Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 95
Rubedo


Notas iniciais do capítulo

09/05/2020
Esse é o o penúltimo capítulo e é surreal chegar até aqui. Eu quero agradecer a todos que estão acompanhando essa história, todos que comentaram em algum momento da fic. Vocês fizeram a vida dessa autora mais feliz em momentos terríveis.



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R u b e d o

 

A prioridade era encontrar Natalya, que ainda jazia naquele terrível feitiço de repetição feito por ela mesma a fim de manter Chthon longe de Wanda Maximoff. E, por apenas alguns instantes, Wanda a viu além da escuridão. Estava igual à suas visões anteriores, parada na vegetação etérea entre a Travessia da Bruxa e a realidade, por mais distorcida que fosse dentro daquela Montanha. Era linda e trajava vermelho. Wanda gritou seu nome e a assistiu virar o rosto em sua direção, desacreditada. Sorriu, quem sabe pensando o quanto aquele momento era desejado e impossível.

Wanda estava ali. Realmente ali. 

Agatha deu um passo a frente, segurando suas próprias vestes para andar mais rápido. Ela, a mestra, também sentia o momento mais palpável, sólido como jamais foi, pois Natalya conseguia enxergá-la de volta pela primeira vez. O feitiço teria, portanto, se quebrado? No momento seguinte, um urro ecoou no ambiente, um som que fizera a pele de Wanda se arrepiar de forma instintiva e instantânea.

Suas pupilas dilataram a fim de captar cada movimento, cada detalhe da figura demoníaca que se aproximava. O caos dentro de si reconhecia a presença dissonante, sua aura perversa e inabalável. Sua cor acendeu-se acima da pele, puro tom escarlate banhando-a por inteiro. 

E então, a Feiticeira foi arrastada para o nada. A última coisa que ouviu foi a voz de Agatha Harkness, enquanto ela movia o braço para alcançar sua mão:

 — Wanda!

A gravidade parecia suga-la mais rápido, para onde quer que fosse o chão naquele estranho plano de existência. No entanto, ela não enxergava nada. Nada acima ou abaixo de si, somente o vazio sombrio para onde quer que olhasse. Não gritou, mesmo que o ar fustigasse seu rosto, seus cabelos.

Wanda estava acostumada a cair em abismos. O seu silêncio era familiar, sua ausência de cores e sua indiferença imperativa. Já tinha caminhado pelos fundos de muitos abismos dentro de si e, mesmo que apreensão começasse a enraizar em seus pulmões durante a queda, Wanda se lembrava que além de cair, ela se levantava também. 

Sempre, sempre.

Franziu os cenhos, ciente de seu poder e sua capacidade infinita. O peso da tiara em sua cabeça colocou foco em seus pensamentos, o que lhe conferiu em seguida calma para respirar e desacelerar. Tinha passado por muita coisa até chegar ali, descortinando verdades enevoadas sobre a Montanha e seu próprio passado. 

Agora ela apenas pairava no ar. Aquela diminuta chama dentro de seu tórax, de seu coração pulsante, era refletida pelo brilho de seus olhos enquanto ela observava o vazio se estender por todas as direções. Algo ondulou mais a frente, curioso. Essa coisa, esse algo queria se aproximar, parecia. Wanda gesticulou curtos e coordenados movimentos, invocando magia pelos seus dedos. Círculos traçaram-se no ar, ondas de energia vermelha que teriam destruído tudo o que tocassem, porém que atingiram o nada.

Depois, mais ondulações. Uma voz macia, elegante. Não existia uma criatura ou entidade perto da feiticeira, pois do contrário ela sentiria, mas… Aquela voz ressoou bem atrás de seu ouvido.

— Ah, querida. Eu lhe esperava há tanto tempo. — Saudou-a com carinho, uma voz terna e que parecia ter tido tempo o suficiente para treinar a dicção numa língua que não lhe pertencia. Falava no idioma materno de Wanda, que em resposta somente lançou mais feitiços e energias psiônicas ao seu redor. 

Não atingiu ninguém. Veio logo um som de desaprovação:

 

Tsc,

 tsc,

 tsc.

