De laços e fitas escrita por Literate


Capítulo 7
Capítulo 7




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“Não se preocupe, camarada. Ela vai trabalhar no turno diurno”, Herr Warden disse para Turner, tentando acalmá-lo.

“Existem apresentações durante o dia?”, o garanhão cinzento perguntou.

“Não, Can-Can vai trabalhar na faxina.”

A pônei rubra ficou estupefata, não acreditava no que acabara de ouvir. O fato era que Warden, sendo da segurança do local, não era responsável pela contratação de pessoal, muito menos das dançarinas. No entanto, tinha uma amizade de longa data com o intendente chefe do lugar, que estava precisando de mais pôneis na limpeza, logo, sugerira que a pônei de cristal trabalhasse como faxineira durante o dia. Dificilmente estaria envolvida com as dançarinas, subiria no palco apenas para limpá-lo, não assistiria apresentações, sequer dançaria. Passaria os dias limpando mesas e cantos com vassoura, esponja e panos. E usaria um avental. Turner gostou da ideia, Can-Can quase quis dizer que preferia voltar para as praças sozinha. O unicórnio aprovou a ideia de Warden sem muitos problemas, o pônei terrestre havia garantido que a filha do flautista não teria problemas em andar por lá durante o dia, e que se não estivesse trabalhando lá à noite, as más bocas não falariam dela, além de que o horário de trabalho da pônei rubra permitiria que ela voltasse para casa ainda antes de anoitecer, se ela apressasse um pouco suas passadas.

“Pensando bem, não sei se é uma boa ideia”, interveio Can-Can. Ela recebeu um olhar censurador de Weather.

“Claro que é, mein liebe. Parece uma ótima alternativa”, o pai dela retrucou sem desconfiar da repentina mudança de opinião da filha.

“Podem falar mal de mim por aí”, ela mencionou bobamente.

“Não, ninguém vai falar nada de você, pequena. E a maior parte das coisas ditas sobre as garotas de lá é mentira”, Herr Warden explanou com calma. “A maior parte das histórias que todo mundo ouve é pura maldade. As dançarinas do Sun não são esse tipo de égua, quer dizer... pelo menos a grande maioria delas não.”

Can-Can suspirou, sem forças, e assentiu. Weather saiu do quarto devagar, fez sinal com um casco para que a pônei de cristal o seguisse. Ela deixou os dois garanhões continuarem a conversa e foi atrás do amigo. O pégaso estava pensativo, próximo ao fogão. Quando ela se aproximou, ele virou-se e perguntou, “O que foi?”

“Hum? Não sei o que quer dizer”, ela balbuciou.

“Você queria dar uma chance ao trabalho. Agora mudou de ideia?”

“Eu... não pensei que trabalharia na faxina.”

“Quer dizer que não quer o emprego lá por que não é o que você queria? Percebe o que está dizendo? Isso não é só sobre você, é sobre Herr Turner também. Você diz que passa os dias preocupada em como fazer para manter a casa e cuidar do seu pai, e quando uma oportunidade aparece, você vai desistir?”

Can-Can olhava para os próprios tornozelos dianteiros enquanto o amigo a repreendia. Não tinha coragem de encará-lo, pois sabia que ele estava certo. Sentiu-se envergonhada. Havia começado a pensar somente em si mesma no momento em que ouvira a palavra faxina.

“Você sabia que o trabalho era esse?”, ela perguntou, ainda sem olhar o amigo.

“Na verdade, não. Eu sabia que ele não pode contratar dançarinas, aliás, não pode contratar ninguém, mas tinha alguma esperança de que ele pudesse indicar você pra dançar. Mas parece que não é assim que funciona”, Weather respondeu, dando de ombros. “Veja pelo lado bom, você vai ficar sexy usando avental!”

