A Marca da Manticora escrita por Lord Iraferre


Capítulo 1
O Pior dos Azares


Notas iniciais do capítulo

Esta história é curta e será dividida em 3 capítulos.



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O fogo chiou, quando gotas fartas de gordura caíram sobre as chamas alaranjadas. Da macia carne de lebre que corava e girava em um espeto, subia uma fumaça suave que rodopiando em uma espiral aromática, desaparecia no céu estrelado.
— Céus se rasguem! Esse cheiro está me matando. — deleitou-se Voslo, a uns vinte passos da fogueira, enquanto terminava de enterrar uma lata de alumínio, contendo as partes inutilizadas do pequeno roedor. — Trasgo, quando é que isso vai ficar pronto afinal?
Trasgo, era chamado assim por todas as pessoas que o conheciam, ninguém tinha conhecimento de seu nome verdadeiro, alguns boatos diziam que até mesmo sua mãe o chamava de Trasgo. Era um homem grande e robusto com mais de dois metros de altura, e uma farta barba acastanhada, e no momento se encontrava curvado diante da fogueira.
A carne do pequeno animal, já bronzeada por fora, não resistiu à lâmina do facão, que lhe retirou uma fina lasca.
— Ainda não está bom. — disse por fim, o grandalhão, experimentando a carne e observando com atenção a lebre no fogo, deixou passar pelo rosto peludo uma expressão de prazer. — O meio ainda está muito cru. Esse vento não está ajudando.
— Se a aragem ao menos afastasse esse calor — disse Elmir, abanando a camisa umedecida de suor. Tinha os cabelos negros como carvão, que chegavam até os ombros, sua pele era vermelha como a terra de onde viera. Era o mais novo do bando, e admirava as árvores ao redor da clareira, que farfalhavam e gemiam, variando em centenas de tons indo do verde musgo ao breu completo.
— Ou os mosquitos — disse Trasgo com sua voz de trovão, enquanto sua mão cheia de cicatrizes, tentava inutilmente espantar as criaturinhas que iam em direção ao seu rosto e ao redor da comida. — Essa terra é cheia de bicho, e parece que os ventos só ajudam a atrair mais deles.
Voslo soltou um grunhido em concordância, conforme vasculhava um dos alforjes, atrás de um pedaço de fumo para distrair a boca.
Diante do silêncio que se seguiu, tudo ao redor da clareira ganhou vida. A floresta se agitava com os mais diversos sons e estalos, como que respirando entre sussurros de aves noturnas, coaxar de rãs e o cricrilar de milhares de insetos.
— Faedin’Arah, terra esquecida, há muito estás a arder... E mesmo com os milhões de gemidos de todas as vidas que sobre ti habita, nada podes fazer... — disse Wallen em tom lírico, recostado com os cotovelos em um dos largos degraus de pedra calcária.
Para os povos antigos que viveram naquela região, há muito tempo, o lugar onde o grupo se encontrava acampado, era um local sagrado separado para cerimônias e sacrifícios importantes. Agora, porem tudo não passava de ruínas, uma clareira pontilhada de restos
de colunas, cobertas de ervas daninhas. Nada alem de um abrigo para um bando qualquer de ladrões.
— Não vai começar a filosofar vai? Se for, avise-me para que eu possa tampar meus ouvidos com antecedência. — disse Voslo com um sorriso sujo, passando a mão pela careca lustrosa, com seu rosto que se assemelhava a um falcão, voltado para Wallen.
Os outros riram, e Wallen se endireitou:
— Não é filosofia, é poesia. — disse sorrindo, mas sua voz continha um tom ofendido, como se aquela frase soasse com frequência. O jovem tinha os traços bem delineados, se fosse um nobre seria muito bonito e provavelmente seu gosto pela música e pela poesia o tornaria um menestrel famoso, mas Wallen não era nobre, e também não era bonito. Principalmente devido à varíola de sabugueiro que tomara conta da parte inferior de seu rosto, fazendo-o parecer sempre enfermo.
