Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 20
Daniel


Notas iniciais do capítulo

Jill Valentine.



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A viagem para Sampa tinha sido incrível. Falei com jogadores dos maiores times, só mitos do futebol. A própria Camila, a mais famosa da internet, pediu para Coutinho vir tirar uma foto comigo. Ele. Sabia. Meu. Nome. Às vezes, eu me perguntava se era real.

— Boa sorte, Daniel. Foi um prazer conhecê-lo. Espero te encontrar por aí — Coutinho falou isso, deu um tapinha em minhas costas e saiu. Ele era um cara muito ocupado e ainda tinha muitas entrevistas para dar.

— Foi uma honra — falei.

— Soube que você veio com aquela Youtuber, ElisaBits — um cara desconhecido comentou quando Coutinho se afastou. Acho que era empresário de alguns jogadores famosos. 

— Isso mesmo — confirmei.

— Ela está te bancando mesmo, ein, playboy — era Pedro Lira, que sempre estava nas listas dos melhores centroavantes do país. Tinha um sorriso meio repulsivo, mas eu não poderia contrariar um grande nome do futebol como ele no início da minha carreira.

— Bem... Ela me trouxe aqui. Sabe como é... Elisa gosta de futebol e me acompanhava nos treinos — expliquei.

— Hum... Sei bem o que vocês treinaram juntos — Lira tinha um hálito bem estranho e soava cada vez mais cafajeste.

Dei de ombros e sorri meio sem graça. Não era bem uma mentira, afinal. Quando achei que o inacreditável já tinha acontecido, uma garota maravilhosa chamada Mary veio me perguntar quem eu era.

— Meu nome é Daniel. Sou jogador de futebol amador. E você?

Ela deu uma risada como se eu fosse muito inocente por perguntar isso, como se fosse minhá obrigação saber quem ela era. Deve ser coisa de sub-celebridade. 

— É um prazer — ela se aproximou mais que o necessário para falar.

Mary tinha um cheiro cítrico e uma voz meio rouca que me fez sair de mim, ainda mais depois de tanta bebida. Olhei em volta para me certificar de que Elisa estava longe e puxei aquela garota para perto.

Poucos minutos depois, Mary tirou um envelopinho com comprimidos cor de rosa do sutiã. Ela levou um comprimido até sua boca e depois colocou na minha com um beijo. Eu nem tinha certeza o que era aquilo, mas acho que se dissolveu em algum momento enquanto nos beijávamos. Tudo ficou mais intenso depois desse beijo. O toque ficou mais sensível. Os cheiros ficaram mais fortes. As piadas ficaram mais engraçadas. Qualquer luz parecia mais interessante do que o normal.

— O que foi que você me deu? — perguntei.

— Só aproveita — ela respondeu e voltou a me beijar.

Mary me puxou pelo braço para uma salinha privada que parecia um camarim, abriu minha camiseta, desabotoou minha calça e terminou o que havíamos começado. Foi bom, não posso negar, mas quando acabou eu senti algum arrependimento. Olhei no relógio e já eram cinco da manhã, sinal de que precisava voltar para o hotel em que estava hospedado. 

— Preciso ir agora. Depois eu te sigo e nos falamos — Mary piscou para mim enquanto arrumava seu vestido e depois saiu em direção ao salão principal.

Por sorte, Lili ficou ocupada com suas coisas do trabalho e só voltamos a nos ver perto do vôo de volta. Nunca mais falei com Mary. E, falando sério, a sensação daquela droga não era nada perto de viajar de volta para casa com Elisa.

 

***

Até hoje não sei como um simples vídeo tomou aquela proporção. De uma hora para outra todas as minhas redes sociais ficaram lotadas de desconhecidos perguntando coisas pessoais.

 

#Elisel #casal #shippo

Como vocês se conheceram?

Qual a sua cor preferida?

Qual o seu signo? Espero que combine com Aquário.

 

Torci para que Elisa ouvisse mais seus fãs. Não imaginei que eu fosse ter tanta visibilidade. Calculo que ganhei uns trinta mil seguidores depois do vídeo. 

Infelizmente, quando achei que tudo daria certo entre Lili e eu, ela se afastou. Toda vez que eu mandava uma mensagem, recebia um "estou ocupada" como resposta. As frases dela foram ficando cada vez mais curtas. Eu estava dando o espaço que ela queria, mas aquilo estava me deixando louco. Não era como se Elisa estivesse com raiva de mim, mas é certo que algo deveria ter acontecido. Talvez um novo cara na vida dela, foi o que temi. 