Can-Can não riu. Olhou azeda para o amigo. Geralmente, o modo dele de ver as coisas a animava, mas aquela havia sido uma brincadeira infeliz. Bufou frustrada. Precisava aceitar logo a situação na qual havia se metido; e ainda que fosse um emprego que não lhe aprazia, Can-Can pensava que pelo menos não teria pôneis estranhos a ameaçando. Pensar no rosto do pônei esquálido umedecendo os lábios com a língua enquanto a olhava ainda a fazia ter calafrios.

“Eu posso ir buscar você no trabalho de vez em quando”, o pégaso sugeriu. Foi quase como se tivesse lido os pensamentos da amiga.

“Promete?”, a palavra escapou da boca da pônei rubra. Weather aquiesceu com um sorriso solidário. Can-Can sorriu aliviada, encarou o amigo, deu-lhe um beijo na face e disse, “Às vezes você é mesmo um doce”. O pégaso ficou surpreso com a singela demonstração de carinho da amiga por um instante, depois colocou um meio sorriso malicioso nos lábios, ergueu uma sobrancelha e aproximou o rosto do dela. Os focinhos dos dois somente não se encontraram porque um casco de cristal se interpôs entre eles.

Can-Can afastou o potro com respeito, mas de forma determinada. Disse, “Por que você gosta de estragar nossos momentos?”

“Quem estraga os nossos momentos é você, não deixando eles acontecerem”, Weather respondeu com um revirar de olhos e um sorriso. Abusado, Can-Can pensou.

“Pare de se insinuar para mim, não vai dar certo”, ela afirmou secamente. “Somos amigos.”

“Se eu estivesse ouvindo essas palavras de qualquer outra pônei, estaria arrasado agora”, ele brincou. Os dois jovens continuaram a conversar – desta vez animadamente, falando sobre potras que Weather conhecia, ou que conhecera durante a época em que fingiam estar namorando – enquanto os pais debatiam no quarto.

Após algum tempo, Herr Warden veio para a sala e anunciou, “Can-Can, vou levar você para o trabalho amanhã de manhã, quanto mais cedo começar, melhor”. A potra rubra concordou em silêncio.

*** *** ***

Can-Can acordou muito cedo na manhã seguinte, o sol ainda não nascera. Tomou um banho rápido e preparou-se fisica e mentalmente. Herr Warden apareceria a qualquer momento para levá-la ao trabalho. Entrou no quarto, agora do pai, e ficou observando o sono do garanhão, o peito dele subia e descia devagar, numa respiração muito leve. Turner tinha um rosto pálido, mas pacífico. Parecia estar tendo um sonho bom, pois um pequeno sorriso dançava em seus lábios e, vez ou outra, o unicórnio murmurava palavras doces. Can-Can aproximou-se do pai, passou um casco sobre a testa dele e beijou-a. O garanhão estremeceu e abriu os olhos, piscou até que sua visão se acostumasse com o ambiente ao seu redor.

“Filha, já vai sair?”

“Estou esperando Herr Warden chegar, mas achei bom avisar você antes de ir”, ela sussurrou com carinho e fez mais um afago no rosto do pai. Turner tomou o casco da filha com um próprio e beijou-o ternamente.

“Tome cuidado. E não fique fora até anoitecer, por favor”, ele pediu.

“Eu nunca faço isso, papa.

“Eu sei, eu sei. Apenas... preciso dizer, sabe?”

Can-Can assentiu com um risinho e disse, “Amo você, papa. Volte a descansar, está bem? Até mais”, e voltou para a sala. Turner logo voltava ao seu sono, estava fraco demais até para ficar preocupado. Muitas vezes passava a maior parte do dia dormindo.

A jovem pônei de cristal colocou seu fiel cachecol no pescoço, comeu dois pães – que haviam sido deixados por Fräulein Balance em uma de suas visitas esporádicas ao flautista – e esperou pacientemente; no fundo não estava nem um pouco ansiosa para começar a trabalhar. Quando ouviu uma batida na porta, suspirou e saiu. O pai de Weather tinha olheiras profundas de cansaço, trabalhara muito na noite anterior, e acordar tão cedo para levar Can-Can até o cabaré o fazia parecer um zumbi.