Cada estalo numa direção diferente. Mais perto, mais longe. O dono da voz estava desapontado. 

— Por que a irritação?

— Sabe o porquê.

Uma risada grave, genuína. Casual demais para um deus sádico.

— Foram as histórias que lhe contaram? Sobre como eu sou… O mal?

— Basicamente. 

Mesmo sem um único objeto, criatura ou cenário à sua frente, Wanda parecia enxergar um sorriso largo e silencioso. Por um bom tempo, nenhum dos dois disse nada. Não se apresentaram, não. Somente sorveram da essência um do outro, as duas vermelhas… Mas tão diferentes.

— Eu gosto deles, os humanos. Tão criativos.

— Minha mãe foi assassinada. Minha tia está aqui há anos. E você só deseja a mim para desgraçar o mundo. — Wanda rosnou, suas íris e escleras luminosas. — Isso não é uma história. É a verdade. E eu vou pôr um fim nela.

— Acredita mesmo que eu teria que fazer força para desgraçar o mundo… Ou que a humanidade cuidaria disso sozinha?

— Não me teste. Eu não quero ouvir suas palavras! Eu o quero morto.

— Isso me entristece, criança. Sua incompreensão é apenas… Terrível. Eu sou uma entidade antiga. — Ele, Chthon, calmamente explicou e cada palavra incendiava mais a fúria da Feiticeira. — Rituais em minha invocação não são nada para mim além de breve liberdade. A morte de mortais não significam nada, assim como você não se preocupa com o destino de tolas e inúmeras formigas.

— E, ainda assim, você me espera há muito tempo. Uma formiga.

— Mas você não é uma mortal comum, é? E não é humana. Eu lhe toquei por um motivo e lhe observei por um bom tempo. Sei dos nomes que te deram. 

 

Bruxa. 

Órfã.

Cigana.

Judia.

Mutante. 

Aberração.

Assassina

Assassina

Assassina

 

A respiração de Wanda Maximoff tornou irregular. A cada sílaba, ela sentia uma mordida em suas memórias. Sua casa, explodida. Seu irmão, morto; a cidade destruída. A missão em Lagos, Nigéria. Mais mortes. Suas falhas e vícios. 

— Ah. Como vocês falam…? Mutante. — Continuou, com deleite. — Nomes novos para uma conceitos antigos. Você poderia ser chamada de deusa.

— Basta! Eu sei quem eu sou. E sei o que você é. Destruição.

No alto da escuridão, um imenso par de olhos se abriu. Não eram nem remotamente semelhantes a órbitas humanas. Não tinham cílios, nem bordas delicadas e delineadas. Não existiam pupilas, nem brilho em sua superfície. Aqueles olhos assistiram a história humana, contemplaram sangue e sacrifícios sem nem piscar. Eram duas fendas vermelhas, fundas e fulgurantes por uma luz quente, infernal.

De algum modo, pareciam bocas também. Bocas escancaradas que salivavam pelo desejo de devorar cada alma viva que estivesse à sua frente, a sua disposição.

— Sim. Renovação. Veja… Possuo muitos nomes, mesmo sem uma forma sólida como a sua. Wanda, pequena. — Chthon argumentou, sua voz ainda macia como veludo. Suas palavras rodopiavam no vácuo e entravam venenosas, persuasivas, pelos tímpanos dela. — Sei que consegue me compreender além do que essa linguagem limitada me permite transmitir. Deixe-me mostrar… O que sou. O que podemos ser.

Wanda soltou um grunhido engasgado antes de sua visão ser infectada pela narrativa de Chthon.

Havia fogo em toda parte, em diversas cenas que rodeavam a Feiticeira Escarlate. A origem de tais incêndios pouco importava, na realidade, e o brilho das chamas era lento e belo. Não havia diferença se era numa floresta e se queimava animais e plantas, se era perto de uma usina radioativa ou se ameaçava a vida humana num raio de quilômetros. Depois do fogo e de gritos, vinha o silêncio e, calmamente, reconstrução.

Vida após o caos. Era o que início de tudo, não? Antes, não havia nada. E uma explosão deu origem a tudo.