Como não percebi antes que deveria mantê-la por perto? Provavelmente era só minha burrice, quando a ignorei depois da vergonha que passei com meus pais na minha casa. Talvez a explicação fosse minha falta de atenção na festa da CamiVlogs

 

Daniel (12:19) - Não sei se já falei, mas adorei o seu cabelo novo.

Elisa (14:37) - Obrigada

 

Vi um post na internet comentando sobre o cabelo dela e resolvi elogiar. Fazia tempo que não tínhamos conversas longas como antes. Costumávamos falar sobre tudo, desde futebol até nossos restaurantes preferidos escondidos pela cidade. Ela adorava comida japonesa quase como eu a adorava. Para ser sincero, não lembro quando foi que me senti tão à vontade com alguém. E, de quebra, Tales, um de seus pais, eram um dos poucos adultos em quem eu conseguia confiar. Ele era torcedor do meu time, então acompanhava o campeonato melhor  do que eu. Umas três vezes por mês convidava amigos para assistir jogos em sua casa e eu era sempre chamado. Nem escondia o fato de que torcia para que Elisa me aceitasse.

Teve uma vez que me senti meio mal, não havia ninguém em casa e Tales se ofereceu para me levar ao hospital. Devido ao sucesso de Elisa, ele passou a trabalhar para ela e tinha horários de trabalho mais flexíveis. Bárbara, sua namorada, estava com ele nesse dia.

— Aqui está sua receita. Não se esqueça de se hidratar muito. Volte aqui se houver um dos sinais de piora que falei — o médico era um senhor com os cabelos totalmente brancos. Os óculos dele estavam quase caindo do rosto. Parecia ser uma boa pessoa.

Como continuei meio fraco e com tontura, Tales pediu para Bárbara aguardar um pouco no carro para me guiar até um local onde eu poderia descansar. Para o meu azar, meu pai já havia chegado em casa.

— Quem é este, Daniel? — meu pai conseguia se irritar com qualquer coisa que eu fazia.

— Esse é o Tales. É pai de uma amiga do colégio. Não estou me sentindo muito bem, então ele se ofereceu para me levar ao hospital.

Tales me ajudou a caminhar até uma poltrona e cumprimentou meu pai com um aperto de mão.

— Daniel não precisa de Babá, cara. É só uma gripezinha — foi o que ele disse para voltar a prestar atenção no seu jornal. — Isso é o que dá ficar indo para festa enquanto deveria estar treinando. Bunda mole!

A festa em São Paulo não me custou quase nada e tinha sido há quase um mês, mas claro que meu pai não tinha esquecido. Nem o meu estado deplorável o fazia ser mais agradável.

— Não foi nada... Preciso ir, minha namorada me espera no carro. Se cuida, brother — Tales respondeu, pediu licença e se retirou. Parecia um pouco consternado, efeito comum que meu pai causava nas pessoas. 

Agradeci e me despedi. Fechei os olhos e descansei a cabeça no encosto do sofá.

— Esse cara foi pai aos doze anos? Deve ser um irresponsável como você — foi só Tales sair para meu pai abrir a boca.

Meu pai sempre se superava. 

 

***

Daniel (09:15) - Adorei o vídeo.

Elisa (17:38) - Obrigada.

Daniel (17:44) - A propósito, muito legal sua atitude de promover a mãe do Felipe.

 

Não obtive mais nenhuma resposta. Tales também não falava mais nada há semanas. Não sei por que aquela sensação de solidão tomou conta de mim, mas era isso mesmo o que senti. Essa sensação se somou às brigas constantes em casa e me deixou bem para baixo. Pelo menos meus brothers do colégio ainda continuavam do meu lado e algumas garotas ainda mandavam mensagens perguntando por mim. Só que eu não queria qualquer uma.

Quando eu ia para o colégio ou para os treinos era tranquilo. Minha cabeça focava em outra coisa e eu esquecia minhas preocupações. Só que quando eu chegava em casa não conseguia ficar quieto. Mandei mensagens para várias pessoas para não me sentir só. Ficava nas redes sociais respondendo os comentários de desconhecidos para passar o tempo. Postei uma foto com Elisa, que tiramos em São Paulo, para animar um pouco minhas redes sociais. 

 

Daniel (22:12) - Mano, me conta as novidades. Faz tempo que não fazemos vídeochamada.

Victor (22:15) - Poxa, brother, não vai dar. Aqui é muito tarde. Marcamos um horário depois.

