Os póneis bonzinhos vão para o Inferno escrita por Maurus adam


Capítulo 11
Livro 1 Capítulo 11 - Desfecho insípido




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Deixando para atrás das costas as suas duas companheiras, Efémero ignorava completamente o que se passava com elas. Encontrava-se demasiado longe para ouvir os seus pedidos de ajuda e naquela altura só pensava em encontrar o estranho raio que iluminava os céus. Galopando por entre arbustos e vestígios de edifícios, reparou que havia cada vez mais predominância destes últimos. Efémero estava a avançar para o meio dos restos do centro da antiga cidade que outrora ocupava aquele espaço.
Ele prosseguia muito mais rapidamente do que ele próprio achava prudente. Ele e as suas amigas já tinham sido vitimados várias vezes por qualquer que fosse o fenómeno que manipulava aquele território. A cautela avisava que qualquer coisa acabaria por o atacar, mas Efémero estava mais preocupado em fazer os possíveis para ter uma oportunidade de falar com o alicórnio. Por isso, insensatamente, Efémero galopava sozinho por território desconhecido, até que parou. Finalmente chegara à origem da luz.
O foco surgia de um bizarro objecto no fundo de uma concavidade no chão, demasiado quadrada para haver alguma hipótese de ser natural. Aproximando-se da beira daquele enorme buraco, ele pôde observar que era realmente uma construção artificial, provavelmente uma cave de uma antiga casa. Se bem que as paredes tivessem cobertas de diversos tipos de plantas trepadeiras, ainda se podia ver que eram feitas de tijolos e argamassa. Nem mesmo faltavam os vestígios de uma escada de pedra embutida num dos lados.
Foi por esses poucos restantes degraus que Efémero desceu até ao fundo do compartimento, pôde então observar melhor luminoso artefacto. Era pouco maior do que ele e tinha uma forma vagamente ovóide, apesar de ser muito tosco e imperfeito. Parecia ser feito de uma espécie de argamassa misturada com pedaços de materiais um tanto ou quanto transparentes e coloridos, como amalgamas de vidro de baixa qualidade. A origem da luz provinha não do interior do objecto em questão, mas emanava duma espécie de aura que o cercava. Efémero associou logo aquele brilho com a tão característica luminescência que emanava dos cornos nos unicórnios sempre que eles lançavam algum feitiço.
Enquanto o observava, Efémero pensava como haveria de lidar com o extraordinário artefacto. O seu intuito era destruí-lo, mas estava na dúvida se seria prudente ou seguro fazê-lo. Afinal de contas não saberia dizer para que é que aquele ovo serviria. Poderia muito bem piorar as coisas.
Recordando-se de tudo o que tinha acontecido a ele e às suas amigas desde de que puseram as patas em Inferno, Efémero apercebeu-se de que quanto mais tempo passava, mais todos eles corriam perigo. Se as aparências estivessem correctas, aquele objecto estava ligado a tudo o que de mau lhes tinha acontecido desde que chegaram àquele lugar. Sem querer demorar mais tempo, virou-lhe o traseiro e aplicou-lhe um valente coice.
Aquela bizarra construção tombou ruidosamente, mas excepto alguns fragmentos de barro que se soltaram, parecia não ter sofrido qualquer espécie de danos. Efémero tentou outra novamente. O novo coice não gerou resultados melhores, apenas fez o objecto rolar alguns metros pelo tapete de musgo que cobria o chão. Longe de desistir, Efémero continuou a insistir naquele procedimento, mas parecia que só serviu para empurrar o ovo até a um dos cantos daquele sítio. Pelo menos ali estaria seguro enquanto Efémero descarregava a sua agressão nele. É claro que aparentava não estar a fazer nada mais do que alguns estragos superficiais. Por isso não é de admirar que Efémero tenha ficado surpreendido quando ouviu um sonoro 'craque'. Virando-se, pôde contemplar a enorme racha que tinha conseguido fazer no artefacto e que tinha sido suficiente para o inutilizar. A luz que emitia tinha-se extinguido.
Ainda estava Efémero a olhar para o que tinha feito quando a terra começou a tremer de novo.