A mesma coisa com terremotos. Com inundações, impactos de meteoritos, doenças e guerras. Tudo passava pelo sofrimento e pela dor, para então voltar a vida exuberante.

Tudo crescia de volta e, muitas vezes, melhor. Estável, sadio, sereno.

Chthon então mostrou Wanda a si mesma, o que ela tinha se tornado após fatídicos episódios de sua existência. Como ela era confiante, forte e poderosa agora. Sem olheiras, sem o impulso tolo e inexperiente que a conduzia a decisões terríveis. Uma Feiticeira. Uma mulher que poderia ser mais ainda, muito mais.

Que poderia ser o que ele tinha dito. Uma deusa.

Afinal… Todos os planos de realidade se dobravam ao seu prazer. Ela poderia tocar aqui e ali, remendar um ponto a outro ou rasgá-los. Tinha ciência disso, pois testemunhou outros universos onde ela tinha alterado linhas do tempo e demais outros fatos para saciar sua sede de alegria. Wanda, aquela Wanda que ela era, poderia fazer o mesmo. Fazer melhor. 

Tinha o mundo e suas infinitas possibilidades em suas mãos. 

O passado poderia se tornar num pesadelo longínquo e passageiro. Uma lembrança ruim prestes a ser esquecida. Ela viu a cor azul e volátil de seu irmão retornar para si, para sempre. Pietro lhe abraçava e ria, ria, ria. E cada riso seu partia o coração de Wanda em milhões de fragmentos.

Mas por que parar aí?

A bomba jamais teria explodido em seu lar durante o shabat. Django e Marya Maximoff, seus pais adotivos, permaneceriam vivos e perto dela, para alegrá-la. Nunca mais teria que sentir dor e sentir saudades. Muito menos fúria ou luto.

Não seria a única a ser poupada, porém. Suas inúmeras versões em outros universos também sofreriam o mesmo destino, felizes. Seus amigos, pessoas que amava, poderiam ter a vida que mereciam. Steve, sorridente. Sam, radiante. Shuri, vitoriosa. Natasha, à salvo. James, seguro. Mais nomes, mais cores. Erik. Agatha. Ebony. Natalya. Yelena. Piotr. Lorna. Silver. Todas aquelas auras, almas, coloridas iriam convergir para o mesmo ponto branco na eternidade, para assim serem engolidas pela noite absoluta.

Haveria paz.

Wanda tinha perdido a sensação de habitar seu próprio corpo. Sentia-se uma casca ambulante, coberta por lágrimas, mas sua voz ainda se fez ouvir no ambiente. Era um fio, um fio distendido e fraco. 

— Não é natural.

Chthon questionou:

O que é natural?

— Não é certo.

— E quem diz o que é certo? Wanda... A realidade pode ser aquilo o que você deseja, aquilo que sempre desejou. Você pode recomeçar. Tudo pode recomeçar. 

— Eu não…

Os dois olhos vermelhos se puseram diante de si, queimando. Eram mais do que órbitas, mais do que bocas escancaradas. Eram portais para uma nova realidade e Wanda jazia naquele limiar entre ir ou ficar.

— Você pode. Você quer. Admito, isso é também o que sempre ansiei em minha existência, alguém que… Pudesse me enxergar e me entender. Eu preciso de você. Sairemos daqui, como um e mudaremos tudo. Renovação é necessária. Sou apenas um meio, pequena, um meio para o melhor dos caminhos. É só me… deixar entrar em seu coração.

Ele era familiar, rubro e absoluto. Uma figura que apareceu na sequência de tarot:

O diabo.

O interior de Wanda agitava-se, o caos rugindo e entrando em colapso dentro de seu peito. Lembrou-se das demais cartas na tiragem daquele dia, ainda na casa de Agatha Harkness.

O mago. A capacidade de segurar e alterar sua realidade.

Os enamorados. Uma escolha.

Mas ela de fato tinha uma escolha? Havia sido marcada por Chthon desde o nascimento. Era uma mulher inconstante, falha e que sofrera duros golpes desde tenra idade. Sim, ela desejava tudo aquilo que ele lhe mostrou. Desejava a felicidade daqueles que amava. Desejava ficar bem, ficar em paz.