Trotaram lado-a-lado em silêncio. Warden não tinha humor para puxar conversa logo de manhã. As passadas longas do pônei terrestre faziam com que a potra tivesse de acelerar o passo para acompanhá-lo na maior parte do tempo. Ele só pensava em voltar para casa o mais rápido possível. Can-Can desejava que Weather tivesse vindo junto com o pai. O sol aparecera no horizonte e continuava a subir lentamente; os pôneis de Germane começavam a lotar as calçadas. No caminho, passaram pela praça do artista e pela rua da padaria, a potra lançou um olhar rápido para dentro do estabelecimento, mas não conseguiu ver Sticks; perguntou-se o que a potra castanha estaria fazendo, não a via há muito tempo. Tinham se encontrado poucas vezes depois do dia na cafeteria, Can-Can ainda gostava de estar perto da amiga, mas às vezes sentia-se desconfortável.

A caminhada prosseguiu e a potra rubra deixou de pensar em Sticks.

Ao chegar em seu destino, Can-Can mal pôde acreditar no que estava vendo. Numa esquina movimentada da zona norte da cidade estendia-se, majestoso, um palacete. Por fora via-se dois andares, janelas com sinuosos detalhamentos florais, todas as luzes dentro do lugar ainda estavam acesas, cantos ornados em dourado, paredes em tons suaves de amarelo, uma alta cerca de metal fino e trabalhado em formatos de flores e animais diversos protegia a propriedade. O garanhão guiou Can-Can até o portão principal e entraram após uma rápida troca de palavras com o porteiro. Dentro do terreno, atravessaram um grande jardim, muito bem cuidado, composto por arbustos de flores noturnas e pequenas árvores ornamentais, além de bancos de pedra e algumas estátuas pomposas milimetricamente distribuídos para criar um ambiente externo extravagante. Trotaram por uma passagem de mármore até a grande escadaria que subia para o cabaré.

Na fachada do palacete, uma grande placa de metal dourado de gosto duvidoso anunciava o nome The Great Sun seguido de uma representação fiel, porém pouco respeitosa, das ancas e da Marca da Princesa Celestia. Can-Can, meio constrangida, observou o Sol por alguns instantes. Warden bateu nas grandes portas duplas – de madeira clara e trabalhada com a mesma imagem da placa – que foram abertas não muito tempo depois por um pônei velho, sua pelagem era branca e aparentava ser lavada com esmero, a crina de cabelos grisalhos era perfeitamente escovada. Ele usava um fino terno negro sobre o corpo.

Entraram numa antessala luxuosa, o Sun era mais belo ainda por dentro, as paredes eram cobertas por papéis caros com imagens diversas, todas as janelas tinham cortinas de seda carmesim. Móveis de mogno, tapeçarias finas, vasos caros davam ao local uma aura de riqueza a qual Can-Can não estava acostumada, tudo parecia muito bonito e chique para a potra rubra.

“O Sun era antigamente a casa de um duque, foi comprado por Herr Grandiose há alguns anos e funciona como cabaré desde então, recebemos os pôneis mais ricos e influentes da cidade todas as noites. Também hospedamos, de vez em quando, algumas atrações estrangeiras; atrizes, cantoras, comediantes, que ficam morando no andar de cima por algum tempo”, o pônei velho falou para Can-Can, sua voz era profunda e quase musical. “Eu sou o intendente chefe, Finesse, responsável pelo pessoal.”