*******************************

—Óh, não. Agora não. - gemeu a Cerejinha ao aperceber-se de que tudo recomeçava a abanar.
Quando as duas éguas sentiram o terramoto, Violeta estava quase enterrada até ao pescoço. Apesar de todos os esforços da amiga, ela não tinha conseguido evitar afundar-se cada vez mais. Quanto à Cerejinha, essa receava que o novo temor de terra a fizesse largar Violeta e ela perdesse o único apoio que a impedia de ser completamente engolida pela terra. Espantosamente, aconteceu o contrário do temido. Escorregando para fora do buraco tão facilmente como um queque de manteiga entrava pela garganta abaixo, ela saltou subitamente, sendo a força com que Cerejinha a puxava foi o suficiente para arrancar Violeta do solo onde estava a ser tragada. Sem nenhuma delas estar à espera daquilo, ambas rebolaram pelo chão envolvidas uma na outra quando Violeta foi de encontro à Cerejinha.
Meio atordoada com o choque, Cerejinha gatinhou debaixo da amiga. Esta encontrava-se bastante assustada por quase ter sido devorada viva pela terra. Levantou-se devagar, tentando organizar os seus pensamentos, e pôs-se a sacudir toda a camada de terra que se tinha agarrado ao seu belo pêlo azul.
—Violeta, como é que saíste dali? - perguntou-lhe a Cerejinha. - O que é que se passou?
—Fui quase engolida viva por uma poça de lama, foi isso o que se passou. - Ainda abalada por causa do que tinha acontecido, Violeta interpretou erradamente a pergunta da amiga. - Por todos alicórnios, até parece que não estavas aqui.
—Não é isso. Eu quero saber porque é que houve outro terramoto. Estas coisas não me parecem naturais.
Violeta olhou com cara de poucos amigos para a sua companheira. Tinha quase morrido à frente da Cerejinha e ela estava mais interessada num fenómeno sísmico do que no seu bem-estar.
—Eu estou bem. Muito obrigadinha por perguntares. - disse ela sarcasticamente.
Cerejinha pareceu não reparar no comentário irónico da amiga. Estava mais interessada em perceber o que se tinha passado, olhando em volta e procurando nos céus os reflexos dos focos de luz que existiam naquela região. Com o meio-dia cada vez mais próximo, aquelas anomalias estavam a tornar-se difíceis de se avistar. Cerejinha teve dificuldades em conseguir se aperceber se a coluna de luz para onde o Efémero se tinha dirigido tinha mesmo desaparecido ou se não a conseguia distinguir da luz solar. Virou-se então para oeste. Se bem que a luminosidade dos restantes focos não fosse fácil de avistar, ainda dava para se aperceber dos dois clarões brancos que contrastavam ligeiramente com os reflexos dourados do Sol.
—Um, dois... Duas luzes. Falta uma luz. Deve ter sido o Efémero que a desligou. E depois houve outro terramoto e o que quer que te tivesse a puxar para debaixo da terra largou-te.
—Cerejinha, vamos mas é embora daqui. - disse-lhe a Violeta, preocupada. - Ou melhor, vamos procurar o Efémero e arrastámo-lo daqui para fora.
Cerejinha sabia que a amiga tinha razão. Ela própria já tinha admitido que era bastante arriscado permanecerem naquele lugar. Mas os últimos acontecimentos indicavam que Efémero também podia ter razão. O que quer que fossem as fontes de luz pareciam estar a provocar a maldição daquele sítio. Não tinham elas já escapado inexplicavelmente por duas vezes a bizarras armadilhas quando aconteceu um tremor de terra coincidente com um desaparecimento de uma das luzes?
Algo puxava a Cerejinha na direcção da insensatez. Durante toda a sua vida se tinha sentido poderosa e capaz. Os anos de treino deram-lhe habilidades que aos olhos de outros póneis pareciam mágicas. Porém, desde que pusera os cascos em Inferno que as suas capacidades lhe eram inúteis. Ela sentia-se bastante horrível com tudo aquilo. Já não se sentia a mesma pónei confiante e optimista que sempre tinha sido.