Sua decisão era clara e não existiam formas de voltar atrás. Ela jamais seria capaz de vencer Chthon num combate direto, numa medição de força pura - por mais que seu poder escarlate se expandisse mais e mais. Ele era antigo e conhecia todos os truques. Inventara muitos deles.

Então ela simplesmente soube o que fazer. Era esta a sua escolha. Wanda engoliu seco, ignorando seu choro patético, e abriu seu coração violento.

— Sim, sim… Boa garota.

Só existia a cor vermelha naquele vazio.

*

Agatha ainda segurava a mão de Natalya quando as duas saíram da escuridão, atravessando a grossa porta de ferro. Demorou alguns instantes para qualquer uma das duas dizer alguma coisa, pois ainda se recuperavam do ambiente angustiante que deixaram para trás. O feitiço de repetição havia se quebrado e a rom agora tinha sua alma de volta ao corpo após tantos anos.Tremia e parecia prestes a vomitar ou desmaiar naquele chão gélido e um tanto empoeirado. 

— Venha, Natalya. Está segura agora.

No entanto, não era isso que lançava uma sombra de temor sobre o coração da idosa. Andou alguns passos adiante, cansada e ligeiramente cambaleante, segurando o tecido de suas vestes para não tropeçar. Seus olhos velhos encararam a direita e a esquerda, para frente para trás. Onde estava a menina? Onde estava Wanda?

Ela ajudou Natalya a permanecer de pé, uma apoiando a outra. Agatha engoliu seco, mais uma vez repousando sua atenção no vazio cósmico e terrível além da porta. Houve uma perturbação no breu, como algo se mexendo abaixo de litros e litros d'água numa noite escura. Em seguida, a cor vermelha.

Wanda. Ainda de tiara, ainda com sua bela vestimenta escarlate e caminhando com desenvoltura, equilíbrio e calma. A velha soltou um suspiro e deu um passo em sua direção, mas logo algo a deteve. Uma sensação.

O rosto da jovem estava desprovido de emoções, sua pele pálida. Sua aura, sua presença morna e gentil não existia ali. Estava oca. Ou então seria melhor que estivesse assim, vazia. A porta de ferro se fechou sozinha atrás de si com um estrondo, enquanto aquela que não era Wanda se aproximava com calma, de forma calculada e silenciosa.

Agatha colocou Natalya atrás de seu próprio corpo, pondo um dos braços por cima dela. A pobre coitada mal tinha condições de ficar em pé, imagine… Imagine lidar com uma criatura daquelas. Quando a outra estava perto o suficiente, a bruxa pôde enxergar terríveis detalhes nos olhos dela.

Eram vermelhos, no entanto… Tão, tão diferentes do que costumavam ser, mesmo nos momentos de mais puro ódio ou de extrema tristeza da menina. Escuros, como uma poça funda e sem vida de sangue. Olhos sem pupilas e pouco brilhantes e, ainda assim, expressivos. Em tal par de órbitas existiam sadismo, humor, fogo e vilania.

O coração de Agatha se partiu com aquela visão e ela quase ouviu o som craquelado de seus cacos. Uma lágrima escorreu pelas rugas de sua pele enquanto ela invocava magia ao seu redor, um círculo… De proteção.

Aquela que costumava ser Wanda abriu um sorriso largo demais, afiado demais. 

— Qual é o problema, velha? — Disse, sua voz doce acompanhada por um eco grave, espectral e antigo. Seu sotaque estava diferente. Sua entonação era debochada, ácida. — Está realmente chocada com a decisão de sua aprendiz? Uma tragédia.

Natalya se pôs de joelhos, chorando.

— Wanda, minha menina…

— Ela não atende mais por esse nome. — A outra latiu, um lampejo de fúria intenso em seus olhos. — Não há mais Wanda, só Chthon

O demônio tentou se aproximar mais uma vez, casual e muito à vontade usando o corpo da sokoviana. Deveria ser sua pele favorita, pois era jovem, volátil, poderosa e bela. Agatha temia aquele resultado, no entanto… Considerou que tinham uma chance verdadeira. Como era tola em achar que poderia deixar Wanda sozinha perto de Chthon! Ele era um deus, afinal. Uma criatura que não pôde ser morta por inúmeros feiticeiros no passado, apenas trancado e adormecido. Mas… ela carregava esperança no peito, afinal, Wanda tinha crescido tanto, melhorado tanto. Seu desenvolvimento ao longo daquela jornada foi sólido e povoado de provações, todas superadas pela jovem. Ela passou por cada etapa e foi capaz de tocar outras realidades sem ceder a tentação de alterá-las.