 

Victor sempre foi diferente de mim. Minha mãe conta que ele aprendeu a ler muito cedo por querer ler gibis. Não sei como, mas ele era uma das poucas pessoas se davam muito bem com meu pai. Sempre me falava que eu tinha que relevar as grosserias, pois a vida na empresa era muito estressante. Só consegui ter pena de meu pai quando vi minha mãe se agarrando com o sócio mais novo do meu pai. Fui à empresa depois das aulas para pegar carona com ela, quando eu tinha largado mais cedo. Claro que ela não me esperava, mas consegui passar despercebido.

Foi muito triste ver uma das pessoas que eu mais admiro me decepcionando daquela maneira. Ninguém merecia ser traído assim, nem mesmo meu pai. Só que eu não queria me intrometer e destruir nossa família. Guardei aquilo para mim e não contei para ninguém.

 

Victor (09:12) - Estou com tempo livre agora. Quer conversar?

Daniel (09:15) -  Estou no colégio. Daqui a pouco te ligo durante o intervalo. Espera aí uns dez minutos.

Victor (09:17) - Certo.

 

Meu irmão era incrível, não tem como negar. Quando ele prometia uma coisa, ele cumpria. Sempre arrumava um tempo na sua agenda para conversar com a família, mesmo podendo fazer mil coisas mais divertidas na Irlanda. Não sei se eu faria o mesmo. Meu pai não o dava folga e quase toda semana ficava horas no telefone conversando sobre admnistração de empresas e coisas novas que Victor aprendia nas aulas.

 

Victor está chamando.

 

E aí, irmão? — a chamada estava um pouco instável, mas consegui vê-lo e ouvi-lo pelo celular. Fiquei um pouco afastado da lanchonete para que ninguém me perturbasse.

Tudo continua igual por aqui. A cidade continua na mesma merda. Não voltaria se eu fosse você.

Vai ser estranho quando eu voltar. Mas e você? O que anda aprontando? E o campeonato?

Estamos em segundo, mas ainda temos tempo de nos recuperar.

Acho bom! — ele brincou. — E o que aconteceu com o seu perfil? Só percebi ontem que você tem fãs.

Ah... É por causa da Elisa, amiga minha. Não sei se você a conhece. Agora ela é famosa na internet

Aquela da foto?

Fiz que sim com a cabeça.

É bem bonita. Estão juntos? — não entendi o interesse.

Não. Não... Ainda.

— Você continua o mesmo! — Victor debochou.

Ele deu uma risada alta e ficou me olhando com aquela expressão meio paternal. Olhei ao redor e procurei por Elisa, encontrando-a conversando com Tainá. Resolvi convidá-la para conhecer meu irmão.

Elisa! Vem cá! — gritei.

Ela deu um sorriso envergonhado e apontou para si mesma como que perguntando se tinha ouvido direito. 

Sim, Elisa. É o meu irmão — apontei para o celular. — Venha conhecê-lo. Ele está esperando.

Elisa falou poucas palavras para Tainá e caminhou na minha direção. Percebi que sua amiga ficou com uma cara feia quando foi deixada sozinha com Beatriz e Felipe. Meu irmão ouvia tudo do celular.

Oi? — ela falou diretamente com ele.

Olá, Elisa. Meu irmão falou muito bem de você.

Ele também me falou muito de você. Como está aí na Irlanda?

Cada vez mais frio, mas é bem legal.

Imagino. Deve ser um sonho — acho que ela o reconheceu nesse momento e ficou com uma expressão de quem está tentando se lembrar de algo. — Victor, por acaso  você estudava aqui no colégio?

Sim — respondi por ele, tentando me encaixar na conversa. — Três anos à nossa frente.

Acho que me lembro de você — ela comentou. — Só não sei de onde.

Engraçado. Também tive essa mesma impressão de você. Parece que já te conheço — Victor ficou um pouco pensativo. — Será que foi das aulas de informática? Com o professor Magno?

Meu colégio oferecia aulas extra-curriculares à tarde para quem se interessasse, mas como não eram obrigatórias, só os nerds assistiam essas aulas.

Deve ser isso! Eu estava no nono ano e você deveria estar no terceirão — ela se animou.

Exato! Daniel me contou que você está bombando na internet. Fico feliz que aquelas aulas serviram para um de nós! 

Ajudaram  sim — ela foi modesta como sempre. — Lembra de quando o professor estava ensinando a como arquivar documentos e flagrou aquele garoto vendo pornografia durante a aula?

