A Marca da Manticora escrita por Lord Iraferre


Capítulo 2
A Caçada na Sombra




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Josh era um jovem baixo, de cabelos castanhos e bagunçados, que carregava sempre no rosto um largo sorriso e uma barba por fazer. Uma pessoa aparentemente comum, vinda das longínquas terras do extremo leste. Mas o que poucos sabiam, é que ele tinha várias habilidades especiais que herdara de seu povo. Um dos seus talentos mais versáteis e interessantes, era a arte de imitar sons de animais. Ele conseguia imitar mais de trezentas espécies, e metade delas ou ele nunca tinha visto, ou não existiam.
No entanto, sentia-se ridículo no momento, segurando dois atiçadores de aço, em brasa e uma pedra-relâmpago na cabeça, enquanto seguia em direção à clareira gritando feito um idiota, tentando imitar o que deveria ser o som assustador de uma mantícora, mais que em sua opinião parecia mais uma quimera com dor de barriga. Essa não era nem a primeira e nem seria a última vez que seu amigo o faria passar vergonha. “O que o homem não faz para sobreviver?” indagou a si mesmo com ironia.
Ao adentrar na clareira, Brendan não suportou mais o drama e desatou a gargalhar.
— Deu certo? — perguntou Josh, indeciso entre a vontade de bater no amigo ou se juntar a chacota.
— Se deu certo? — zombou Brendan numa convulsão de riso. — Do jeito que eles estão assustados, vão continuar correndo pelos próximos séculos.
Josh suspirou aliviado, arrancando a pedra-relâmpago do pescoço e lançando-a na fogueira, faíscas saltaram das chamas fazendo o jogo de sombras ao redor tremular.
— Essa pedra custou cinco peças, e eu tive que tirar do meu dinheiro... Juntando com o coelho já são 10! É melhor essa missão compensar, porque estamos gastando mais do que temos. Quer parar de rir? Ainda não sei “porque”, preferiu essa abordagem, acredito que tê-los atacados de forma direta teria sido muito mais rápido, e não teria gastado dinheiro.
— Até parece que você não me conhece Josh, eu sempre escolho o jeito mais difícil — Brendan sorriu verdadeiramente pela primeira vez aquela noite. — Eu já vou te explicar tudo, só que antes você precisa cortar as cordas.
Josh, pegou o facão caído no chão e soltou às amarras que prendiam Brendan a coluna. Enquanto se livrava dos restos das cordas, Brendan disse:
— Caso não tenha entendido, eu não podia atacá-los de forma direta, porque eu não sabia nem quantos, nem quem eles eram — ele acariciou os sulcos que se formaram em seu pulso, distraidamente. — Agora eu sei que eles são simples desertores das forças de Morgan Truthman.
— E essa informação valeu a surra? — perguntou Josh se aproximando da fogueira e pegando um pedaço do coelho assado.
— Eu acho que sim. — disse Brendan pegando uma coxa, lambuzando os dedos de gordura. — Por exemplo, agora podemos comer um coelho assado na brasa... hmm, umm... Realmente esse tal de Trasgo cozinha bem.
— Não devemos ir atrás deles antes que eles fujam? — perguntou Josh, de boca cheia.
— Não antes de eu comer alguma coisa — Brendan pegou outra nesga de carne, ele começou a vasculhar os alforjes até encontrar um punhadinho de moedas. — Eles fugiram para o leste, e qualquer um da região sabe que se seguir nesta direção vai dar de cara com um abismo enorme. Trouxe os cavalos?
— Bem, sobre isso temos que conversar... — disse Josh coçando a nuca desconfortável.
Neste momento, três cavalos adentraram a clareira, mais Brendan com incredulidade olhou diretamente para a mulher que estava sobre o cavalo que encabeçava a fila.
A moça tinha pouco mais de um metro e meio, e parecia ter uns dezesseis anos de idade, mais Brendan sabia que ela era muito mais velha do que isso. Seus olhos castanhos esverdeado eram oblíquos e alertas, seu corpo era esguio e atlético e suas roupas estavam revestidas de folhas e cascas de árvore, que combinavam com a pele de um verde azeitonado.
Ela era muito bonita e exótica, porem Brendan sabia o risco que sua presença representava.
