Grand Finale escrita por Lethy


Capítulo 1
Único e final




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Domingo, 24 de julho de 2016

A um estranho,

O mundo é colorido em tons de cinza, e só você não vê. Eu não lhe culpo, no entanto. Quantas pessoas têm olhos o suficiente para ver o que tantas gerações lutaram anos para esconder? A verdade é que a vida fica pouco divertida depois que perde as cores falsas. Está duvidando de mim? Pois não devia.

O arco-íris mundano começou a sumir para mim faz alguns anos, talvez uns cinco. Eu estava no ensino médio e conheci um cara. Ele era o máximo. O tipo de cara que faz qualquer garota como eu se apaixonar. Não era popular, não era bonito e muito menos sociável, mas era sarcástico e taciturno. Nenhum outro cara poderia competir com isso.

A essa altura você pensa: E o que eu tenho a ver com isso?

Não muita coisa, eu acho; mas quase ninguém tem muita coisa a ver com a vida alheia, e mesmo assim você quer saber o que aconteceu com a sua vizinha quando ela some por mais de um dia, quando ela engorda alguns quilos na barriga ou quando ela chega tarde, não é mesmo? Então apenas continue aí. Prometo que vou chegar a algum lugar.

Bom, voltando ao cara. Ele era exatamente o tipo de cara que te arrasta com maestria até o fundo do poço. Tão fundo que, se você descer mais um pouco, desaba no colo do capeta. Eu não ligava, contudo. Estava tão absorta por aqueles olhos cheios de dor que, se me perguntassem quem eu era, não saberia dizer. Talvez uma extensão dele. Talvez nada.

Eu era nova e estúpida, acho que isso resume bem o rumo que a história tomou. Pessoas apaixonadas têm tendências a enxergar beleza no que é apenas... lixo. Alguns meses depois de me conhecer, falar que eu era linda e que me amava, ele me trocou pela minha melhor amiga. É, aquela mesma que jurou nunca fazer isso comigo.

Não confie em seres humanos. São voláteis como álcool e intoxicam como ele.

Bem, foi ali que as primeiras cores sumiram. Na época eu mal percebi, confesso. Era nova demais para entender que, da mesma forma que uma obra de arte, quando você macula a vida, ela jamais volta a ser o que era. Como uma tela que já vem concluída e assinada, obviamente não por você. Por Deus, tão metafísico quanto este conceito pode ser. Pela ciência, com tantas lacunas quanto for permitido. Pelo acaso, seja lá o que isso signifique.

Não estou aqui para discutir credos.

Acho que, lá pelas tantas, o que fez a tela ficar completamente acinzentada foi perceber que eu não dava a mínima para o motivo de estar viva. “Por que estamos todos aqui?”, um professor de biologia perguntou. Eu ignorei. Deitei no tampo da mesa e dormi como se aquela madeira não dividisse meu crânio em mil pedaços, tamanha a dor.

“Por que estamos todos aqui?”

“Por que isso importa?”

Depois desse dia, comecei a perceber que todo mundo procura um motivo para estar vivo. A inteligência, a religião, o dinheiro, a fama, o sucesso. Sexo. Qualquer coisa para não simplesmente... estar vivo.

“Olá, eu vivo por viver. Tudo bem?”

Era triste e masoquista assistir de longe todas aquelas pessoas fazendo um esforço tremendo para fingir que era divertido existir. Para fingir que não tinham vontade de morrer. Não para sempre, como eu, mas por alguns minutos.

Era patético e cansativo também.

A verdade é que a vida é um tsunami de tristeza com intervalos em que você é feliz. Entretanto, por mais que pareça injusto, é como tem que ser para que haja equilíbrio. Um homem é assassinado quando sai do trabalho para que exista um assassino. O bom morre para que exista o mau.

O que seria o bem sem o seu contrário? Basta pensar na religião cristã, com seu Deus e seu diabo. Será que o demônio seria tão ruim se não fosse visto pelos olhos de Deus?

Entender que tudo prima pelo equilíbrio não fez as cores voltarem, no entanto. Fez mais algumas irem embora. Todas aquelas esperanças infantis de que o bem vencesse o mal se tornaram nulas. Não havia vencedores. Um precisava do outro.

Dizem que me tornei fria desde então, mas ninguém se preocupou em saber o motivo. Bom, só uma pessoa.

Ele.

Em meio a todos aqueles tons cinzentos, a todo o branco e a todo o preto misturados, ele apareceu, com sua cara deslavada de santo corrompido. Sei que você deve estar incrédulo de que, da mesma forma que um cara me destruiu, outro me reconstruiu. No entanto, fique tranquilo. Como eu disse, uma vez que a tela perca seu tom original, ela jamais volta a ser o que era. Não existem remédios para isso. Nem pessoas, nem comprimidos, nem psicólogos.

Acredite, eu tentei os três. Várias vezes.

Ele, no entanto, foi uma folga do meu inferno. Quando eu derramei uma chuva de problemas, ele estendeu uma jaqueta estranha sobre a nossa cabeça e disse que íamos resolver. Foi meu amigo e também meu namorado. Quando ele disse que me amava, eu fiquei esperando que partisse. Ele permaneceu, no entanto.

Eu sei que você está lendo, então muito obrigada por isso. Por me emprestar suas cores.

Infelizmente, a minha tela já está destruída demais. De manhã, quando saio na rua e olho para as pessoas, sinto vontade de voltar para o quarto e dormir. Não por mais cinco minutos, igual a quando eu era pequena, mas para sempre. Não quero ter que encarar a maldade de novo. Não quero ter de aceitar o fato de que as pessoas não mudam.

Não que isso seja pré-determinado, é claro. Apenas não existem motivos para mudar. A vida é muito mais simples quando você é cruel. Em plano terreno, a ausência de empatia se tornou tão vantajosa que eu mesma não sei por que eu ainda insisto em me importar. Talvez só devesse sair de casa e ser cruel. Pisar no chão e nas pessoas como se fossem equivalentes.

Eu não consigo, no entanto. E é por isso que, hoje de tarde, não saí de casa. Sentei nessa cadeira e comecei uma carta, que pretendo ser a última. Como todo grand finale, espero que ela seja honesta e tão nua quanto a minha alma foi durante todos esses vinte anos.

“Tão nova e já desistindo. Que horror!”

Ah, as pessoas... tão dispostas a julgar. Colocar-se no lugar do outro, contudo, jamais! Quem ia querer abrir mão de suas cores, não é?

Tudo bem, eu não entendo, mas aceito. Cada um com sua tela. Eu apenas escolhi apagar a minha.

Sem amor, mas honestamente,

A.


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