Com todas aquelas revelações tinha então surgido uma oportunidade para mudar o rumo dos acontecimentos. Mas seria a sabedoria e os instintos que a guiavam? Ou seria o seu ego ferido, procurando ocultar os seus sentimentos de impotência com uma falsa ilusão de controlo?
—Ainda podemos resolver isto. - disse ela para a Violeta. - Se seguirmos o alicórnio e descobrirmos o que ele anda a fazer podemos finalmente saber o que se passa com este sítio, e quem sabe se podemos quebrar a maldição.
—Espera, o quê?
Sem se preocupar com a amiga, Cerejinha desatou a correr no sentido em que tinha avistado o estranho ser mergulhar sobre a origem duma das fontes de luz. Pasmada, Violeta ficou a olhar para ela, vendo-a a afastar-se por entre as árvores.
—Ó, por tudo o que... - começou ela a dizer. - Não vamos sair vivos daqui, pois não? - murmurou então ela para consigo própria, antes de se decidir a seguir a companheira.
Galopando velozmente, Cerejinha rapidamente chegou a uma zona que possuía ainda menos árvores que o resto daquela região. Na realidade, encontrava-se uma área com vários metros quadrados que aparentava estar desprovida de qualquer tipo de construção. Nem mesmo o vestígio ocasional duma parede se conseguia avistar. Cerejinha tinha quase a certeza que era naquele sítio que tinha visto o alicórnio a descer sobre uma daquelas luzes. Com uma prudência exagerada, avançou pata-ante-pata naquela clareira e pôde então aperceber-se da razão por não existirem ali árvores. O solo estava quase todo pavimentado por paralelepípedos de pedra. A relva e as muitas ervas de várias espécies que cresciam por entre os paralelepípedos proliferavam e ocultavam da vista o solo revestido de granito, mas qualquer planta maior do que um pequeno arbusto era incapaz de criar raízes ali.
Apesar do aspecto um tanto ou quanto vazio, aquele lugar era a origem da fonte de luz onde tinha sido visto o alicórnio a dirigir-se da última vez que foi avistado. Cerejinha tinha toda a certeza que encontraria qualquer coisa que a esclarecesse sobre o que se estava a passar. Por isso, quando Violeta conseguiu apanhar a amiga, ela estava a andar de um lado para o outro, procurando qualquer evidência do que tinha acontecido ali.
—Por amor de Celéstia, o que é que andar a fazer? - perguntou-lhe a Violeta.
—Da última vez que vimos o alicórnio ele estava a mergulhar para aqui. De certeza que deve haver por aqui algum indício do que ele andou a fazer.
—Não há nada aqui. Vamos embora antes que outra coisa nos decida...
—Chiu. - interrompeu a Cerejinha. - Não estás a ouvir?
—A ouvir o quê?
Fazendo um sinal com a pata à Violeta para estar calada, Cerejinha pôs-se a escutar o melhor que pôde. Meio assustada, Violeta tentou perceber o que tinha alertado a companheira. Escutando atentamente, até ela se apercebeu do barulho. Era um 'tchangue tchangue tchangue' o que as duas póneis ouviram. Assemelhava-se a uma serpente a rastejar pelo meio de um monte de cascalho. Cerejinha começou a deslocar-se lentamente no sentido em que lhe parecia vir o ruído enquanto Violeta a observava, quieta e receosa. A erva alta ocultava quase tudo naquela zona, por isso Cerejinha só se apercebeu do que procurava quando estava quase a passar-lhe por cima.
—Encontrei-o. - disse ela, olhando para o chão. - Bem me parecia que devia estar por aqui.
A postura descontraída da amiga tranquilizou a Violeta, que estava mesmo à espera que qualquer coisa maldita e inominável surgisse do chão para oa devorar. Apressou-se a juntar-se à Cerejinha, pôde então ver o que ela tinha encontrado.
