Agorafobia escrita por Camylla Almeida


Capítulo 1
Capítulo Único - Sobre estar só.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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— Talvez eu goste de ser quebradiço e sentir dor, guardar magoas e remoer o passado…

O silêncio em conseguinte serviu para dar a fala que saiu arrastada e neutra um ar ainda mais pesado, depressivo, e estava bonito assim. Não àquela beleza exultante que enfeita quadros renascentistas, mas, sim, a beleza gótica de um cemitério repleto de esculturas angelicais… E não poderia haver beleza mais plena, certo? Adornar a morte com poesia; sorrir para o infinito e não temer o além, além de temer a si próprio. De repente, o mundo se torna desconexo e as formas assumem cores quentes, completando o cenário do caos e brindando às incivilidades com exímia sabedoria sarcástica. Humanos são pó no grande vácuo do universo. Considerava-se pó ao sentir-se sugado em direção ao buraco negro da própria mente e assim, de forma inquietante, afogava-se no mar de ideias sem propósito e pensamentos traiçoeiros.

"- E por quê?"

— Não sei bem, há algo de atrativo na tristeza melancólica. - sorriu, um sorriso apagado e sem muita vontade, dentes bonitos e olhar fosco. Veja bem, um sorriso perturbador vale mais que mil sorrisos encantados, ao menos, através de um ponto de vista mais mórbido e melodramático. Sorrir para as portas fechadas de uma alma em fúria, ter o sorriso partido pelos cacos da janela dos olhos vítreos… Contemplar a dor que preenche cada célula. Estava vazio enquanto transbordava lamúrias.

Novamente, o silêncio.

O apartamento estava escuro, apenas um abajur de luz oscilante iluminava a sala bagunçada, havia papéis amassados e bitucas de cigarro por todo canto, assim como pó e solidão. O sofá velho tinha cheiro de suor, tabaco e vinho, suas manchas denunciando o desleixo do dono que, sentado e pensativo, parecia não se importar com o estado degradante de seus móveis, quiçá em sua própria decadência. Senão o caos, o que mais pode ser capaz de sustentar o homem ao longo da vida? Seu rosto de traços fortes contorcido em dúvida.

"- Você devia sair e viver toda essa tristeza, porque nem isso você faz… Imagina quanta dor há lá fora?"

Heráclito sorriu, agora um sorriso genuíno e não a sombra de antes, alcançou-lhe os olhos e salpicou na face todos os vislumbres do passado. Imaginava bem as multidões e suas composições diversas e talvez estivesse aí plantada a raiz de seus medos e inquietudes. E se fosse esmagado por todas as pessoas? Porque somente imaginar sair em vivência desenfreada já causava-lhe uma sensação esmagadora no peito, então suava em bicas e percebia-se aterrorizado. Culpado. Uma música vinha do fundo, uma sonata de violino servia para acalentar seu âmago nos dias mais tumultuados, quando a própria companhia se tornava insuportável e a súbita vontade de se jogar do décimo sexto andar se fazia presente, ah, não poderia ser mais patético!

Os olhos analíticos e cansados encarando a simpática mancha de infiltração na parede, bem acima da estante cheia de livros e mofo, cada particularidade tornando seu lar o melhor lugar do mundo e, igualmente, o pior. Seus segredos estavam todos aprisionados ali e nas noites mais frias, podia jurar ouvir sussurros acusadores. Encarar Marcelly estava fora de cogitação, ao menos enquanto não sentia-se forte o bastante para mergulhar nas íris lascivas da outra, ela sempre tentava lhe tragar para um abismo sem fim, não poderia cair de novo… Não por acompanhar aquele olhar maldito. Engoliu seco. O barulho incessante das gotas que se desprendiam da pia da cozinha com defeito já não incomodava mais, achava até melódico, bem como o ranger da porta e o som de seus sapatos beijando o assoalho de madeira. Tudo naquele apartamento lembrava o caos e resquícios de uma paixão utópica; a perfeição acompanhando os mínimos detalhes.

Encarou-a, então, uma expressão descontente e uma curva sinuosa em um dos cantos da boca, seguindo a trilha das sardas:

— Que gênio escolheu cobrir os rios com prédios e o céu com cabos? - indagou. Realmente desejava a resposta, embora a pergunta estivesse fora de contexto. Sua voz tinha sempre o mesmo tom, era grossa e com uma melodia gostosa, sem rouquidão ou muita masculinidade, apenas uma voz que poderia passar despercebida em meio as falas de um locutor da rádio que costumava ouvir ao fim da noite, lá tocava músicas românticas da década de oitenta e tinha algumas reflexões bacanas para pensar antes de dormir. Naquele momento desejava um café e alguma desculpa para encerrar a conversa que começara há pouco. Marcelly sempre ia até o fim, atordoando-o com truques baratos da psiquê. Uma cretina de marca maior! Não conseguia viver sem ela, então a visualizava e prendia às suas teias para que não fosse embora como todos costumavam fazer… Se estivesse do lado oposto também partiria, bem sabia, às vezes se tornava insuportável aguentar a própria companhia. O lustre balançava quando o vizinho de cima se agitava por algum motivo, era bonito e precisava trocar a lâmpada, quais as chances de se desprender do teto e esmagar sua cabeça oca de fios alaranjados? Sorriu, fechou os olhos e aspirou o ar não tão agradável, devia abrir as janelas e respirar as impurezas vindas de fora e não apenas o ar pesado que já carregava nos pulmões há anos.

Abriu os olhos, um furacão estraçalhando seu interior… Comprimindo seus órgãos com todas as decepções que colecionava, ela o encarava séria:

"- Não mude de assunto, meu bem."

Meu bem. Oh, gostava do carinho maquiavélico que escorria por sua boca igual ao veneno injetado por uma cascavel! Precisava dela e tinha a certeza que precisava ter para precisar, compreende? Um não era completo sem o outro. Ou Heráclito apenas precisava desesperadamente de uma válvula de escape? Hm, choveria logo mais pela noite, talvez… Suas pálpebras começavam a pesar, perto das cinco da tarde e cansaço pela noite mal dormida sendo mais presente que antes. Escutava o eco, ouvia as vozes e sentia saudades; depressões dos fins de tarde. Terça-feira, o calendário dizia, levante e viva, a consciência dizia; chore e sinta. Mordeu o lábio inferior, Marcelly ainda o encarava.
Suspirou.

— Se eu for lá fora vão me destruir. - simplista, disse. Uma sinceridade incontestável dando créditos para a afirmação. Não é?

"- E você já não o faz aqui dentro?"

Maldita! Socou o estofado do sofá, saindo do estado de torpor ao qual se encontrava nas últimas horas e subitamente percebeu-se só, ela se fora, talvez estivesse escondida sob os esquadros da mente. O apartamento pareceu menor, mais frio e vazio, era sempre assim quando Marcelly partia. A lâmpada do abajur queimou e, internamente, desejou que ela trouxesse alguma luz quando resolvesse aparecer de novo, mas, caso ela não aparecesse, Heráclito ainda tinha um mundo infinito dentro do cubículo em que morava e facilmente encontraria um novo melhor amigo.

Pois na solidão, a mente cria.


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Notas finais do capítulo

Foi a forma que encontrei para abordar o tema.



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