Independente de tudo, deveria ter mantido a aprendiz longe dali. Deveria ter chamado todos do Kamar-Taj, quem sabe. Todos os feiticeiros que conhecia.

Deveria ter sido ela a ser consumida, velha e vulnerável. Não Wanda.

Um novo sorriso abriu-se em sua boca.

— Tanta dor, tanto sofrimento… Para nada.

O círculo mágico de Agatha brilhou no piso, assim como as esferas de energia em suas mãos. Vento se fez presente, junto com súbita e espessa névoa lilás.

— Afaste-se!

Chthon apenas riu.

— Para quê? Não é como se pudesse me impedir. — Uma pausa. — Oh, eu vejo. Vocês anseiam pela visão do deus demônio. Aquele que Dorme, não é mesmo? Pois estou bem desperto e faminto. Há tanto não sinto o sabor de sangue, de almas.

 As mãos de Wanda Maximoff, uma marionete sob controle de Chthon, agitaram-se rápidas e vermelhas, conjurando energia e traçando figuras no ar enquanto sua boca murmurava coisas numa língua proibida, demoníaca. Todo o ambiente foi infectado pela cor e o cheiro de sangue e, se houvesse de fato um inferno, tal lugar seria muito semelhante a cena que erguia-se diante das duas.

Agatha e Natalya tentaram se afastar para trás, mas jaziam espremidas contra a parede. A velha rangeu os dentes, seu corpo impotente e sua cabeça zonza de tantas variáveis, tantos feitiços que cogitava e descartava em sua mente. Elas não conseguiriam sair da Montanha Wundagore, não com o demônio flutuando na frente delas. Não com o feitiço de sacrifício ainda demandando algo em troca pela saída. 

E ele já não parecia vulnerável o suficiente para ser derrubado por um novo feitiço de repetição, tal qual Natalya fez por esses anos todos. Chthon estava só se divertindo. Habitava agora um corpo sadio e capaz de tocar e revirar a realidade. Tinha tempo do universo nas mãos. Tinha tudo.

Os olhos sempre tão pacientes de Agatha Harkness estavam tomados por raiva, impotência, e agora tingiam-se de luz roxa. Ela ergueu seus punhos, aumentando a densidade e o raio da névoa lilás que envolvia seu corpo e o de Natalya, de modo que só era possível enxergar de volta a silhueta escura do corpo de Wanda, tomado por Chthon.

Ele riu enquanto o nevoeiro fazia as duas desaparecerem.

— Oh… Névoa mágica? Em teoria, era pra eu deixar de me mover agora, não?

Uma rajada de energia psiônica vermelha saiu de seus dedos e atingiu o ponto onde antes estavam a bruxa e a rom, porém nada ruiu além da parede de pedra, que esquentou e rachou. Chthon alargou o sorriso em seu rosto, interessado numa caçada. Virou o torso, tentando sentir o local para onde as duas tinham fugido.

Ouviu-se a voz da velha proclamando um feitiço. Figuras geométricas acenderam-se num ponto adiante e logo vieram estacas de energia cristalizadas na direção de Wanda. Bastou só um aceno para que o golpe fosse neutralizado, coisa que muito intrigou Chthon. As estacas permaneceram no ar durante alguns segundos antes de serem obliteradas para a inexistência, com um barulho igual a de espelhos estilhaçando-se. Agatha era uma senhora sábia e entenderia que tal golpe seria inútil, então por que…? Oh

Estalidos metálicos, correntes. Algo arrastando lâminas.

A velha só queria tempo.