Era um grande buraco redondo com as paredes internas muradas com tijolos. As duas amigas não tiveram duvida nenhuma, eram os restos de um poço antigo. Porém, o mais interessante era o que se encontrava dentro dele. A alguns metros de profundidade o grande traseiro do misterioso ser podia ser visto a abanar a sua cauda vermelha. Aparentemente tinha ficado entalado ao tentar descer. Violeta e Cerejinha olharam-no pasmadas enquanto o alicórnio contorcia-se e enterrava-se lentamente pelo poço abaixo.
—Achas que está a tentar sair? - perguntou Violeta à companheira.
—Humm... Só há uma maneira de descobrir. - obteve ela como resposta.
Cerejinha tirou a sua mochila e meteu-lhe o focinho, abocanhando a corda adornada com um gancho que trazia sempre consigo. Para completo espanto da amiga, fincou uma das pontas do gancho entre as pedras da calçada e lançou a corda para dentro do poço.
—Minha doce e querida Celéstia. - Violeta nada fez para conter a sua expressão de completo espanto. - Não me digas que vais saltar aí para dentro.
—Ele parece estar preso. Vou ver se o posso ajudar.
—Mas aquela coisa está aí dentro. Ainda à pouco nos atacou. E tu queres soltá-lo? E se tentar matar-te?
—Tem calma. Se nos quisesse mesmo matar já o teria feito. - E entrelaçando a corda à volta do seu corpo, Cerejinha deixou-se cair pelo buraco.
Descendo pela corda, ela ouviu Violeta murmurar qualquer coisa como "E ela ainda me pede para ter calma!" mas não lhe ligou muito. Toda a sua atenção estava virada para a criatura que se encontrava por baixo dela. Não demorou muito até descer até ele e pousar as suas patas sobre os seus glúteos. Em resposta à invasão do seu espaço pessoal ele parou de se contorcer. Ele estava tenso, isso era fácil de se observar. Se bem que não pudesse vê-la, concentrava toda a sua atenção na pónei que se encontrava sobre o seu traseiro. Foi então naquela altura que Cerejinha conseguiu se aperceber do quanto ele era um gigante. O poço era definitivamente mais largo do que a cama dela, ela podia mover-se de um lado para o outro com facilidade. No entanto, o alicórnio mal conseguia caber nele. Os seus cascos traseiros estavam estendidos mesmo ao seu lado e ela podia facilmente ver que eram tão grandes como a sua cabeça.
Lutando para sair do seu estado de descrença, Cerejinha tentou espreitar para o fundo do poço. Não conseguiu ver quase nada, o grande ser bloqueava a quase totalidade da passagem, mas apercebeu-se de uma forte luz que radiava lá em baixo.
—O que é que estás a fazer? Sai já mas é daí. - Com uma cara aterrorizada, Violeta observava a amiga desde a superfície.
—Acho que Efémero têm razão. Ele está a tentar destruir as fontes das luzes. - respondeu-lhe Cerejinha. - Ele deve ter ficado preso ao tentar descer.
—E o que é que nós temos a haver com isso?
Cerejinha ignorou a companheira. O seu instinto indicava-lhe que deveria haver uma boa razão para aquele ser estar a tentar destruir as luzes. Até Efémero pensava assim. Não tinha ele dito qualquer coisa sobre as luzes estarem ligadas com as estranhas agressões de que tinham sido vítimas? Sem querer perder tempo, Cerejinha atirou a corda para o fundo do poço. "Se a minha mãe soubesse o que ando a fazer nos meus tempos livres, tinha um fanico." pensou ela enquanto se enfiava pelo meio do alicórnio, furando o seu caminho por entre o seu corpo, as suas patas e as suas asas. Ela possuía pouco espaço para se deslocar, mas nada a que não estivesse habituada. Pior era o cheiro que lhe entrava pelas narinas acima. Aquele ser tresandava a uma mistura de suor de urso com baba de cão, o que não era muito agradável, diga-se de passagem.