Esse comentário fez os dois darem gargalhadas. Parecia que eles eram amigos há anos. De alguma forma, aquilo me incomodou um pouco.

Que coincidência — tentei entrar na conversa.

É que o Colégio Milano não é tão grande, né? Acaba que todo muito já se esbarrou por aí uma vez na vida — ela explicou.

E me conta... O que você faz na internet? — Victor parecia interessado e eu fiquei cada vez mais incomodado.

Tenho um canal de vídeos. Faço desafios, tags, comento séries, filmes... Mas minha especialidade são os jogos.

— Então vou me inscrever no seu canal! Acabei de ir para uma Comic Con em Londres, acho que você curtiria. O evento foi incrível! Vários atores de filmes de super-heróis estavam lá! 

Não acredito! — ela ficou boquiaberta. — Não me mate de inveja! Um dia ainda irei para Londres.

Daria para você fazer cosplay da Jill Valentine do Resident Evil. Ela tinha um cabelo parecido com o seu antigamente. Conhece?

Notei que Lili ficou muito feliz ao escutá-lo dizer isso. Parecia que tinha sido um grande elogio.

Claro! É uma das minhas personagens favoritas do Resident Evil. Principalmente nos jogos mais antigos!

Quem é Jill? — falei tão baixo que acho que ninguém escutou.

Achei você parecida com ela — Victor continuou.

Elisa não tirava o sorriso do rosto. Foi irritante. Por sorte, recebi uma mensagem da operadora avisando que meu pacote de dados estava se esgotando.

Acho que teremos que terminar a conversa depois — avisei.

Não tem problema. Deixarei os dois irmãos conversando. Tchau, Victor! Até mais! 

Foi um prazer, Elisa! Até mais! Podemos conversar um pouco mais outra hora. Tenho uns jogos que acabaram de lançar aqui, acho que você vai gostar — ele falou.

Sim, seria ótimo. Depois Daniel me passa seu contato!

Ela voltou para onde estava e Tainá continuou com cara de poucos amigos. Era óbvio que suas amigas não gostavam de mim, minha fama não é das melhores. Victor continuou falando algumas coisas no telefone, mas eu perdi minha concentração olhando para Lili.

Ela é muito legal.

Sei disso. A internet está acabando. Mais tarde nos falamos.

 

Você encerrou a videochamada.

 

Não consegui tirar aquela conversa da cabeça. Parecia que eles tinham tudo em comum. Era como se eu estivesse atrapalhando os dois. Nunca daria o contato de Victor para Elisa.

 

***

Não conversei mais com Lili depois do dia em que ela falou com meu irmão. Não queria dar a chance para que eles se aproximassem. Planejei dar um tempo nas mensagens até que esquecessem aquele dia.

 

Daniel (17:22) - Não está mais acompanhando o campeonato?

Tales (17:25) - Sabe como é, cara... Estou cada vez mais ocupado ajudando a Lili. Neste exato momento estou comprando papeis de parede. Um saco!

Daniel (17:28) - Imagino!

 

As redes sociais não me entretiam mais. Aos poucos, as pessoas foram se esquecendo de comentar nos meus posts. O número de seguidores parou de crescer. As curtidas foram diminuindo. Só os treinos conseguiam me deixar mais tranquilo.

Tentei falar só o necessário com Elisa no colégio. Às vezes, eu falava com ela quando as garotas mais novas iam pedir fotos para postar na internet. As coisas não estavam como eu queria, mas não estavam tão ruins.

 

***

Acho que eu estava conversando com Flávio sobre não aguentar mais ter que estudar química quando vi Laysa indo em direção a Elisa. Meu coração acelerou nessa hora. Tudo estaria terminado caso Laysa falasse mais que o necessário.

Vi que as duas ficaram tranquilas durante toda a conversa. Laysa mostrou seu celular para Elisa ver alguma coisa e isso me deu uma raiva quase incontrolável. Tive a impressão de que Lili ficou meio triste quando viu o que tinha naquele celular. Tentei recordar se havia escrito algo que me comprometesse. Laysa deveria estar com raiva por ter sido ignorada, mas ela não tinha o direito de se meter em minha vida só porque havíamos ficado por um tempo. A única coisa que ela deveria fazer era aceitar que tinha acabado. 

Esperei uns dois minutos depois que Laysa se retirou de perto de Elisa e fui até ela. Por sorte, ela estava sozinha olhando para o celular.

— O que aquela garota te falou?