A potra rubra olhava para o pônei marfim com certa admiração, tudo nele denotava refinamento e elegância. Herr Warden chamou Can-Can, disse que já estava de saída, aconselhou-a a ouvir com atenção tudo o que o intendente diria, despediu-se dos dois pôneis e saiu pela porta da frente. Com um suspiro, Finesse olhou a pônei de cristal de cima a baixo e disse calmamente, “Siga-me”. A sala em que se encontravam possuía quatro saídas. Opostas às portas duplas que davam entrada ao edifício, havia outro par de portas duplas igualmente trabalhadas que levavam ao salão principal, segundo o intendente chefe. À esquerda havia a porta simples que levava à área dos funcionários, com os escritórios administrativos, a despensa e o refeitório. A porta à direita levava para outro corredor lateral que margeava o salão principal mas ia para os camarins, e dava acesso à escada para o segundo andar do cabaré, onde ficavam os quartos de hóspedes, além dos quartos de algumas poucas dançarinas que, além de trabalhar, viviam ali. Can-Can acompanhava Finesse de perto enquanto trotavam pelo corredor após terem passado pela porta da esquerda.

“Atrás desta porta fica a administração, é onde os funcionários vêm para receberem seus salários, é também onde se faz a contabilidade da casa. Ali fica o refeitório, o almoço é servido às onze e meia, e termina ao meio-dia, não se atrase. Aquela porta ao final do corredor é o vestiário dos funcionários, cada um tem seu próprio armário; há também os chuveiros”, o intendente dizia e sinalizava conforme passavam pelas portas. “Aqui é a despensa. Deve vir aqui para fazer a reposição de materiais de faxina, se necessário. A próxima porta é a sala dos funcionários da limpeza.”

Entraram na sala dos faxineiros, uma pequena sala quadricular com um sofá encostado na parede esquerda, uma porta ao fundo da sala levava ao armário dos materiais de trabalho, havia uma mesa no canto inferior direito com uma garrafa térmica e copos descartáveis para o café, no canto superior direito do recinto estava uma mesa retangular onde uma pônei cansada olhava distraída para um calendário. “Aquela é a faxineira chefe, Banish Mess. Obedeça-a sempre”, Finesse disse. “Se precisar de ajuda ou tiver dúvidas que Fräulein Mess não possa sanar, me procure, mas seja sempre discreta e em hipótese alguma perturbe nossas dançarinas, ou qualquer um dos clientes que puder vir a encontrar por aqui durante o dia. Lembre-se, os pôneis que frequentam nossa casa são influentes e muito importantes, não podemos fazer nenhum tipo de desfeita para nenhum deles.”

Can-Can assentiu, viu Finesse partir e voltou-se para observar a pônei unicórnio que era sua chefe: uma égua verde lima, com crina e cauda marrons presas em coques, usava um uniforme de empregada francesa branco com babados pretos. Can-Can trotou até a mesa e esperou em silêncio.

Mess suspirou e olhou a potra rubra como se a avaliasse. “Bom dia”, a chefe disse gentilmente, passando um formulário e uma caneta por cima da mesa para Can-Can. “Essa é a papelada de contratação, você preenche e mais tarde leva na administração, por favor. Me disseram que você só vai trabalhar no turno do dia. É o seguinte, pagamos sessenta e cinco bits por semana, você trabalha também aos sábados, não temos feriados, o Sun só para de funcionar se um meteoro cair em cima dele, o horário de trabalho começa às sete e meia e termina às quatro e meia, está bem?”

“Certo”, Can-Can respondeu. Pegou a caneta com a boca e preencheu o formulário. Quando a potra rubra terminou com os papéis, Mess a guiou até o armário de vassouras, onde Can-Can foi equipada com alforjes cheios de pequenos tubos de produtos de limpeza variados, uma flanela, e um espanador. A chefe ajudou a pônei de cristal a vestir um avental simples e fez coques na crina e na cauda da mais nova faxineira da casa.