Brendan se virou para Josh:
— O que significa isso?
— Ela veio ajudar... Eu acho. — tentou se explicar o amigo.
— Josh, ela não é só uma chiwita — disse Brendan, sem medo de ser ouvido, pois a mulher não entendia seu idioma. — como também é uma dríade, ou seja um membro da irmandade das Manticoras. Até o seu próprio povo odeiam as dríades, ou você já esqueceu do tratamento que recebemos ao entrar na aldeia? — Brendan lançou um olhar duro para a dríade.
— Teak tu namem (Então, tudo pronto)? — disse a dríade, sua voz aveludada soando pouco mais alto do que um sussurro, um equilíbrio perfeito de desafio e serenidade.
— Diga a ela que vai ficar, não podemos arriscar levá-la... E colocar tudo a perder. — disse Brendan em tom rude.
— Quase. — disse Josh respondendo a pergunta da dríade, ele diferente de Brendan, sabia falar a língua chiwita.
— Josh, ela não pode ir conosco...
— Porque ele está tão irritado? — disse a dríade, com sua voz de sopro de vento.
— Acho que ele teme pela sua segurança. — Josh deu um sorriso sem graça para Brendan, que não entendia patavina do que era dito.
— Diga para ele não se preocupar. — disse a dríade dando um tapinha no arco longo e nodoso que carregava, que encobria parte da enorme tatuagem de mantícora que tomava toda a sua costa. — Eu sei me cuidar.
— Ela disse que vai conosco não importa o que você diga, Brendan — disse Josh lançando um olhar suplicante para seu amigo. — Ela só quer ajudar.
Brendan virou de costas irritado, depois suspirou dizendo:
— Tudo bem, mas diga a ela que eu não quero ninguém ferido, os militares não pagam por homens mortos — seus olhos se encontraram com os da dríade, concentrados.
— Ele disse que não é para matar nenhum deles, é o nosso “ganha pão” e ele não está afim de passar fome — disse Josh para a moça. — Alem do mais ele disse que lhe dará um beijo antes disso terminar.
— Diga a ele para não se preocupar, porque estou na vizeesna... E quanto ao beijo irei cobrar — ela lançou um sorriso esperto para Brendan, enquanto descia do cavalo com agilidade e ajeitava seu arco.
— O que ela disse? — perguntou Brendan desconfiando do amigo.
— Que não vai matar, porque está em sua semana de purificação, como é costume dos chiwitas. — respondeu o amigo enquanto todos se voltavam para a selva.
— Tem certeza que ela só disse isso? — perguntou Brendan.
— Está duvidando de mim? — falou Josh em um falso tom ofendido.
— Josh, desconfio até da minha sombra, quanto mais de você, que é um tremendo malandro — disse Brendan tirando as botas, e revelando seus pés calejados e experientes. — Bem, sem mais delongas, é a hora da caçada.
***
A floresta sussurrante, escondia o som dos velozes passos do trio, que com pericia venciam a distância de seus inimigos, pois conheciam a mata mais do que a si próprios.
Á pouco mais de um quilômetro da fogueira, Trasgo corria capengando, como se já estivesse abatido. Sua altura não era compatível com a dos galhos e gravetos no caminho e a gordura extra em sua barriga não ajudava nem um pouco.
Arfando pesadamente ele se recostou em um tronco cheio de musgo, cansado demais para notar que seus perseguidores já o haviam encurralado. Sua bochecha se esfregava na
madeira, como se quisesse se fundir a ela, o odor da natureza lhe deixando ainda mais zonzo.
Brendan surgiu correndo como um raio.
Aproveitando-se do elemento surpresa, correndo o mais rápido possível, achatou Trasgo na árvore como se o homem não passasse de uma uva gigante.
Desnorteado o gigante caiu de costas para o chão, em um último esforço apertou o gatilho da pistola cujo projétil passou a centímetros da cabeça de Brendan. Cansado demais para recarregar a arma seu braço aterrissou na relva fofa sem força. Brendan aproveitou a oportunidade para afastar a arma, e amarrar os braços do homem. Enquanto o fazia disse o mais claramente possível:
— Se tentar bancar o esperto eu terei que te machucar de verdade, então colabore não resistindo, ok?