— Nada — Lili não me convenceu.

— O que quer que ela tenha te falado, não acredite. Ela é louca. Vivia correndo atrás de mim, mas nunca quis nada com ela. Acho que é por isso que ela me odeia — menti. — Juro pela minha família que nunca tive nada com ela. Laysa é uma louca obcecada por mim. Deve estar com inveja de você. Não caia nessa, Lili — minha família não estava valendo muito mesmo.

— Relaxa. Ela só veio elogiar um vídeo meu. Por que isso tudo agora?

A expressão de desprezo que Elisa tentava esconder, sem sucesso, me deixou inquieto. Talvez Laysa só tivesse ido falar de um vídeo mesmo e era eu quem estava fazendo papel de idiota. E o pior, lembrei que o feminismo de Elisa não aprovava o fato de eu ter chamado Laysa de louca.

— Está tudo bem — pelo menos ela estava muito tranquila. — E sua vida amorosa não é da minha conta.

Tentei esboçar alguma reação, mas tudo que consegui foi um péssimo meio sorriso. Aquilo acabou comigo. Era o que eu menos queria escutar. Preferia que ela tivesse brigado comigo. E o pior é que antes era tudo o que eu queria ouvir das garotas com quem eu ficava. Adorava quando elas não se apegavam.

Evitei falar com Elisa um pouco mais depois desse episódio. Pelo menos isso tirou um pouco a atenção do meu irmão. Não queria que os dois se aproximassem.

 

***

Vez ou outra postei alguma foto, mas não recebi mais que vinte comentários. Já estava me acostumando com a enxurrada de perguntas pessoais. Foi como se as pessoas se preocupassem comigo de verdade. Quando eu postava que estava cansado depois do treino, alguém sempre desejava melhoras. Pelo menos algumas dezenas de pessoas elogiavam meus dribles depois de um jogo. De alguma forma, era reconfortante.

As coisas não mudaram muito em casa. Meus pais se odiavam. Acho que ainda não tinham se separado por causa da empresa. Eles precisavam um do outro. Talvez meu pai me odiasse porque eu o lembrava diariamente que eles tinham um vínculo eterno. Teoria que não fazia sentido quando eu percebia como ele amava conversar com Victor. Somando as horas no celular, imagino que meu irmão conversava mais com meu pai, estando na Irlanda, que eu. Não que eu achasse isso ruim, é claro.

— Vou tirar férias semana que vem. Visitarei seu irmão — ele nos avisou durante o jantar, de uma hora para outra.

— Que ótimo! Arrumarei nossas malas — minha mãe ficou animadíssima.

— Não consegue me ouvir? Falei que vou tirar férias. Primeira pessoa do singular.

— E por que não posso ir junto? — ela questionou sem ter muita esperança na resposta.

— Você já comprou aquela bolsa importada este mês, não foi? Quatro mil reais, pelo que vi na fatura. Se quer quebrar a empresa de vez, me avise antes.

Alguns anos atrás minha mãe faria um escândalo. Diria que sem ela a empresa seria um escritoriozinho de fundo de quintal. Gritaria tanto que meu pai acabaria levando-a para evitar confrontos, mesmo tendo que passar a viagem fazendo compras com ela. Mas minha mãe tinha um novo motivo para ficar.

— Entendo, meu bem. Só quero um novo xampu, o meu está acabando.

— Pensarei no seu caso.

A semana que se seguiu foi insuportável. Meu pai não parava de falar em cada ponto turístico irlandês que havia pesquisado. Contei para ele que um olheiro havia passado no clube e que eu tinha jogado bem no dia, mas ele disse "Parabéns!" e começou a falar sobre um tal de futebol gaélico. Agradeci aos céus quando ele passou pela porta com uma passagem de volta para dali a vinte dias. Se ele quisesse ficar por lá, melhor ainda.

 

***

Os empregados tinham ido embora e eu estava sozinho em casa. Mamãe me falou que visitaria meus avós, aproveitando que meu pai estava fora. Não a questionei. Tive vontade de visitar meus avós de surpresa para checar, mas achei melhor não. 

Peguei o controle da televisão e passei canal por canal, até descobrir que nenhum deles me entretia. Assisti alguns vídeos na internet e percebi que Elisa não tinha postado nada novo. Tentei dormir, mas não consegui. Algo estava dominando meus pensamentos.

 

Daniel (15:13) - Cara, preciso relaxar

Flávio (15:15) - Putz. Estressado, né?