Não demorou muito a encontrar a saída daquele labirinto de pêlo e músculos. Apesar de tudo por que tinha passado, o mais surreal dos encontros ainda estava para vir. Mal a Cerejinha conseguiu atingir a parte dianteira daquele pónei e o seu focinho finalmente encontrou espaço livre para poder respirar convenientemente, sentiu-se a ser observada por uma curiosa presença. Virando a cabeça, deparou-se com uns enormes olhos pretos que a fitavam profundamente. A forte luz que provinha do fundo do poço alumiava bastante bem todo aquele espaço. Aquele grande pónei tinha a cara mesmo ao pé da dela, e apesar de não parecer manifestar qualquer emoção com a sua presença, a maneira como a observava deixava Cerejinha tão desconfortável que não conseguiu evitar estremecer com os arrepios que lhe percorreram pela espinha.
—Er... Bom dia, então. - Sem saber o que fazer, Cerejinha disse o primeiro disparate que lhe passou pela cabeça. - Espero que não te importes que eu me tenha feito convidada.
O ser continuou a olhá-la nos olhos, não demonstrando qualquer tipo de reacção.
—Então... o que é que estás aqui a fazer?
Ainda completamente apático.
—Não és muito falador, pois não?
E continuou sem lhe responder. Tentando abster-se do olhar ambíguo que o ser lhe depositava em cima, Cerejinha virou a sua atenção para o que se encontrava abaixo de si. Lá no fundo do poço, o enigmático objecto do qual provinha a luminescência descansava inerte.
—Estás a tentar chegar àquela coisa, não estás? - perguntou ela inutilmente à sua companhia. Este continuou sem lhe responder. - Enfim, nunca mandem um ultra poderoso demónio-alicórnio fazer o trabalho de uma pónei terrestre.
Resoluta em chegar ao fundo da questão (Tanto figurativa como literalmente.), Cerejinha enlaçou firmemente a corda à volta do seu corpo e das suas patas e desprendendo-se completamente da posição onde estava, começou a descer com ligeireza em direcção ao foco luminoso. Tinha ela já percorrido cerca de metade da distância que a separava do fundo do poço quando uma dor aguda lhe assaltou os sentidos. Olhando para cima, Cerejinha viu a pequena e ensanguentada lâmina de pedra que lhe tinha golpeado a pata esquerda traseira retroceder para dentro da parede de onde tinha surgido. Porém, não seria a única. Um dos tijolos próximos da sua cabeça manifestou uma afiada ponta de barro que lhe teria acertado no focinho caso Cerejinha não se tivesse desviado a tempo. Mas o seu tormento estava apenas a começar. Ao longo de todo o muro interior surgiram cada vez mais lâminas que pareciam ter vontade própria e um gosto especial por provar o sangue da pobre égua.
Temendo pela própria vida, Cerejinha começou a empurrar-se a si própria para longe do muro. Parecia estar a resultar, pelo menos temporariamente, pois assim mantinha-se afastada das armas que insistiam em tentar atacá-la. Infelizmente o mesmo não se poderia dizer da corda que a sustentava. O que quer que estivesse a provocar aquele fenómeno parecia ter inteligência suficiente para efectuar um ataque indirecto. Sentindo a corda vibrar, Cerejinha olhou para cima a tempo de ver algumas daquelas lâminas serrando-a. Antes que pudesse reagir, a corda rompeu-se e ela precipitou-se em queda livre pelo poço abaixo. Instintivamente, tentou agarrar-se à parede e com uma mistura de destreza e sorte conseguiu enfiar as patas num buraco.
Tendo aparentemente evitado a queda, Cerejinha pôde então voltar-se a preocupar com a bizarra vaga de lâminas de que estava a ser vitima, mas felizmente parecia que aquele estranho fenómeno perecia ter parado. Infelizmente existia uma razão para haver um buraco onde ela se agarrar. Aquele poço tinha sido construído à vários milénios e estava num terrível estado de conservação. O pedaço de muro onde ela estava sustenta não aguentou o peso da égua e cedeu quando a velha argamassa que sustinha os tijolos e as pedras se desfez em pó.
Estando de novo a cair, Cerejinha apercebeu-se de que a única hipótese que lhe restava era virar-se e tentar aterrar no fundo do poço de pé para amortizar o impacto. Mas antes que pudesse fazer alguma coisa, sentiu uma dor alucinante a atingir-lhe o crânio. Imediatamente de seguida foi envolvida pela completa escuridão.