Trasgo ainda zonzo da pancada e da corrida, não teve tempo nem para saber o que estava ocorrendo quando foi apagado por uma pancada na cabeça.
— Certo — começou Josh irritado, enquanto trazia um dos cavalos para perto do corpo inerte no chão. — Devia ter apagado ele depois de obrigá-lo a subir no cavalo, gênio.
— Larga a mão de ser mole, e me ajuda. — disse Brendan, concordando com o amigo por dentro, mais o orgulho e o peso de Trasgo o impediram de dizer isso.
Após um longo minuto de esforço continuo, eles conseguiram arrumar o corpo sobre a garupa. A dríade, zombou deles diante da cena cômica.
— Agora só faltam três — disse Josh afastando o cabelo da testa, como se não estivesse muito afim de prosseguir. — E para variar eu imobilizo o próximo, para evitar certas peculiaridades. — ele apontou para o buraco de tiro na árvore.
***
Elmir fora bem mais longe que Trasgo, estava perto do precipício quando, olhou para trás e viu Josh correndo em sua direção, como um gamo fugindo de um leão. A distração fez com que Elmir tropeçasse em uma raiz e caísse no chão.
— Ele é todo meu. — se gabou Josh, lançando-se sobre o rapaz caído.
Inesperadamente, Elmir, se esquivou do ataque rolando por entre as folhas. Com um salto se levantou, pronto para contra atacar.
— Quem é você? — perguntou olhando confuso para Josh.
— OOoooaaaahhh! — respondeu Josh, fazendo o som da mantícora e dando um largo sorriso de satisfação.
— Então tudo não passou de um truque. — disse surpreso, partindo em seguida para o ataque sem esperar por uma resposta. — Eu não tenho medo de você.
Josh desviou de alguns socos sem dificuldade, a noite dificultava a visão de Elmir, e embora ele fosse rápido, não tinha nenhuma habilidade. Josh se afastou o suficiente para dizer:
— Não devia se preocupar comigo, mais com aquilo que está atrás de você.
— Eu não vou cair em truque nenhum dessa vez. — Elmir se preparou para mais uma rodada de luta no escuro, quando um braço esguio e magro passou ao redor de seu pescoço.
Era delicado porém tinha um aperto de aço, como se fosse uma cobra e não o braço de uma mulher. Não demorou muito para que Elmir perdesse a cor do rosto.
— Chega, chega, chega!! — disse Brendan afastando, a dríade do corpo frouxo do garoto.
A dríade mostrou os dentes para Brendan, em uma atitude feroz, e disse para Josh:
— Os outros não estão muito longe... Posso sentir o fedor do suor e do medo deles.
E semelhante a um gato selvagem entrou na mata alta novamente, sem esperar a reação deles.
— Rápido, Josh! Temos que alcançar os alvos, antes que ela faça alguma idiotice.
***
Há alguns minutos Wallen havia mudado de rumo, virando mais para o Sul, pois lembrava que a estrada ficava para lá.
Pensava nas formas mais mirabolantes de sair daquela situação, quando, algo passou por suas pernas, fazendo-o sair do solo por alguns segundos, e estatelar-se vários metros à frente. Respirando profundamente tentou se levantar, mas um corpo esguio subiu sobre ele prensando-o contra o chão.
Ele então viu uma fria luz, refletindo o luar, e o barulho seco de aço se libertando do couro. A lâmina se ergueu, mais Voslo surgindo do nada, atacou a dríade com um chute nas costas, jogando-a para longe.
Voslo também tinha uma adaga, algo tosco e desgastado feito apenas para furar e cortar, seus olhos de falcão estavam arregalados, mais estava pronto para lutar pela vida de qualquer um de seus parceiros.
A dríade avançou em sua direção com ferocidade, mais diferente dos outros, Voslo era lobo velho, e era experiente em combate corpo a corpo. Ele girou para o lado, e enquanto a mulher felina passava, ele tentou agarrar qualquer parte de seu corpo, mais só pegou o vento em suas mãos.
A faca sutil, abriu um corte em seu braço e sem que ele percebesse soltou um grunhido de dor. E enquanto se afastava ferido ele viu a dríade pela primeira vez, sobe a luz pálida da lua.