— Essa conversa me lembrou de algo que tem assolado a minha mente — disse Wallen enrolando a barba rala com um dos dedos. — Quem te ensinou a cozinhar Trasgo?
Trasgo sorriu diante da tentativa de provocação, por outro lado, Elmir, distraído como só os novatos conseguem ser, não percebeu a zombaria, e por isso argumentou com sinceridade:
— Isso não é cozinhar! Ele só esfolou a lebre, da mesma forma que fez centenas de vezes com os nativos — Elmir sorriu. — Enfiou a carne num espeto e começou a tacar sal! Até Merilian sabe fazer isso!
— A mim não interessa se ele é ou não é um autêntico cozinheiro — interrompeu Voslo batendo as mãos na calça e por fim tirando mais uma vez o suor da testa. — Contanto que eu fique com o maior pedaço de carne.
Os outros concordaram estalando a língua. Trasgo lançou um pedaço de lebre, para seu líder que sem se importar com a quentura jogou-a para dentro de sua boca.
— Essa... É sem dúvida, a primeira coisa descente que como desde... — começou dizendo Voslo mastigando a comida, quando foi interrompido por um gemido que veio do canto mais afastado da clareira.
Todos voltaram seus rostos para o homem, que se encontrava amarrado a uma velha coluna de pedra. A tensão como a corda de um alaúde que acaba de ser dedilhada, reverberava pelo ar.
— Hmm, esse cheiro é ótimo... — disse o homem, com pouco mais do que um sussurro de voz, se encontrava atado a coluna por várias cordas grossas, muito bem entrelaçadas.
Parecia mais com um farrapo de gente, com nada alem de uma camisa rasgada, uma calça de brim tão suja que sua cor era indecifrável, e para completar um par de botas de
cano médio, tão gasta que a sola parecia feita de papel. — Esse por um acaso é o cheiro da minha lebre assando?
Os homens próximos à fogueira deixaram escapar uma risada involuntária.
— Você quis dizer, nossa lebre — disse Wallen com um sorriso cruel. — E por via das dúvidas é uma criaturinha tão mirrada, que mal vai dar para duas dentadas. Hey Trasgo, seu sem vergonha, filho de uma raposa, nem pense em pegar outro pedaço!
Trasgo deu um esgar sinistro, que para os conhecidos era o som de sua risada.
— O que faremos com ele? — perguntou Elmir ao líder, seu rosto bronzeado, nebuloso e assustado, mostrando o quão jovem ele ainda era.
Voslo passou a mão pelo rosto, coçou o queixo e soltou um suspiro.
— Ainda não decidi... — disse soturnamente se virando para a fogueira, como se tudo ao redor estivesse ficando frio de uma hora para outra. — Não gosto de tomar decisões de barriga vazia... Depois nós decidimos.
— Vocês bem que poderiam ser um pouco mais hospitaleiros e me dar um pedacinho, não é? — disse o preso com ironia, revelando dentes manchados de sangue, seus olhos eram verdes e luziam como um mar de esmeraldas. — Porque a luz da verdade, fui eu quem tive todo o trabalho...
— Cale a boca, seu imbecil — disse Trasgo se erguendo como um urso, e apontando ameaçadoramente o facão sujo para o forasteiro. — Devia se considerar com sorte por ainda estar vivo.
— Sorte? — disse o homem zombando do som da palavra. — Se eu tivesse uma gota que fosse de sorte, não estaríamos todos fadados a morrer em poucos minutos.
— Que conversa fiada é essa hein? — falou Wallen os olhos azuis se estreitando, para o preso que parecia estar delirando, talvez a surra que haviam dado no forasteiro tivesse sido tão forte, a ponto de ele ter perdido um parafuso.
— Então os espertalhões não sabem não é? — disse o preso tentando erguer o rosto o suficiente para enxergar o rosto de Wallen. — Somos todos homens mortos aqui... Pelo menos eu sou... Não se pode escapar do destino.
Elmir de repente ficou bem assustado, e não parava de olhar ao redor preocupado.
— Quer parar com esse papo? — disse Trasgo se arrepiando.
Mais nada do que dissessem faria o preso parar de tagarelar.