“Muito bem, vamos para o salão principal, você começa lá”, Mess informou depois de avaliar mais uma vez a potra para se certificar de que tudo estava no lugar. Trotaram pelo corredor indo de volta ao hall de entrada, e agora que Can-Can observava discretamente o uniforme da chefe mais de perto, ficou com a impressão de que ele era quase obsceno de tão apertado; parecia aumentar as curvas da égua.

Fräulein? Por que esse uniforme?”, a potra perguntou, curiosa.

“Eu trabalhei no turno da noite de ontem e madruguei. Usamos esses uniformes à noite porque os clientes gostam. A coisa que mais quero agora é deixar alguém responsável pela limpeza e ir para casa dormir”, ela explicou cansada. Chegaram ao salão principal alguns instantes depois. Ao abrirem as portas, revelando a grandiosidade do lugar, Can-Can mais uma vez ficou surpresa. O grande salão retangular seguia por muitos metros, várias pequenas mesas quadradas eram distribuídas em série por sua extensão. No teto abobadado, grandes lustres de cristal pendiam imponentes. Ao final do salão, o grande palco assoalhado era convidativo; as enormes cortinas vermelhas que o encerravam eram feitas do tecido mais fino. À esquerda, ficava o grande balcão do bar, margeado por banquinhos com assentos acolchoados; passando o balcão, as grandes prateleiras de madeira exibiam garrafas de bebidas caras de todos os tipos e tamanhos. Can-Can afastou-se de Mess e foi em direção ao palco, chegando mais perto, observou que havia abaixo dele uma concavidade que era acessível por pequenas escadas laterais e abrigava cadeiras, cavaletes e instrumentos musicais. A orquestra tocava embaixo, as dançarinas faziam o show em cima. A pônei de cristal estava maravilhada, o palco do Sun não devia nada ao do Grand Theatre. A chefe da faxina chamou a atenção de Can-Can, apresentou-lhe alguns dos outros pôneis da limpeza – que a potra rubra não havia notado estarem distribuídos pelo lugar até aquele momento – e começou a dar-lhes tarefas. A jovem faxineira ficou encarregada de limpar mesas, num processo maquinal de tirar e sacudir a toalha de mesa, passar a flanela com um produto limpador sobre a superfície lisa de madeira, dobrar a toalha e levá-la para um amontoado no canto do salão, de onde mais tarde os panos de todas as mesas seriam levados por algum unicórnio para a lavanderia; então Can-Can devia ir à despensa, pegar toalhas novas e colocá-las em cima das mesas. No início, o trabalho não pareceu custoso, mas era chato; na verdade dera sorte, os convidados da casa não haviam derramado tanto vinho nas mesas e no chão como costumavam, os dias seguintes na limpeza não seriam tão fáceis quanto o primeiro. Por volta do meio-dia, depois de ter almoçado no refeitório um prato de comida generoso, a pônei rubra terminou com as mesas. O pônei que ficara encarregado de coordenar a faxina para que Mess pudesse ir para casa ordenou que Can-Can ajudasse com o chão e deu a ela uma vassoura. Somente três pôneis trabalhavam no salão principal, o resto estava encarregado dos corredores e demais salas do Sun. De repente, um grupo de cerca de trinta pôneis entrou no salão pela porta da frente, eram guiados por um garanhão maduro, de pelagem acobreada e cabelos castanho-escuros. Trotaram orgulhosos para o palco, desceram pelas escadas laterais e tomaram seus lugares no buraco da orquestra. Can-Can ouviu os colegas cochicharem sobre os músicos que geralmente ensaiavam àquela hora – o maestro Often Bass era quem os guiava; em poucos minutos, os sons de instrumentos sendo afinados foram ouvidos pelo salão, em breve começariam o ensaio para as apresentações da noite.