************************************

A sua amiga tinha desaparecido de vista. Olhando para o fundo daquele buraco, Violeta só conseguia ver o traseiro do alicórnio conhecido como Primordial. Ele parecia ter ficado paralisado desde que a Cerejinha saltou para cima dele. De repente começou a mover-se novamente. Da mesma maneira em que tinha sido encontrado, contorcia-se freneticamente e parecia estar a descer cada vez mais por aquele poço abaixo.
—Violeta. - ouviu ela chamar.
Para seu contentamento, mal virou a cabeça viu o Efémero a galopar na sua direcção. Felizmente que enquanto procurava outra daquelas fontes de luz tinha avistado a companheira.
—Efémero. Graças a Celéstia que estás aqui.
—Não te tinha dito para saíres daqui? Onde está a Cerejinha?
—Ela está ali em baixo. - disse Violeta, apontando para o buraco. - E aquela coisa monstruosa está ali com ela.
Efémero olhou pelo poço abaixo. Se bem que não conseguia enxergar muito bem, conseguiu aperceber-se de que lá no fundo algo grande se movimentava.
—Ela está ali com o alicórnio? O que é que se passou?
—Ela quis ir à procura dele. Ele estava ali em baixo. Depois ela também saltou lá para dentro e depois desapareceu por ali abaixo.
Se bem que não se sentisse muito confiante, Efémero sabia que deveria descer ao poço para procurar a amiga. Ele lembrou-se do que tinha acontecido quando Cerejinha o foi salvar ao hotel no Império de Cristal e tiveram que descer por uma corda improvisada desde o segundo andar até à rua e pareceu-lhe que a situação se estava a repetir. Excepto que agora era ele a tentar salvá-la. E naquele momento estava a descer directamente para o perigo ao invés de fugir dele. E também teria de lidar com um ser alienígena super-poderoso e não uma seita de póneis malucos. Pelos vistos não tinha nada a haver com o seu rapto à uma semana atrás. De qualquer das formas, Efémero enrolou a corda da Cerejinha à sua volta e virando-se para a Violeta disse-lhe inutilmente: "Espera aqui." Esta nem pareceu reagir. Estava tão preocupada com a Cerejinha que ver o companheiro saltar para as profundezas da terra não lhe parecia tão perigoso quanto era na realidade se isso significasse trazer a sua amiga de volta.
Efémero tinha mesmo começado a descer quando a terra começou a tremer de novo. Ele saiu imediatamente do buraco fazia intenções de deixar o terramoto parar antes de tentar descer de novo. Infelizmente aquele terramoto parecia não querer parar. Não só ele se prolongou muito mais do que seus antecessores como demonstrou possuir muito mais força e poder que eles. Tanto Efémero como Violeta não se conseguiram manter em pé e caíram com a violência das vibrações. As ondas de choque propagavam-se com tal intensidade que os dois póneis teriam conseguido aperceber-se do solo a oscilar se não estivessem completamente apavorados com aquele excepcional fenómeno.
De repente uma coisa cor-de-rosa foi cuspida para fora do poço e caiu pesadamente no chão.
—Cerejinha! - exclamou nervosamente Violeta, ao aperceber-se da amiga.
Alertado pelo grito da companheira, Efémero virou-se para o corpo inconsciente da pobre égua e tentou-se pôr de novo em pé. Falhou miseravelmente. Aquele tremor-de-terra era simplesmente demasiado para qualquer pónei e ele voltou a cair ainda antes de se ter levantado completamente. De qualquer das formas não iria abandonar a amiga assim tão facilmente. Gatinhando o melhor que pôde, Efémero deslocou-se para ao pé da Cerejinha, seguido de Violeta. A coitada da pónei estava inconsciente, encharcada até aos ossos e possuía vários ferimentos, alguns dos quais tinham um aspecto mesmo horrível. Mas pelo menos ainda estava viva e a respirar, o que permitiu aos seus amigos suspirarem de alívio.