A dríade se movia em sua direção calmamente saboreando o momento, quando Wallen surgiu se jogando sobre ela, ambos rolaram sobre o solo, lançando folhas e grama para todos os lados.
— Corre Chefe! — gritou Wallen, no emaranhado que era ele e a dríade.
A dríade acertou-lhe um golpe nas partes intimas que o fez soltar um grito estrangulado. Jogando o corpo do jovem para trás, a dríade puxou o arco e disparou uma flecha com o caminho direto na junta do joelho de Voslo.
Voslo gritou e caiu sentindo a perna em chamas, ainda gritando começou a espernear, tentando desesperadamente retomar o controle sobre seu corpo.
A dríade preparava mais uma flecha, quando Brendan surgiu na sua frente, muito irritado.
— Eu disse sem mortes!!
A dríade recuou, tirando a flecha do arco, e recolocando-a no alforje onde as penas cinzentas balançavam ao vento. E em tom de desafio peitou Brendan, como se estivesse inflamando de fúria.
— Ele espancou aquelas crianças na vila, elas são meus parentes, meu sangue. — disse a dríade em seu idioma nativo, as narinas se abrindo e fechando, o primeiro sinal de ira lhe dominando aquela noite. — Pelo menos, ele merece morrer, porque é o líder.
— Ela disse que ele merece morrer porque é o líder... E algo sobre as crianças espancadas na vila... — disse Josh em uma tradução meia boca, enquanto nocauteava Wallen, que tentava se levantar.
— Diga a ela que estes homens tem família também... — disse Brendan, e Josh traduzia tudo o mais rápido que podia. — Fugiam da carnificina da guerra que toma essas terras, e assim como os nativos eles só querem voltar para casa... Eles estão com medo e isso os levou a erros grotescos... Só estavam desesperados.
— Deviam ter pensado nisso antes de atacar um povo pacífico. — disse a dríade tentando passar por Brendan. — Eu sou a lei para meu povo, quer que eu ignore a lei?
— Não, vocês membros da irmandade, não são a lei — disse Brendan a empurrando. — Vocês são vingança.
— E tem diferença? — disse a dríade, exasperada.
Ficava cada vez mais difícil para Josh traduzir a conversa, pois ambos, pareciam prestes a iniciar uma luta.
— É claro que tem, se a irmandade fosse a lei, teriam protegido aquelas crianças, se fossem a lei as crianças nunca teriam sido feridas — Brendan, ficou absurdamente calmo antes de dizer. — Se um desses homens morrer, eu te caçarei e darei sua cabeça a seus inimigos.
Josh engasgou na tradução da última parte, aquela era a ofensa máxima para um chiwita.
— Ele disse que irá te fazer mal, se matar algum dos forasteiros. — disse Josh por fim, suando frio, era rara as vezes que Brendan ficava assim e isso sempre o assustava.
A dríade, soltou um sorriso cheio de ironia, e virou para o lado, cuspindo palavras cheias de raiva.
— Tudo bem. — falou a dríade se dirigindo para a mata, a mantícora em sua costa, parecendo uma fera viva enquanto seus músculos se moviam.
— Espere. — disse Brendan, lançando um olhar para Voslo que gemia no chão. — Eu não sou idiota, conheço os costumes de sua tribo, quero o antídoto, sei que as flechas da irmandade são famosas por seus venenos, não é a toa que se autodenominam Manticoras.
— Ele está pedindo o antídoto. — disse Josh e a dríade se virou com desenvoltura e lançou um pequeno frasco que Brendan agarrou ainda no ar.
— Eu tinha que tentar. — disse a dríade dando de ombros sem remorso algum.
— Diga a ela que terá de vir conosco, até o acampamento militar. — disse Brendan para Josh. — Não quero arriscar, e alem do mais precisamos de uma testemunha do povo dela.
A dríade porém não precisou ouvir a tradução dessas palavras, e se sentou, em um pedaço de tronco ali perto, seu humor parecia ter recuperado a estranha paz de antes.
— Ei seu patife não ouse desmaiar agora, eu vou cuidar de seus cortes por enquanto beba isso — disse Brendan, arrastando e recostando Voslo em um tronco, Voslo tentou recusar a bebida com um aceno débil, mais Brendan forçou-o com um ultimato. — Beba se quiser viver.


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