De laços e fitas escrita por Literate


Capítulo 8
Capítulo 8




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Can-Can passou a ter uma vida tão ordinária e rotineira quanto possível. Dera-se conta de que a possibilidade de ganhar bits a mais ou a menos, dependendo do dia, nas praças, tornava aquela atividade emocionante de certa forma – além de muito mais interessante que faxinar. Ia do cabaré para casa e de casa para o cabaré sempre no mesmo horário, e via os mesmos pôneis na rua. Sentia falta de se apresentar e receber elogios. Às vezes conversava com Weather ou recebia visitas de Balance, e esses eram os pontos altos de sua nova vida.

Não conseguira fazer amizade com as éguas do Sun e parou de usar os chuveiros do vestiário com frequência no final do expediente, pois ficava ‘desconfortável’ ao tomar banho com outras pôneis e temia que elas percebessem.

Os ensaios da orquestra da casa durante a tarde pelo menos deixavam a faxina mais animada, e Can-Can podia dançar enquanto varria o salão.

As contas já não deixavam de serem pagas, sempre havia comida para o jantar, os remédios para a tosse de Turner eram repostos assim que acabavam; a estabilidade garantida pelo trabalho no cabaré era somente comparável à chateação causada pela falta de novidade e previsibilidade do dia-a-dia. Can-Can não gostava de mudanças drásticas em sua vida, mas percebia que gostava ainda menos daquele seu estado estagnado.

Infelizmente, o próximo evento que interromperia sua vida monótona seria mais uma vigília para o pai. A saúde fraca de Turner estava finalmente vencendo a vontade de viver do garanhão. Depois de meses mal se levantando da cama, as costas e os lados do pônei possuíam agora feias feridas inflamadas. Turner respirava com muita dificuldade, os remédios para tosse que tomava já pouco faziam diferença, afinal, o unicórnio há muito tinha uma doença mais grave que exigia um tratamento caro demais. Weather e seus pais estavam na sala, conversavam em voz baixa sobre o enterro. No quarto, Balance e Can-Can mantinham-se ao lado de Turner, os olhos dele perdiam-se no vazio vez ou outra.

“Mind, importa-se de deixar eu e Can-Can a sós?”, ele pediu. A égua negra atendeu o pedido penosamente, fez um carinho no rosto do moribundo e saiu. Turner tornou seu olhar para a filha, que estava apoiada com os cascos dianteiros na cama e tinha uma expressão sofrida no rosto. Àquele ponto, sua jovem dançarina já havia feito dezessete anos e tinha o corpo desenvolvido de uma égua.

“Eu lembro de quando você era desse tamaninho”, ele sussurrou, aproximando os cascos um do outro, mas mantendo uma pequena distância para representar um pônei recém-nascido. Deu um pequeno sorriso e deixou os cascos caírem de volta no colchão. “Você era a coisinha mais bonitinha que já tinha visto. Ainda é, aliás.”

Papa...”, Can-Can deixou a palavra no ar, não sabia o que dizer. Ela sofria, só tinha sofrido daquela forma quando achou que ele morreria por culpa dela alguns anos antes.

“Lembra de quando ganhou a sua Marca?”, ele perguntou, de repente. A filha assentiu e deu-lhe um sorriso, os olhos dela estavam marejados.

“Foi o dia mais feliz da minha vida”, ela disse com doçura.

“Também foi um dos meus dias mais felizes... Era noite da lareira calorosa. Lembro que naquele ano eu tinha comprado uns pães e uma torta de laranja. Ah! Tínhamos também chocolate quente e espigas de milho cozidas! Eu nunca tinha visto minha filhinha ficar tão feliz! Quantos anos você tinha na época?”

“Cinco”, ela respondeu incerta.

“Quatro, você tinha quatro, eu lembro disso. Enfim, por algum motivo, quando eu voltei do quarto para a sala, minha pequena estava tentando se equilibrar sobre as patas traseiras!”