— Pobres coitados, acharam que um homem correndo sozinho por uma estrada, era uma presa fácil, mais de todas as pessoas que pudessem pegar, capturaram justo aquele que está marcado com a maldição da morte. — falou o homem mais para si mesmo, se curvando diante de um fardo invisível.
— Já chega de ladainha — disse Voslo, irritado, mais pelas expressões de seu grupo do que pelas palavras do homem amarrado nos restos de uma coluna. — Sua conversa não passa de um punhado de mentiras lançadas ao vento.
— Vamos fazer um acordo — disse o preso de forma cordial, ficando estranhamente sério e prosseguindo sem esperar uma replica. — Eu lhes conto minha história e vocês dizem se acreditam ou não.
Os homens do bando lançaram olhares de diversos tipos, uns para os outros, a maioria envolvia confusão e arrependimento. Voslo tomou a frente e ficou diante do preso, erguendo um dedo inquiridor em direção a ele.
— Primeiro diga-nos seu nome — esse era um antigo costume do sul, uma espécie de código de honra, no qual quando um estranho dizia seu nome verdadeiro não poderia mentir ao contar sobre seu caminho.
— Meu nome é Brendan, meus caros senhores. — disse o preso, sem hesitar, antes de iniciar seu relato.
“Vim descendo pelas Três Quedas, ao norte daqui — Brendan umedeceu os lábios rachados com a língua, antes de prosseguir. — desci um pouco mais procurando a estrada setentrional”.
“Admito sou um foragido, a verdade é que não suportei ver Avelin arder, e não faço a menor ideia do que aconteceu nos campos de Relvah Sailim”. “Mais isso não importa mais para mim, a verdade é que cheguei a uma estrada que mais parecia uma trilha na floresta, em pouco tempo me deparei com um pequeno vilarejo chiwita, eu estava faminto e procurava abrigo desesperadamente — Brendan deu uma risada cruel. — Mas tudo o que recebi foram pauladas, disseram que não se envolveriam com homens estrangeiros, porque recentemente alguns nativos haviam sido espancados, quase até a morte por um grupo de assaltantes”.
Nesse momento Brendan fez uma pausa, e olhou para cada um dos rostos culpados, e sorriu ao ver que não houve resposta.
“Uma mulher, uma espécie de xamã, lançou sobre mim uma seiva viscosa cujo nome eu desconheço... Sinceramente, fugi para a floresta, feito um verdadeiro patife, e essa foi sem dúvida a coisa mais estúpida que fiz na vida, pois o que aquela mulher me lançou, fez com que toda a criatura viva no raio de quilômetros me perseguisse... A princípio até que foi bom, consegui caçar uma lebre com uma facilidade inacreditável, mas como dizem os nativos: ‘todo grande azar começa com sorte’. Logo dei o azar de me deparar com uma mantícora, e só me dei conta disso quando minha carne foi atravessada por um ferrão, e isso foi há três dias...”
“Há três dias corro como um louco buscando proteger a minha vida miserável... Há três dias eu fujo sem esperança, com o veneno me corrompendo aos poucos... Há três dias eu tento escapar de uma fera com olhos como tições ardentes e um ferrão que relampeja na cauda longa e segmentada... Uma criatura sombria que só me aguarda estrebuchar para me
levar para uma caverna voando com suas asas de morcego, enquanto me dilacera com sua bocarra tal qual a de um leão faminto — as palavras de Brendan tinham tal ira e tal ímpeto que ele espumava pelos cantos da boca, como um cão raivoso. — Tudo porque um bando infeliz de assaltantes decidiu atacar uma aldeia de chiwitas!”
Um pesado silêncio caiu sobre a clareira, algo tão forte que podia ser palpável, tamanha era a pressão sobre os homens ali presentes.
— E então gostaram de minha história autobiográfica? — disse Brendan cuspindo uma bolota de sangue coagulado, não escondendo o desprezo que sentia. — O destino me trouxe até vocês, quem sabe a mantícora faça vocês se arrependerem pelo menos da metade dos pecados que cometeram...
