Depois dos 50 dias escrita por Nanahoshi


Capítulo 2
Asas de papel


Notas iniciais do capítulo

Eu estou muito feliz de ter terminado essa história (mesmo que dois anos depois HUHHEHEHEUEHUEHEU) porque era uma história especial, com uma motivação especial *u* Ela é bem autobiográfica (o que me deixa um pouco envergonhada), mas tá tudo bem cifradinho com metáforas. Obrigado a todos que tiraram um tempinho para ler essa história e espero que ela tenha trazido algo de legal para vocês, nem q tenha sido uma sensaçãozinha aconchegante!
No mais, boa leitura, e muito obrigada!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/692288/chapter/2

Quando Elias me fez a pergunta, voltei os olhos para o chão, fixando meus pés enquanto pensava. Depois, tornei a erguer os olhos para questionar Elias sobre o que ele queria dizer, mas ele tinha desaparecido. Não só ele, como Jesus, Moisés a escada de água e até Maria. Apenas o menino quase albino permanecia comigo. Ainda agarrava-se a minha perna e olhava de um lado para o outro com um olhar curioso. 

— Cadê eles? – perguntei num tom um pouco mais nervoso do que pretendia usar. 

O garoto parou de olhar em volta e fixou os olhos azul-gelo em mim... Ou esperava que fossem dessa cor. Pisquei várias vezes enquanto encarava o menino. Seus olhos pareciam refulgir numa luz discreta que mudava de tom, esquentando. Do azul passara ao roxo, e aforava clareava para um vermelho vivo. 

— Eles estão aqui – respondeu ele num tom franco e sorridente, como desse uma resposta óbvia que muito lhe agradava. – E em todos os lugares. 

No instante em que disse a última frase, vi seus olhos correrem por um segundo para o embrulho que eu tinha nas mãos. Ao tornar a me encarar, vi que a mudança de cor havia se completado para um vermelho quase alaranjado, lembrando uma chama. Claro que meu impulso imediato diante da fala dele foi olhar em volta. Mas, como esperado, não havia ninguém. Tornei a olhar para o menino. Ele agora encarava fixamente meu embrulho. 

Virei a cabeça para examiná-lo, mas assim que abaixei o queixo, algo o arrancou violentamente da minha mão. O garoto pálido puxou o embrulho para perto de si e disparou numa corrida frenética pela praia, na direção oeste. 

— Ei! – berrei depois de alguns instantes que levei para digerir o que acontecera – Me devolve isso aí! É meu! 

O menino sequer virou a cabeça. Parecia correr deslizando pelas correntes de vento que sopravam na direção do pôr-do-sol, que já tingia o céu num degradê magnífico. As nuvens delgadas que deslizavam pelo céu eram tingidas pelos últimos raios de sol que vinham da linha do horizonte, intensificando a beleza celeste que se refletia nas ondas do mar. A água vinha e voltava na praia, escurecendo a areia, enquanto eu corria atrás do garoto de cabelos alvos. Quando uma onda grande vinha e água chegava até os meus joelhos, era quase impossível correr. Nessas horas eu me esforçava mais, esperando que as minhas pernas mais compridas lutassem melhor contra a força da água do que os palitos pálidos das pernas do ladrãozinho. Mas ele não diminuía. Parecia completamente indiferente à água. 

Continuei correndo como uma louca, e à medida q o tempo passava e o garoto não demonstrava um sinal sequer de fadiga, meu desespero crescia. 

— Volta aqui, sua peste! Isso é meu! Eles deu pra mim, não pra você! 

Algumas lágrimas escorreram pelo meu rosto e saltaram no vento, tão salgadas quanto os respingos de água que eu deixava ao passar correndo.  A fadiga já estava esfaqueando meus pulmões e meus músculos das pernas. E a sensação de que se eu perdesse aquele garoto de vista perderia o presente de Jesus para sempre aumentava. 

Foi nesse instante que eu desejei por tudo saber voar. Se eu tivesse asas, voaria num piscar de olhos em cima daquele garoto insolente e pegaria o meu presente de volta. Fechei os olhos e me concentrei naquela ideia é imaginei grandes asas surgindo das minhas costas, na esperança de impulsionar minhas pernas já bambas pelo esforço. Inspirei uma boa lufada de ar e acelerei num impulso quase irracional. E então subitamente, parei de correr. Uma pancada forte e dolorosa no meu peito me fez interromper a corrida bruscamente, e pelo tamanho do obstáculo que se colocara em meio caminho, eu até podia imaginar o que era. 

Arregalei os olhos, aflita, puxando o ar com violência. Milésimos de segundos depois, busquei pela silhueta do garoto, que deveria estar estatelado no chão. Mas ao invés disso haviam... 

Penas. 

Centenas de penas. Brancas, compridas e brilhantes. Elas flutuavam e rodopiavam no ar ignorando o mínimo de peso que deveriam ter. Olhei para cima, estuporada. Uma nuvem delas girava ao meu redor como pássaros, já que jamais caiam e pareciam se mover por conta própria. Girei devagar, examinando cada uma. Uma chegou perto o suficiente para que eu a tocasse. Estendi o dedo e agarrei-a pelo cabo, soltando-a de imediato com uma exclamação de susto. 