“Eu queria saber se conseguia”, Can-Can afirmou, dando de ombros levemente. Não queria ficar chorando na frente do pai, tentava continuar forte.

“E não estava conseguindo. Nunca tinha visto também uma potrinha com uma cauda tão bagunçada, toda vez que você tentava se equilibrar daquela forma, tropeçava no próprio rabo e caía. O mais interessante é que você não chorava, levantava e tentava de novo. Que criança persistente”, ele discursava nostálgico. Entre suas falas, tossia e fazia pausas longas para respirar.

“E foi quando você me ajudou...”, a filha disse, instando o pai a continuar.

“Ha ha, eu vi que precisava dar um jeito naqueles cabelos rebeldes. Peguei uma fita velha que tinha usado para embrulhar um presente, não lembro agora exatamente para quem; usei minha magia para amarrar a sua cauda e, para minha surpresa, você conseguiu fazer o que estava tentando. E como se não bastasse ficar sobre as duas patas, começou a dançar! Eu fiquei maravilhado, peguei a minha flauta e comecei a tocar, você ia se movendo direitinho no ritmo da música, minha bebê.”

“E meu flanco brilhou...”

“Seu flanquinho brilhou como nunca e, num clarão, lá estava ela, sua Marca. Quantos pais ajudam as filhas a conseguirem suas Marcas? Eu não sei, mas me senti tão orgulhoso”, ele sussurrou, fungou e uma lágrima escorreu por seu rosto. Ele estendeu os cascos em direção à filha, pedindo um abraço que não demorou a ser atendido. Romperam o abraço depois de algum tempo. “Na semana seguinte eu saí e comprei fitas de verdade para amarrar a sua cauda. E você usou as fitas desde então, mesmo sem precisar de verdade, porque os cabelos rebeldes deixaram de rebeldia.”

“Fiquei com elas porque foram um presente seu”, a filha disse com um sorriso nos lábios, apesar dos olhos tristes.

“Então você foi crescendo, e começou a perguntar da mama...”, ele suspirou.

“E você nunca falou dela para mim”, Can-Can retrucou de imediato.

“Eu sempre tive os meus motivos... quer mesmo saber dela?”

A pônei rubra fez que sim com a cabeça.

“Muito bem, mas antes, me ajude aqui”, o pai pediu. A filha o ajudou a virar de lado na cama para tentar encontrar uma posição mais confortável. Turner tinha uma expressão carregada de mágoa no rosto, sua cabeça afundava devagar no travesseiro e ele respirava devagar.

“Conheci a sua mama na Academia de Música de Canterlot. Frostbite era o nome dela, a égua mais bonita que já vi; não diga para Mind que eu disse isso. Enfim, ela praticava canto lírico, sua voz era como a de uma ninfa. Me apaixonei por ela assim que a vi. Dei um jeito de conversar com ela e me apaixonei mais ainda ao conhecê-la, sentia que ficaríamos juntos para sempre. Não lembro ao certo quando começamos a namorar. Mas nem tudo eram flores, nós brigávamos muito, e por motivos bobos às vezes”, ele falou com pesar.

“E como ela era em aparência? E como se vestia?”, Can-Can perguntou ansiosa. O pai tossiu.

“A pelagem dela era branca como neve, seus cabelos eram avermelhados, você parece com ela, mas de uma forma... invertida. Ela vestia alguns dos vestidos mais extravagantes que eu já vi, amava cada um deles, e tinha tantos... os pais dela compravam tudo o que ela pedia. Sempre. Naquela época nós dois não éramos muito mais velhos que você agora. Éramos jovens, e jovens fazem tanta besteira... acontece que ela engravidou”, ele relatou, sempre fazendo pausas, agora as fazia mais para ter certeza do que ia dizer do que para respirar. “Sua mama era uma égua jovem, tinha muitos anos pela frente, nem tinha completado o curso de canto na Academia, ela tinha planos... e ter um potrinho naquele momento iria atrapalhar todos os planos dela.”