— É mentira! — gritou Trasgo tremendo de fúria. — Tudo isso o que você diz, é só para nos assustar... Mantícoras não são vistas por aqui, há um bom tempo. — ele puxou Voslo pelo ombro e apontou com o facão para o prisioneiro. — Vamos matá-lo, para que nunca mais sua boca suja cuspa veneno sobre nós.
Trasgo jogou o facão no chão, e sacou uma pistola da cintura, era uma coiote-treszero, uma arma que apesar de precisar do dobro de pólvora para cada disparo, a curta distância do alvo fazia um estrago desastroso.
— Matá-lo, você ficou louco? — disse Elmir se colocando entre a arma e a vítima, seus olhos esbugalhados. — Primeiro as crianças indígenas e agora isso? Se fosse para me tornar um assassino não teria fugido do Truthman, ele pelo menos me pagava pelas atrocidades.
— Vocês viram isso? — disse Wallen dando um salto.
— Ver o que? — indagou Trasgo irritado pela mudança de assunto.
— Parecia um relâmpago, mais veio da mata... — falou Wallen corando meio sem graça.
— A cale a boca Wallen, e novato, saia da minha frente.
— Trasgo abaixe essa arma, antes que alguém se machuque. — Trasgo ia protestar, mais ao ver que era Voslo quem lhe dirigia a palavra, obedeceu a contragosto.
O preso riu da situação.
— Já viu uma mantícora Trasgo? — perguntou olhando direto para os olhos do homenzarrão que se aproximava dele. — Você praticamente não pode enxergá-la, ela adora brincar com a presa, mostrar a ela que não há chance alguma de sobrevivência; primeiro você começa a ver pequenos relâmpagos vindos do nada, isso porque o ferrão na calda dela tem uma pequena descarga elétrica pulsante, que ela usa para amolecer e facilitar a entrada do veneno na carne; depois se tiver azar, você vê seus olhos, olhos amarelos e brilhantes como um farol, e ao mesmo tempo fosco como os de um cão ou um gato quando estão no escuro; mais o pior de tudo é o barulho... Oh Altíssimo! O rugido vem das profundezas e é tão terrível que arrepia até os pelos do...
— Chega dessa conversa. — disse Voslo erguendo as mãos para o alto, Trasgo começou a tremer o que era algo muito estranho de se ver. — Que Brendan está tentando nos enrolar com uma conversa de barqueiro, eu sei, mais o que importa é como ele descobriu sobre nosso problema com os Chiwitas.
— De novo... O relâmpago! — disse Wallen tropeçando ao dar uns passos para trás.
— Dessa vez eu vi! — disse Elmir, se aproximando de Voslo assustado.
Eles ficaram em silêncio, após alguns minutos de tensão, um novo relâmpago estalou, desta vez pode se ouvir claramente o bater de pinças.
"OOOOhhhhhAAAAAAhhhh" o som veio de alguns metros de distância, era uma mistura assombrosa, de um coaxar de um sapo, um guizo de uma cascavel e o barulho de um felino gigantesco. Aquele era o rugido de uma fera maligna, o som de uma mantícora, o anunciar da morte.
— Fiquemos juntos! — disse Voslo com autoridade, mais ao olhar ao redor, viu todo o bando fugindo para a mata correndo desembestado na direção contraria a do som. — Voltem aqui!
— Solte-me rápido! — disse Brendan se contorcendo desesperado. — Não me deixe para trás.
— Nem pensar, você mesmo nos disse que já foi envenenado, se eu lhe soltar você atrairá a criatura para cima da gente. — disse Voslo, abandonando qualquer gesto de masculinidade, e disparando rumo a floresta, seguindo o mesmo rumo por onde seus amigos fugiram.
— Tire-me daqui, eu vou correr para o outro lado! POR FAVOR, não me deixe! — Brendan continuou a gritar, a sua voz desaparecendo com o rumorejar dos galhos e da mata fresca da floresta, seus gritos foram se tornando cada vez mais histéricos, e aos poucos nem mesmo eram gritos mais verdadeiros uivos de dor.


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