Chthon desfez a névoa que havia tomado conta do ambiente e testemunhou um círculo de invocação aberto e iluminado por Harkness. O rosto enrugado dela esticava-se numa expressão tensa, concentrada, pois o feitiço era pesado e fazia seus ombros arderem. Aos seus pés, os ossos dos cavaleiros bestiais juntaram-se para compor um grupo de ataque. Chifres, colunas, vértebras e caudas. Tudo foi organizado de forma rápida para colocar as armaduras de volta em atividade, espadas e escudos em punhos.

Os cavaleiros grunhiram sons indescritíveis enquanto corriam na direção de Chthon.

O demônio não queria perder imediatamente o corpo que tinha tomado para si, seu receptáculo tão precioso. Defendeu-se de maneira efetiva, rápida; conjurou mais energia caótica para tirar as espadas das mãos de ossos das bestas e não fez muito esforço para defletir mais ataques quando os esqueletos recompunham-se. No entanto, ficou claro que as bestas não tinham ordens para realmente rasgar sua pele ou atravessar as lâminas em sua traquéia, mesmo que suas armas fosse dignas de nota. Havia um brilho de pureza nelas, um feitiço antigo e fraco para que os cavaleiros tivessem uma chance para lutar contra Chthon, se ainda estivessem vivos. Agora, suas carcaças só eram velozes e tomavam pouco de seu foco.

Os olhos tão infernais de Chthon retornaram sua atenção para a figura de Agatha e na outra que o aprisionou num feitiço, a rom. As duas agiam em conjunto para traçar símbolos no chão através de magia. Precisariam mais do que aquilo para exorcizá-lo, mas ele sentia-se vivo por ver alguém tentar. Livrou-se dos cavaleiros com uma repentina explosão que os transformou em menos do que cinzas e em seguida lançou outro gancho de energia psiônica para derrubá-las.

As duas não desapareceram mais uma vez em meio a névoa. Um domo de energia cristalina as protegeu, embora tivesse também trincado. Era aquela feiticeira com aura rubra, a que levou seu receptáculo embora há muitos anos. Natalya. Estava fraca e sangrava pelo nariz, então tal barreira não se manteria resistente por muito mais tempo.

Dentro do domo, Natalya choramingou por ajuda.

— Agatha…

A idosa continuou com os últimos símbolos. Ela sabia que as realidades ondulavam perto de Chthon, perto de... Sua tão amada aprendiz. A aura dela agora era dissonante, amaldiçoada assim como seus olhos, portanto não era possível conjurar espíritos ou demônios naquela situação, tampouco podiam se teleportar para outro local. Tudo se fragmentaria em inúmeros cacos, cacos que poderiam ainda ser usados contra Agatha e Natalya.

As opções para as duas eram escassas.

— Conter Chthon é só o que importa. Se eu não conseguir, ele vai me matar antes mesmo de seguir pra você ou partir então o mundo em dois. Natalya, eu preciso que escute. Se eu não conseguir, você tem que me esfaquear primeiro para que eu sirva de sacrifício.

Mal houve tempo para que a rom olhasse a adaga conjurada pela velha. Chthon lançou mais energia na barreira e desta vez manteve seu ataque ali, moldando-o na forma de tentáculos grossos e escuros. As ventosas daqueles membros espectrais eram vermelhos e comprimiam a estrutura do domo, gradativamente mais frágil.

— Eu não…

— Ele só está brincando conosco. É a única forma de sair daqui, sabe disso. O feitiço de repetição não vai mais funcionar.

Ela não respondeu. A barreira quebrou sob o aperto dos tentáculos de energia de Chthon. Agatha puxou Natalya para de si, desviando a rom do impacto de um dos tentáculos. Não foram longe e o demônio se aproximou, o corpo de Wanda ainda flutuando no ar de maneira graciosa. 

Os símbolos no chão incendiaram-se.

Chthon não gritou. Os raios que atingiram o corpo não fizeram mais do que um leve incômodo, um espetáculo de cores no ambiente. Piscou e piscou, depois usou os tentáculos escuros para varrer os símbolos do chão. Com um breve gesto das mãos delicadas de Wanda, os tentáculos de energia em seguida jogaram as duas para o outro lado daquele ambiente, diretamente contra o concreto.