A eguinha de cristal ouviu aquilo receosa, não estava gostando do rumo que a história do pai estava tomando. Ele ficava cada vez mais pálido conforme falava sobre a mãe de Can-Can. “O fato é, mein liebe, que ela não queria você”, ele se forçou a dizer. “Brigamos muito, demais mesmo, ela queria tirar nosso filhote.”

Can-Can empalideceu, não queria acreditar naquilo. Como podia? Sua própria mãe não a queria, e pior ainda, não queria carregá-la no ventre.

“Eu insisti, disse que o filhote não era só dela, disse que era meu também. Os pais dela pressionaram para que ela tivesse a criança. Acho que foi o ano mais difícil que já vivi, o da gestação dela. Frosty era cheia de desejos estranhos, nunca estava de bom humor, me humilhava e reclamava de estar enormemente gorda. Dizia que tinha parado a vida dela por um ano inteiro só por um capricho meu, dizia que estaria melhor se nunca tivesse me conhecido e que tudo aquilo era um erro. Mas eu jamais seria capaz de desistir do meu filhote, e quando os exames indicaram que era uma potrinha, eu fiquei tão feliz! Nem sei ao certo por que, afinal, eu queria um filho”, a história de Turner foi interrompida por um ataque de tosse feroz. A filha aflita não podia fazer nada pelo pai além de segurar um casco dele entre os seus e torcer para que a vida não deixasse seu peito junto com o ar. O acesso de tosse teve fim e Turner pôde continuar, “O seu parto foi difícil, durou bem mais que o esperado, acho que você queria muito ficar com ela... uma pena. Bem, você tinha nascido e era a criaturinha mais cheia de vida e adorável que eu já havia visto. E a mais barulhenta também, chorava tanto! Pelo menos desde aquele instante eu sabia que você tinha pulmões melhores que os meus”. Ele riu amargamente.

“E o que houve depois, papa? Por favor”, a pônei de cristal insistiu, precisava saber da história até o final.

“Eu era o pai mais feliz do mundo segurando minha potrinha nos cascos, eu nunca sorri tanto... e fui mostrar você para Frosty. Ela olhou você sem expressão alguma, aproximei você dela, ela afastou você com um casco, disse que aquela era minha filha. Minha filha e só minha! Como ela pôde?! Você tinha acabado de nascer! Como ela pôde fazer isso comigo? E com você!”, a voz do garanhão falhava, ele começou a soluçar, foi como se ele tivesse aberto uma ferida muito profunda. Turner sentia que seu coração podia se partir (de novo) naquele momento. “Eu perguntei se ela não daria um beijo na filha, e ela disse que você não era filha dela, disse que você era apenas o motivo dela ter estrias na barriga e nas coxas, e tetas cheias de leite que dificultavam que ela se movesse. Você estava nos meus cascos, ela olhou nos meus olhos e me disse isso. Ninguém nunca havia me machucado tanto em toda a minha vida! Você não parava de chorar, então ela começou a gritar para que eu fizesse você ficar quieta. Eu não sabia o que fazer, estava devastado, ferido. Uma enfermeira apareceu para sedar a sua mama. Depois que ela dormiu, eu fiquei ninando você, pensando no que faria a partir daquele momento. Pensei que ela poderia mudar de ideia, talvez fosse estresse do parto, eu pensei. Não era. Enfim, naquela época eu tinha brigado com o meu papa também e ele me deserdou. O meu sogro jamais gostou de mim, então não pude apelar para ele. Vim para Germane com o coração partido em mil pedaços, seguia em frente só porque levava você comigo e porque não teria a ajuda de ninguém. O resto, bem, você sabe o que aconteceu...”