Sem poderem fazer mais nada, os dois póneis deixaram-se estar deitados ao pé da amiga, cada qual do seu lado, como se instintivamente estivessem a protegê-la de toda destruição que os cercava. À volta deles tudo estremecia e ribombava. A intensidade daquele último tremor-de-terra era simplesmente incalculável e parecia-lhes que nunca mais acabava.
Mas eventualmente acabou. Tudo sossegou tão depressa que mais parecia um sonho. Efémero pôde então levantar-se e olhar em volta. Todo o terreno estava irreconhecível. Pequenas fendas cobriam todo o solo daquela região. Os vestígios de civilização que tinham resistido aos séculos ficaram reduzidos a cascalho. Mesmo as poucas construções que ainda aparentavam estar um tanto ou quanto bem conservadas tinham-se transformado em entulho. Somente as árvores ofereceram alguma luta àquele terramoto. Tendo raízes profundas e sendo constituídas de madeira viva e resistente, as árvores foram as que melhor resistiram à devastação. Mesmo assim, muitas delas perderam aquela batalha e encontravam-se tombadas pelo chão. As restantes colunas de luz também tinham desaparecido. Efémero esperava que aquilo fosse um bom sinal, se bem que não saberia dizer se era sequer um sinal de todo.
Enquanto a Violeta tentava colocar a Cerejinha numa posição mais confortável, Efémero aproximou-se do orifício que ainda à pouco tentara descer. Constatou então que já não existia. O poço tinha simplesmente deixado de o ser. Estando demasiado velho e em mal estado, o terramoto tinha-o feito colapsar. A suas paredes estavam demasiado degradadas e foram incapazes de aguentar intactas com a violência daquele terramoto. Sem as paredes a manter a sua integridade, toda a terra à volta dele tinha deslizado para o seu interior e bloqueado-o completamente, deixando somente uma enorme cratera como testemunho da sua existência.
Sem meias medidas, Efémero saltou para dentro dessa cratera. O alicórnio estava algures subterrado por baixo dela, enterrado sob várias toneladas de rochas e terra. Sem sequer conseguir saber se ainda estaria morto ou vivo, Efémero começou a esgravatar, numa completamente impossível tentativa de conseguir perfurar uma dezena de metros de solo e libertar um pónei antes que pudesse sufocar. Enquanto ele escavava inutilmente, Violeta apercebeu-se que o amigo não estava ao pé dela e da Cerejinha. Porém, ouviu o barulho que ele fazia ao remexer com os cascos o entulho que obstruía o poço. Aproximando-se da borda da cratera, Violeta avistou o amigo lá em baixo.
—O que estás a fazer? - perguntou-lhe ela.
—Como assim o que estou a fazer? Aquela criatura está enterrada algures por aqui.
—E tu queres desenterrá-lo?
—Que queres que eu faça? Se não o tirarmos dali rapidamente vai acabar por morrer.
—Nenhum pónei sobrevive àquilo. Ele já está morto. A Cerejinha é que está a morrer. É com ela que temos que nos preocupar.
—Mas se ele morre então esta viagem não serviu para nada. Eu não posso ir-me embora sem...
—Em que é que estás a pensar? - interrompeu-o Violeta. - Depois de tudo o que aconteceu ainda queres continuar com esse disparate?
—Mas eu...
—Mas nada. Tudo o que existe aqui nos quer matar. Temos que levar a Cerejinha a um hospital antes que ela morra de vez.
Cerejinha... Depois de tudo por o que ela tinha passado tinha ficado realmente muito ferida e maltratada. Seria impossível para Efémero negar que precisava urgentemente de cuidados médicos.
—Não podemos. - disse ele, finalmente resignado a desistir da sua demanda. - Estamos muito longe da qualquer cidade e ainda temos que encher o balão antes de podermos partir. Vamos ter de lhe prestar os primeiros socorros antes de partirmos.
—Não quero saber o que fazemos, desde que o façamos depois de sairmos daqui.
Tão ocupados estavam os dois póneis naquela discussão que nem repararam que a companheira deles tinha recuperado a consciência e estava a tentar levantar-se. Cerejinha sentia-se horrível, todas as articulações do seu corpo estavam um tanto ou quanto emperradas e parecia que a sua cabeça ia explodir. O facto dos seus amigos estarem a falar aos berros só serviu para piorar a enxaqueca.