Agatha levou pouco tempo para se recuperar. Pegou a mão de Natalya com as suas, segurando o cabo da adaga. Com um só movimento e lágrimas em seus olhos - pois já não havia outra opção que lhe viesse à mente - trouxe a lâmina para si mesma, em direção ao seu tórax. A rom só teve tempo de desviar o curso que sua mão tomava, tentando evitar a colisão da adaga contra o corpo da idosa, mas quem impediu a ação foi o próprio Chthon.

A lâmina foi puxada por ele com os poderes telecinéticos de Wanda Maximoff. Observou bem a adaga, depois as duas. O deus inclinou a cabeça, naquele gesto que Wanda fazia quando pensava em alguma coisa.

— Então precisam de um sacrifício. — Concluiu. — Não seria nada cortês de duas bruxas só saírem assim, de forma tão brusca diante de um deus. Mas agradeço, porque agora sei que não preciso usar das habilidades desse corpo para quebrar o selo que me mantém na Montanha. Posso usar uma de vocês de sacrifício e concedo o privilégio da escolha. — A energia vermelha aproximou-se das duas. — Qual das duas será? Alguma de vocês precisa morrer para salvar a outra, mesmo que… Seja só uma decisão provisória e tola. Não tem mais nada a oferecer. Ou então o gato patético lá fora vai se sacrificar? 

Houve um lapso, um breve instante no qual a cor fria e natural do ambiente retornara ao seu estado original. O demônio franziu os cenhos do corpo que habitava, depois segurou as têmporas de seu rosto. Subitamente fraco, subitamente vulnerável. A voz de Wanda então saiu limpa e afiada de sua garganta, desprovida do eco grave de Chthon:

— O sacrifício é você.

O urro do deus abalou as estruturas da Montanha. Wanda despencou do ponto onde seu corpo - sua carcaça possuída -  flutuava antes, caindo de joelhos no chão. O espectro do demônio, porém, permanecera no ar: escuro, pulsante e amorfo. 

A Feiticeira tossiu e resfolegou enquanto tudo tremia e colapsava. Arrastou-se no chão brevemente, mas logo Agatha veio ao seu encontro e encarou-a fundo nos olhos:

Íris verdes, doces. O rosto frágil, embora determinado. Era Wanda, a Wanda de verdade, a sua aprendiz que tanto amava. 

A velha ajudou-a se levantar, Natalya também. As três ainda estavam um tanto confusas enquanto assistiam a massa disforme do deus perverso esticar-se e contrair em seguida, dobrando-se em si mesmo em porções cada vez menores. 

Wanda usou o resto de sua força para conduzir seus poderes em direção a Chthon, para aniquilá-lo e varre-lo de sua realidade. Gritou, suor escorrendo de sua testa. Natalya veio ao seu auxílio, depois Agatha. As três usaram suas energias para sufocar Chthon, embora logo a rom e a idosa tenham ficado exaustas e simplesmente parado.

Somente a Feiticeira Escarlate prosseguiu até que não existisse mais nada.

Do outro lado, surgiu um portal grande o suficiente para que todas elas passassem direto para sua liberdade e segurança.

Embora os abalos a assustassem, evocando memórias antigas de quando era uma garota fugindo de uma bomba na sala de jantar, Wanda desejou observar bem aquela cena, fúria e satisfação em sua expressão. Fragmentos do teto caíam, rachaduras alastravam-se através das rochas e do cimento. Aquele urro era o metal se retorcendo ou Chthon? 

Não existia resposta. Só aquele guincho repulsivo e a luz vermelha. 

O corpo de Wanda Maximoff lembraria-se do demônio por muito tempo. Tinha rastejado por seu sangue, seu coração e suas memórias. Sua voz grave e nada natural ainda era um arrepio recente em seus tímpanos, sua crueldade parecia ainda pingar junto ao seu suor frio. 

Ela mal tinha conseguido… O poder era imenso, a escuridão era profunda e absoluta. Tentadora. Mas ela não seria capaz de sacrificar Chthon se não estivesse encolhido em seu coração.