Can-Can engoliu em seco, era muita coisa para absorver e lidar. Não tinha uma mãe, afinal. Lágrimas sofridas escorriam pelos olhos da filha e do pai. A pônei rubra pensava em como Turner havia se sentido ao lembrar de todas essas coisas, todas as vezes em que ela fazia uma pergunta a respeito da mãe. O sofrimento fez a jovem perder completamente a vontade de perguntar sobre os avós, ou sobre a vida do pai em Canterlot; ela pôs na cabeça que algumas coisas deveriam ficar enterradas no passado.

Turner contara a história de forma mais vaga do que pretendia. Mas sabia que não poderia detalhar mais; primeiro para não machucar mais a si mesmo, depois para não machucar mais ainda a sua filha.

“Me desculpe, mein liebe, eu me arrependo de tanta coisa...”

“Não diga isso, papa. Você é perfeito, e é o melhor” ela retrucou, abraçando-o com força em seguida. “Eu amo você, de todo o coração. Nunca precisei de mama nenhuma, você fez de tudo por mim, sempre.”

A vida de Turner passava em sua mente repetidas vezes. Ele tinha frio, o abraço da filha nunca havia sido tão bem-vindo. Pensava se tinha feito o certo ao contar para Can-Can a história com Frostbite. Preferia ter poupado a filha desse sofrimento, preferia levar aquela história apenas consigo para o túmulo.

“Tudo poderia ter sido tão diferente, podíamos ter sido uma família”, ele murmurou de forma vaga.

“Somos uma família, papa. Eu e você. Mas além disso nós temos a Fräulein Balance, ela gosta de você, e temos também o Clean, Herr Warden e Dame Flight, todos estão esperando você ficar bom”, Can-Can sussurrou.

Eles estão me esperando morrer, Can-Can, você é a única que espera que eu fique bom, Turner pensou, mas não teve coragem de dizer. Tossiu, dessa vez uma fina linha de sangue escorreu pelos seus lábios. A pônei de cristal limpou a boca do pai com o lençol. Balance entrou no quarto, trazia consigo duas maçãs cortadas numa pequena bandeja de plástico; deixou a bandeja na ponta da cama. “Como ele está?”, ela perguntou em voz baixa. Turner ouviu e respondeu por si mesmo, brincando, “Melhor, impossível”. Quando a égua negra saiu do quarto, ele voltou a falar, “Frosty bem disse que eu ia acabar assim, mal”.

“Para de falar dela, papa. Não é bom para você”, disse Can-Can, apenas não acrescentou que aquilo também a estava machucando muito. Ela se arrependia de ter sido curiosa, já lhe bastava o estado do pai, moribundo, para fazê-la sofrer.

“Você vai sempre se lembrar de mim, não vai?”, ele perguntou. A filha aquiesceu. “Se você precisar de alguma ajuda, qualquer ajuda, peça à Fräulein Balance, está bem? Eu sei que Weather não vai deixar faltar nada para você, mas saiba que pode contar com ela também. A casa e as coisas dentro dela vão ser todas suas, eu bem queria ter uma herança decente para deixar, infelizmente isso não vai acontecer.”

Papa, não diga essas coisas”, implorou Can-Can, com a voz fraca.

“Eu só estou dando avisos, sua boba”, ele brincou e afagou a crina da filha por um instante. “Sabe de uma coisa que eu não me arrependo? Não me arrependo de ter tentado amar você o tanto quanto pude”, a própria frase e o choro leve da filha seriam as últimas coisas que o unicórnio cinzento ouviria em vida; após conversar com Can-Can, ele adormeceu num sono muito tranquilo –sonhava que via sua pequena dançando –, tinha um sorriso contente no rosto. Turner morreu em paz, apesar de tudo; no fundo sabia que sua pequena não ficaria desamparada, ele tinha feito o seu melhor e ela já estava crescida.

