar com o desaparecimento do amigo. Agora que ele se encontrava ali, ao pé dela, as suas emoções tomaram conta dela e começou a descarregar nele.
–Nunca mais voltes a assustar-me assim. - disse-lhe ela nervosamente.
–Violeta...
–Seu idiota. Eu fartei-te de te dizer que era perigoso e insensato. E se te acontecia alguma coisa?
Ele não lhe conseguiu responder. Entre a libertação de adrenalina ao ter sido atacado e arrastado por meia cidade e o muito surreal diálogo com uma pónei bastante doida, Efémero não teve tempo para pensar nas muitas maneiras que aquela noite podia ter terminado mal. Agora, a sentir contra o seu próprio corpo o pavor que a Violeta estava a sentir, apercebeu-se do quanto a sua amiga tinha sofrido, ao passar a noite sem saber o que lhe tinha acontecido.
–Lamento muito. - disse ele, enquanto a abraçava.
Cerejinha tinha perdido a sua expressão descontraída. Os seus olhos quase se encheram de lágrimas perante a amargura de Violeta. Simplesmente pôs as patas à volta dos companheiros. Durante um momento, ficaram os três ali, num estranho estado de consternação, alumiados apenas pelo melancólico luar.


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