Por volta das três horas, o salão principal brilhava, pronto para mais uma noite de shows e festa. Os músicos tinham feito o ensaio e partido. Can-Can tinha o pescoço doendo por segurar a vassoura com a boca ao varrer, não nascera para aquele tipo de trabalho; mas era seguro e honesto, e enquanto pudesse sustentar a si mesma e ao pai, não reclamaria. Trotou com os colegas exaustos para a sala dos faxineiros e deixaram o material no armário de vassouras. A pônei de cristal recuperou suas fitas – que tinham sido retiradas por Mess na hora de montar o coque. Acompanhou os pôneis até o vestiário por curiosidade, não tinha nada para guardar no próprio armário, tinha consigo apenas as fitas. Observou que o vestiário era dividido em duas áreas, a entrada à esquerda para garanhões, a da direita para éguas. Can-Can entrou pela direita e observou algumas das outras funcionárias mexendo em seus armários, buscando roupas simples ou alforjes dentro deles; algumas se dirigiam para os chuveiros. A potra rubra cheirou os ombros rapidamente, estava suada e com um odor não muito agradável no corpo, decidiu que tomaria um banho assim que se certificasse de que não havia mais ninguém nos chuveiros. Sentou-se num banco do vestiário e esperou pacientemente. Duas éguas passaram por Can-Can, conversavam animadas, uma delas chamou a atenção da outra para a jovem sentada.

“Ei, vai ficar sentada aí até anoitecer?”, uma delas perguntou.

“Oh, não. Eu estou esperando um momento em que possa ficar mais à vontade, não quero me lavar na frente de ninguém”, Can-Can respondeu sem jeito.

“Bobagem, eu também era assim quando comecei a trabalhar aqui, não tem problema, você se acostuma”, a égua disse revirando os olhos. Puxou Can-Can do banco, levou-a até a porta que ia para os chuveiros; a potra rubra mal teve tempo de deixar suas fitas no armário.

A pônei de cristal entrou no banheiro envergonhada, vários chuveiros eram dispostos em série pela parede azulejada. Éguas banhavam-se para onde quer que a jovem olhasse; algumas até escovavam as costas uma da outra. Era estranho que um momento tão íntimo como banhar-se estivesse sendo compartilhado daquela forma. Can-Can enfiou-se debaixo de um chuveiro e começou a limpar-se o mais rápido que podia. Não estava confortável por dois motivos básicos: primeiro estava envergonhada por outras pôneis a olharem durante o banho, e depois porque olhar outras pôneis tomando banho fez com que ela sentisse um tipo estranho de calor lhe percorrer o corpo em áreas sensíveis – pasme! Can-Can escapuliu de volta para o vestiário assim que julgou que estava limpa o suficiente, enxugou-se rapidamente com uma das toalhas que ficavam disponíveis próximas da porta, para as funcionárias. Pegou suas fitas e saiu para o corredor, quase trombou com Finesse ao sair.

“Desculpe, Herr intendente, mil perdões. Estou de saída”, disse esbaforida e trotou pelo corredor em direção ao hall de entrada.

“Espere, jovem. Você deve ir pelo outro lado. Ao final do corredor, vire à esquerda, a última porta é a que deve ser usada para entrada e saída dos funcionários, não use mais o portão principal”, ele ordenou, sem alterar a voz. A jovem deu meia volta e seguiu para o outro lado do corredor, despediu-se de novo de Finesse e partiu. O garanhão observou-a com uma sobrancelha levantada em estranhamento.

Can-Can atravessou nervosa a porta, o pátio lateral do palacete e o pequeno jardim que margeava o terreno até o pequeno portão dos empregados. Trocou palavras rápidas com o porteiro e saiu para a rua. Deu a volta na propriedade pelo lado de fora. Wether estava prostrado na esquina da entrada principal, tentando conversar com o porteiro que tinha uma expressão entediada no rosto. Ao ver a amiga, o pégaso turquesa deixou o pônei no portão e foi até ela.

“Can-Can, como foi o grande primeiro dia? Espero que não tenha se cansado demais”, ele bradou contente.