O garanhão parou de respirar por volta das quatro da madrugada de uma terça-feira qualquer. Os pôneis na sala perceberam que Turner havia passado dessa para melhor quando o choro da filha se tornou alto e pôde ser ouvido de fora do quarto. Entreolharam-se sem saber o que fazer. Balance estava sentada no sofá, tinha os dois cascos dianteiros sobre a boca. Estava presa em seus pensamentos, faltava-lhe coragem para ir até Can-Can. Weather não aguentou ficar ouvindo a amiga sofrer e precipitou-se para o quarto.

Ao entrar, viu o corpo inerte de Turner, que tinha uma expressão tão pacífica no rosto que parecia até mesmo estar dormindo. Can-Can estava sentada ao lado do leito do pai, tinha as patas dianteiras sobre a cama, escondia o rosto entre elas e chorava. O pégaso se aproximou com cuidado e sentou-se ao lado dela. A eguinha de cristal ergueu a cabeça para olhar o pai, em seguida olhou para o amigo. Balbuciou algo ininteligível enquanto balançava a cabeça negativamente e se recostava para chorar no ombro de Weather, que a abraçou e deu-lhe tapinhas gentis nas costas. Ela soluçava mais e mais, seus pelos estavam quase opacos. Quando o jovem garanhão sugeriu que saíssem dali por um instante para que ela pudesse comer algo, ela negou de imediato; ficaria com o pai quanto tempo fosse possível.

A professora entrou no cômodo não muito tempo depois; reparou nos dois jovens abraçados, deu a volta na cama, prostrou-se do lado oposto ao deles, às costas do flautista deitado. Com um casco, penteou a crina de Turner devagar. Estava melancólica ao encarar o rosto lívido do morto; mas, no fundo, pensava que ele pelo menos não sofreria mais.

Os pais de Weather mantiveram-se na porta do quarto, Dame Flight lacrimejava tanto por ver a eguinha rubra sofrendo quanto pela morte de Turner. Herr Warden mantinha um olhar baixo, num respeito silencioso. Ninguém além de Can-Can falava, ela vez ou outra sussurrava coisas que nenhum dos outros pôneis conseguia entender e voltava a chorar, era digna de pena.

Can-Can chorou até a exaustão. Arfava entre as patas de Weather, que tentava acalmá-la em vão. “Shh... shh... vai passar, vai ficar tudo bem, estamos todos aqui pra você”, ele sussurrava ternamente, massageando as costas da amiga com cuidado.

*** *** ***

O enterro de Turner foi como a maior parte de sua vida adulta: muito modesto. Os preparativos foram feitos para que o garanhão fosse enterrado num cemitério da zona oeste da cidade. O lugar foi escolhido pela mãe de Weather, mas Can-Can fez questão de visitar o local antes do enterro para saber se era bem cuidado. Tudo aconteceu rápido demais, pelo menos para a eguinha rubra que assistia, deprimida, o caixão com o corpo de pai ser baixado na cova.

Para a surpresa de Can-Can, Sticks aparecera junto com o padeiro para demonstrar respeito; a pônei de cristal não esperava que eles fossem atender ao convite. Weather e o pai usavam gravatas borboleta em cor ébano na ocasião, Flight havia vindo com um grande chapéu que possuía um véu escuro para esconder o rosto. Balance não pôde ir, se realmente por trabalho, ou por sofrimento, ninguém sabia. Finesse havia comparecido em nome do Sun para prestar condolências – segundo ele, era um costume da casa –, o unicórnio, como sempre galante e muito bem arrumado, tinha uma expressão resignada no rosto. Alguns outros pôneis que conheceram Turner compareceram ao enterro, entre eles, Cashy, o vendedor ao qual o unicórnio cinzento certa vez deveu quantidades consideráveis de dinheiro.