—Ugh... - gemeu ela. - O que é que aconteceu?
—Cerejinha! - gritaram os dois póneis quando mal ouviram a voz da amiga.
Os dois póneis correram imediatamente para ao pé da pobre égua.
—Não te levantes. - disse-lhe Efémero.
—Como é que estás? - perguntou-lhe a Violeta.
—Tenho frio e doí-me o corpo todo. - disse ela, enquanto apalpava um bocado de sangue coagulado mesmo ao lado da sua orelha esquerda. - De certeza que devo ter qualquer coisa partida.
Sabendo que não poderiam transportar a Cerejinha dali para fora sem mais nem menos, Efémero começou a improvisar uma maca com os muitos ramos caídos que se encontravam espalhados ao redor deles. Quanto à Violeta, tentava manter a companheira o melhor que podia. Queria arranjar um bocado de água para lhe dar e para poder limpar-lhe as feridas, mas não tinha nenhuma. Insensatamente tinha se esquecido de trazer a sua mochila quando deixou o acampamento. Efémero também não tinha trazido nada. Somente Cerejinha se lembrou de ir carregada com a sua imprescindível mochila preta. Infelizmente, ela tinha-a deixado mesmo ao pé do poço antes de se enfiar por ele abaixo. Quando o terramoto destruiu o poço, a mochila tinha sido engolida pelo desmoronamento de terra e encontrava-se subterrada para sempre.
Tentando aclarar as ideias, Cerejinha virou-se para a Violeta. Ela olhava à sua volta, tentando avistar alguma fonte de água que pudesse usar. Cerejinha puxou-a com uma pata para lhe chamar a atenção e perguntou-lhe:
—O que... O que é que aconteceu?
—Estás a perguntar-me a mim o que é que aconteceu? Como é que eu hei de saber? Deixei de te ver depois de te enfiares naquele buraco com aquela coisa. Depois ouve um terramoto e então saltaste cá para fora.
—Enfiei-me aonde com o quê?
—Qual é a última coisa de que te lembras? - perguntou-lhe a amiga.
Lembro-me que estava embrulhada numa data de plantas malucas. Depois apareceu um pónei enorme que começou a voar sobre nós.
—Isso aconteceu à mais de uma hora.
—Muito bem. - disse Efémero, pousando ao pé da Cerejinha uma espécie de emaranhado de ramos e trepadeiras que só vagamente se assemelhava a uma maca. - Vamos lá tirar-te daqui.
—O que é isso? - perguntou-lhe ela.
—É uma maca. - respondeu-lhe ele, e dirigindo-se à Violeta disse-lhe: - Pega por ela desse lado que eu pego desde.
—Nem penses que vou sair daqui deitada nessa coisa. - disse Cerejinha. - Posso muito bem andar sozinha.
—Estás maluca? - exclamou a Violeta. - Tu nem te consegues levantar.
—Consigo, sim senhora. - E com para provar o que dizia fêz de novo um esforço para se erguer. - Aaaa... ui. - gemeu ela.
—Ainda à pouco estavas a queixar-te que tinhas qualquer coisa partida. - observou a Violeta.
—Não é qualquer coisa, é só uma costela. Não é grave. Posso andar.
Com algum esforço, e entre alguns 'uis' e 'ais', Cerejinha conseguiu pôr-se de pé. É claro que ainda não se encontrava muito saudável e começou a cambalear ao tentar deslocar-se.
—Tem calma. - disse-lhe Efémero. - Apoia-te em mim.
O pónei encostou-se à amiga e passou o seu pescoço por baixo da sua pata esquerda. Violeta fez o mesmo do lado direito. Andando lentamente, o trio de companheiros deixou Inferno para trás e penetrou na floresta, regressando para o balão que os tinha trazido até ali. Olhando uma última vez para trás, Efémero suspirou abatido. Apesar de todo o esforço empreendido, voltava para casa sem as respostas que procurava. Toda aquela aventura tinha terminado deixando-o com uma amarga sensação de vazio.


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