Essa tinha sido sua escolha. Dolorosa, arriscada e mais inúmeros adjetivos terríveis que não se formavam em sua cabeça naquele instante. Somente Wanda conseguia controlar sua cor escarlate e somente ela poderia manejar Chthon daquela forma.

Somente ela poderia aniquilá-lo.

Ela inspirou fundo, apenas o caos familiar respondendo em seu interior.

O toque de Agatha a despertou de seu transe mórbido. A mestra a pegou pelo pulso, quase correndo com a outra rom para fora daquele local amaldiçoado. Atravessaram o portal, encontraram Ebony, ainda aguardando próximo ao gelo. Tinham pressa, tinham medo e não ofereceram maiores explicações ao bichano preto enquanto disparavam montanha abaixo, desviando de arbustos e pedras num caminho íngreme.

Depois do que pareceram eons, encontraram a clareira na qual Wanda e Agatha descansaram antes. Ali, puderam respirar melhor, com mais calma. E puderam também observar o ponto que tinham deixado para trás, o suposto laboratório. 

O lar do demônio e local de nascimento dos gêmeos Maximoff.

Tirando os pedaços de pedra que despencavam ou a estranha construção que simplesmente deixava de existir, a Montanha Wundagore continuava a mesma. Misteriosa, envolta em névoa. Mas, sem sua aura maldita e vermelha.

A Feiticeira Escarlate ergueu o tronco, ficando de pé e com as costas retas, embora os joelhos doessem. A tiara de metal emoldurava seu rosto impassível, observador. Seus poderes afiados enxergavam diversas auras e segredos, no entanto, existia aquela pequena voz que colocava dúvidas em sua cabeça. Limpou a garganta e questionou:

— Ele se foi? Para sempre?

Uma pausa. Agatha respondeu:

— Eu não sei, Wanda.

Ainda era noite na floresta e a Lua cheia brilhava no céu.


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Notas finais do capítulo

*Aqui vão agradecimentos especiais (embora não em ordem de importância) a: Romanova; Elladora; Mel; Cat; Nath Weyes; Dana Medeiros; maldini; Switchblade; Julia A R da Cunha; Liv; K Langdon; Menta; Moony Black;Nanda Lisboa; Thais Fagundes; Alexia Sigyn Rogers Stark; Destiny Destroyer; Madame Scissorhands; My Dark Side; Hunter Pri Rosen; LC_Pena; Dix W Garcia; Senhorita G; Rose; RadiactiveUnicorns; madiejasper; Laurentino o Naruto; Dhowechelon; The Immortal Anne Fanfics; Isabelle Mussa; AsgardianSoul; Maria410; Lilindy; Ane96; Consuela; James; Isla; Amelina Lestrange; Bia; NielliCris; LadyStark; MimisaRi; Srta Potechi; May FN; IamCrazy; Scar Linus; Jace Jane; O lado bom do Yaoi; AliceDracno; MissCarolBarnes; Amren; maybarnes; EmilyCruz; Luna (as duas haha); saturno; Lyuba; Snow Storm; srawinterwitch13; Panda Pope oka; Gorki; Srta Alianova; Lídia Albano; Maria410; Clarity Romano; LucyS; Ane Merlyn; Irene Adler; Horski; EmyReis

*Todos vocês fizeram parte disso e eu só posso expressar o quanto sou grata. Se seu nome não está aí, é puro esquecimento (já que eu passei 40 páginas resgatando os nomes dos usuários), então é só me mandar uma MP para eu acrescentar o seu nickname!

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska

*Tentei deixar o mais claro possível, mas vocês sabem o quanto ação pode ser um tanto desafiador de escrever. Basicamente, a Wanda incorporou Chthon e o usou como sacrifício para todas saírem da Montanha Wundagore. Caso nao tenha ficado em níveis aceitáveis, por favor comente para que eu possa sempre melhorar minha escrita!

*A imagem de tentáculos de energia de Chthon foi usada em continuidade da ideia de aproximá-lo da estética lovecraftiana hahah

*Rubedo é a última etapa da transformação alquímica, a fase do calor, do sangue e da cor vermelha. É o alcance do nível iluminado - embora nao seja exatamente como a iluminação no budismo; nível da "pedra filosofal", da libertação de ego.