Can-Can manteve-se calada durante todo o processo, sequer chorou. Comprara um buquê de camélias para colocar em cima do túmulo do pai quando tudo estivesse acabado. Toda vez que a pá do coveiro se movia para jogar terra em cima do caixão do finado, o coração da pônei rubra parecia receber um golpe. Todos os pôneis ficaram em silêncio a maior parte do tempo e mantinham uma distância respeitosa da cova, apenas Can-Can tentava ficar o mais perto possível. Fez preces breves para as princesas pelo pai; pediu que, onde quer que ele estivesse, tivesse muita luz, ou, se isso não fosse possível, para que nunca temesse o escuro. Quando o buraco foi preenchido de terra até a boca, e a lápide foi fincada em seu lugar de direito, a filha deixou o buquê gentilmente sobre o lugar onde Turner dormiria para sempre. Os outros pôneis presentes se aproximaram dela, lhe falaram palavras reconfortantes e deixaram flores sobre o túmulo. Weather deu um adeus silencioso ao pai de Can-Can e prometeu para si que cuidaria da amiga da melhor forma que pudesse quando ela precisasse. Nenhum dos pôneis se demorou demais após a cova ser preenchida. O pégaso turquesa ofereceu-se para acompanhar a amiga de volta para casa, mas ela negou com educação e disse que permaneceria no cemitério por mais algum tempo. A jovem passou as duas horas seguintes observando a lápide que dizia, “Aqui jaz Breathe Turner, amado pai e o melhor dos amigos”.

“Eu amo você, papa”, ela murmurou. Uma leve brisa passou pelo rosto e pela crina de Can-Can, quase como se fizesse um discreto carinho. Quando finalmente teve coragem suficiente para sair do cemitério e deixar seu pai, a eguinha tinha um olhar vazio e sofrível. Trotou para casa automaticamente.

Can-Can nunca achou sua casa muito espaçosa – de fato, não era – mas a falta do pai deixava no ambiente um vazio que ela não era capaz de administrar. Nunca antes se sentira sozinha de verdade ali. Trotou pela sala devagar, abriu a porta do quarto e olhou ali dentro; a cama estava perfeitamente arrumada, Flight ou Balance, Can-Can não sabia ao certo qual das duas, arrumara e limpara o quarto depois que o corpo havia sido removido, e a pônei de cristal não entrara ali desde então. O lugar sequer tinha ainda o cheiro do pai. A jovem sentou-se na ponta da cama e suspirou, seu olhar estava perdido pelo cômodo até reparar numa pequena pasta que estava junto com seus livros e a flauta de Turner na estante. Can-Can foi até a estante, havia um bilhete em cima da pequena pasta amarela que dizia, “Ele deixava isso no chão, ao lado da cama, não achei que seria bom jogar fora”. A escrita era alongada e inclinada, o bilhete tinha sido escrito por Balance. A potra pegou a pasta com a boca e voltou para a cama. Sentou-se e teve uma surpresa ao ver que a pasta continha várias partituras com músicas compostas pelo pai. Turner, para suprir a falta de atividade dos últimos anos, passava alguns de seus dias compondo quando tinha um pouco de disposição. Ele havia feito uma partitura de flauta própria para cada uma das canções d’A Pena e o Lírio, além de sinfonias compostas para serem executadas por orquestras inteiras.

Cold Heart. Equilibrium...”, a filha ia lendo os nomes das músicas do pai, sequer sabia que estas duas tinham sido feitas para sua mãe e para Balance. Enquanto seus olhos curiosos avaliavam a papelada, ela percebia algumas das melodias que o pai costumava tocar nas praças – mesmo que soubesse pouco de ler partituras –, e quando reconhecia uma delas, sorria. Estancou quando pegou entre os cascos uma folha que dizia, “Can-Can”. A música estava inacabada, mas pelo que a jovem dançarina podia ver, era bastante alegre. Can-Can sorriu de leve e abraçou a folha de papel bobamente, seus pelos cintilaram por um segundo. Deitou-se na cama entre as melodias do pai, olhou para o teto e imaginou Turner tocando flauta. Após algum tempo, adormeceu.

Uma ideia se formava tímida na cabeça da pônei de cristal a dormir.


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