Daniel (15:16) - Está foda. Queria algo para me ajudar a relaxar, mas teria que ser na baixa...

Flávio (15:19)  - Conheço um cara.

Flávio (15:22) - Ele entrega em qualquer lugar. É de qualidade, mas é caro.

Daniel (15:27) - Não tem problema.

 

Pedi para o homem entregar num supermercado perto da minha casa. Fui e voltei andando. Pelo jeito, ele não me reconheceu. A sacolinha com seis balinhas coloridas custou trezentos reais. Ter um pequeno salário no futebol de base sustentava minhas vontades. E eu não estava prejudicando ninguém.

Cheguei em casa e joguei os comprimidos na minha escrivaninha. Pensei cinquenta vezes se deveria tomar um ali mesmo. Eu precisava relaxar.

 

Daniel (19:46) - Vai voltar ainda hoje?

Mãe (19:53) - Não. Tem resto de almoço na geladeira. Pede pizza, qualquer coisa.

 

Era minha deixa. Peguei uma garrafa de água, um comprimido amarelo com uma carinha feliz e deitei na minha cama. Coloquei uma música bem alta e tomei a bala. Olhei para o teto esperando o efeito. Senti as coisas se alterarem em uns quarenta e cinco minutos. Meu edredom parecia bem mais macio. Acho que vi o próprio cantor daquela música na minha frente. Imaginei como seria tocar uma sob o efeito da droga. As letras do teclado do notebook estavam engraçadas quando comecei a escolher o vídeo do site. Cada clique me soava hilário. Coloquei "loiras peitudas" no mecanismo de busca. Já estava desabotoando minha calça quando notei um vídeo no canto da tela. A mulher parecia minha mãe. "Espera um pouco! É ela! É a minha mãe com o cara da empresa!". Fechei a página na mesma hora e corri até o banheiro para me limpar. Esfreguei as mãos tantas vezes que quase me cortei. 

A sensação boa tinha dado lugar a um desespero gigantesco. Comecei a chorar como uma criança. Tive a sensação de que algo me apertava no peito. Parecia que eu ia morrer.

 

Daniel (22:15) - Cara, tem como vir aqui?

 

Flávio nem visualizou a mensagem.

 

Daniel (22:17) - Está ocupado agora?

Tales (22:21) - Indo ao cinema com Bárbara. Precisa de algo?

Daniel (22:25) - Nada urgente. Aproveite.

 

Tentei ficar calmo. Bebi muita água. "Isso é psicológico", repeti comigo mesmo, mas a sensação ruim não passou. Não podia falar sobre aquilo com qualquer pessoa. Eu precisava de alguém de confiança.

 

Daniel (22:33) - Eu preciso de você, Lili

Daniel (22:37) - Lili?

 

Vi que ela estava online há sete minutos. Deveria estar meio chateada com o que falei sobre Laysa.

 

Daniel (22:45) - É sério, Lili.

 

Eu precisava dela. Não era brincadeira. Tentei mais uma vez.

 

Daniel (22:55) - Não estou bem. Não me deixe fazer uma besteira.

Lili (23:12) - Calma. Não faça nada de que possa se arrepender mais tarde. Espere por mim, estou indo aí.

 

Só o fato de saber que ela estava vindo me acalmou um pouco. Então lembrei-me do meu irmão e do meu pai. Fiquei pensando por que Elisa também preferia Victor. Aquilo me afundou um pouco mais. A sensação era de que o ar não era suficiente para os meus pulmões. 

Não me lembro bem o que aconteceu quando ela chegou. Acho que disse algo sobre jogar os comprimidos fora. Nunca mais tomaria aquilo de novo, de fato. Provavelmente eram de péssima qualidade. 

— Fique calmo. Respire. Estou aqui — foram as últimas palavras de que lembro.

Senti Elisa ajeitando minhas cobertas. O ar condicionado não estava ligado, mas senti muito frio. De vez em quando eu checava se ela ainda estava ali, até que adormeci. Lili já havia ido embora quando acordei. Apesar do enjôo leve, eu estava bem. Os outros detalhes se tornaram um borrão na minha memória.


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Notas finais do capítulo

Hurt, I can't shake
We've made every mistake
Only you know the way that I break

https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=https://m.youtube.com/watch%3Fv%3D-tn2S3kJlyU&ved=0ahUKEwifjPXZiorkAhWsFLkGHTMoBooQ3ywISjAC&usg=AOvVaw3C38P47GivLI1G8StyFUhQ



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