“Ah, claro. Tudo correu bem, vamos”, ela respondeu de imediato, estava muito envergonhada. Weather não entendeu, mas não demorou a acompanhá-la. Trotaram juntos e em silêncio por boa parte do caminho. O pégaso chegou a perguntar algumas vezes para a amiga se algo estava errado e Can-Can apenas sussurrava respostas vagas. Chegaram à casa da pônei de cristal antes do pôr do sol, tiveram uma surpresa ao ver que Fräulein Balance estava lá – tinha vindo fazer o jantar para Turner. Weather despediu-se da amiga e se foi, ainda apreensivo por causa do comportamento estranho dela.

Can-Can avisou ao pai que já havia chegado e disse que ajudaria a professora com o jantar. Na realidade, ficou sentada no sofá olhando a égua negra mexer em várias panelas no fogão. Queria fazer perguntas, mas não sabia como começar. Movia suas patas traseiras no sofá com nervosismo.

Fräulein?”

“Sim, Can-Can?”, a égua retrucou sem tirar os olhos das panelas.

“Hoje eu senti uma coisa... diferente”, disse a potra rubra, insegura. Balance murmurou para que a jovem continuasse. “Não é como se eu já não tivesse sentido isso antes, como uma atração por outro pônei, mas dessa vez... já sentiu como se suas pernas ficassem fracas, e... e entre elas... sabe?”

Balance baixou o fogo das panelas e virou-se para olhar Can-Can solidariamente. A égua suspirou, olhou para cima como se ponderasse algo, então aproximou-se da pônei de cristal e sentou ao lado dela no sofá. A pégaso colocou um casco sobre a boca, como costumava fazer quando pensava. Após algum tempo, disse, “Você está com quantos anos mesmo, Can-Can?”

“Quinze.”

Balance ponderou mais um pouco e sussurrou, mais para si mesma que para Can-Can, “Está mais ou menos na idade mesmo”. A égua negra olhou para a pônei de cristal e perguntou, “Seu papa não falou com você sobre... amadurecer, falou?”

“O que quer dizer, Fräulein?”

“É claro que ele não falou”, Balance desdenhou, revirando os olhos. Com um pigarro explicou, “Bem, Can-Can, eu sei pelo que você está passando. Turner já devia ter falado com você sobre isso. Você está começando a entrar no seu primeiro ciclo”.

“E isso quer dizer quê?”

“Quer dizer que você está se tornando uma eguinha, e como toda égua, você vai passar por um período de... calor, que acontece esporadicamente”, a professora explicou. Acreditava que aquele tipo de conversa deveria acontecer entre mães e filhas, mas considerando a situação da potra rubra – incluindo o pai negligente –, Balance sentiu que era seu dever.

“Então eu vou sentir aquilo de novo?”

“Sim. E como você está entrando no seu primeiro ciclo, deve ficar mais forte nos próximos dias, mas não se desespere, não há vergonha nenhuma nisso e você vai aprender a lidar com os calores, todas nós passamos por isso, o primeiro é sempre o pior”, Balance disse, tentando apaziguar Can-Can. Depois explicou todos os pormenores relativos ao cio das éguas que a pônei de cristal deveria conhecer, tais como: a possibilidade da gravidez, o comportamento instintivo da cauda, os garanhões que ficariam pouco (ou demais) à vontade ao seu redor por causa do cheiro dela, a duração dos períodos, a vontade, etc.

A pônei de cristal absorvia tudo apreensiva, crescer era estranho, agora além de cuidar da casa e do pai, teria de cuidar do próprio corpo com maior afinco. Por bom senso Can-Can preferiu não perguntar à professora se havia formas de aliviar as coisas que começaria a sentir; melhor assim, pois apesar de ter falado sobre os ciclos, sobre o sexo e sobre gravidez com naturalidade, Balance iria se sentir desconfortável falando sobre masturbação; e isso a eguinha rubra viria a descobrir sozinha.


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