Não eram penas comuns. 

Elas eram feitas de papel. 

Continuei examinando-as, pegando as que ficavam ao meu alcance. Todas de papel. Sem exceção. Dei uma volta e meia completa, virando de costas para o sol que já havia quase desaparecido. 

O Sol...

Foi aí que percebi que havia algo de errado. Eu deveria estar sentindo frio. Muito frio. O vento na praia é forte quase sempre, e à noite, se torna gélido devido ao esfriamento rápido da areia e das gotículas de água vindas do mar. Mas não estava frio. Pelo contrário. 

Estava quente. 

Quente como se eu estivesse próxima de uma fogueira ou...

Como se houvesse uma fogueira dentro de mim. 

Olhei para baixo por impulso, como se esperasse ver através de meu peito... O que de fato, aconteceu. 

Na altura do meu coração, no ponto central exato do meu tórax havia uma chama branca. Ela queimava viva e forte, e e emanava uma luz vermelha. Assustada, levei a mão instintivamente sobre a chama para tentar apagá-la ou agarra-la, mas antes que o fizesse, ouvi um barulho novo. Ergui o rosto e vi as penas rodopiando mais rápido, formando dois funis que acabam atrás das minhas costas. Virei a cabeça e uma exclamação ficou presa na minha garganta. 

Asas. 

As penas de papel estavam se juntando e se organizando na forma de enormes asas cheias e imponentes. Quando estavam praticamente formadas, elas se curvaram para frente, como fossem me envolver como um manto. A ponta das asas se abaixou até tocar as minhas mãos. Senti o toque do papel, que era tão familiar para mim após tantos livros lidos... E senti um peso. Havia um peso entre meus dedos. Olhei para baixo. 

O presente de Jesus. 

Sorri e abracei o embrulho. Minhas asas de papel voltaram a se agitar, dessa vez abrindo-se e se abaixando. Elas bateram uma vez, lançando meu corpo no ar com facilidade. Esperneei um pouco quando meus deixaram de tocar a areia, agarrando-me no meu embrulho como se ele fosse me impedir de cair caso as asas falhassem. Mas não foi necessário. Permaneci perfeitamente no ar enquanto as asas batiam pela segunda vez. A praia já devia estar há uns sete metros abaixo. Senti um frio na barriga, mas mais de expectativa do que de medo. A vista já era fabulosa. As últimas cores do degradê escorriam pela borda do horizonte dando lugar ao manto azul escuro da noite já salpicado de estrelas. Ao girar o pescoço para admirar mais da paisagem, notei que o brilho vermelho que vinha do meu peito persistia, baixei os olhos e vi a chama branca queimando. Minhas asas bateram uma terceira vez...

E tudo escureceu. 

***

Acordei sentindo um calor confortável por todo o corpo, daqueles que nos deixa entorpecidos. Pisquei os olhos várias vezes e espiei a janela. Quando meu cérebro começou a registrar que já era de manhã, tudo voltou de uma vez. Arqueei com o excesso de informação e lágrimas involuntárias brotaram de meus olhos. Olhei em volta, assustada, como se não reconhecesse meu próprio quarto. 

Como tinha ido parar ali?

Ou será que tudo não passara de um sonho? 

Agitei-me na cama, nervosa, e ouvi um baque no chão. Dei um pequeno pulo de susto, mas logo espiei pela borda direita da cama para ver o que havia caído. Minhas sobrancelhas franzidas pela dúvida e pelo receio se arquearam de surpresa ao ver o que havia ali no chão meio escondido pelo meu lençol. 

O embrulho. 

O presente de Jesus. 

Agarrei-o o mais depressa possível e o abracei. 

Depois, com o maior cuidado do mundo, pousei-o sobre o colo e, bem devagar, comecei a rasgar o papel. Quando o conteúdo finalmente ficou visível, uma estranha mistura de confusão e alegria se espalhou em mim. Examinei o objeto por longos instantes, até que alguém bateu na porta, desviando minha atenção. A porta se abriu e a silhueta da minha mãe se recortou contra o papel de parede do corredor. 

— Bom dia, filha. Vem comer. Desce logo porque seu tio tá aí. Ele vai comer tudo. 

— Qual deles?

— O Emanuel. 

Abafei uma risada e pulei para fora da cama, deixando meu presente sobre o travesseiro. Desci poucos minutos depois, já vestida. Meu pai reclamava de alguma coisa. 

— Ué? Não eram sete roscas? 

Uma risada gostosa ribombou pela cozinha. É. Era realmente meu tio Emanuel. 

— Calma, calma. Eu não ataquei nada pelas costas de vocês. Eu peguei uma para embrulhar. Vou levar para o papai. 

Entrei no exato momento que meu pai balançava a cabeça para meu tio, mas sorrindo. Quando me viram, deram bom dia. Meu tio se aproximou. 

— Como vai menina? Lendo muito?

Sorri e acenei positivamente. Ele retribuiu o sorriso e estendeu alguma coisa para mim. 

— Passei ontem numa livraria e este estava em uma promoção imperdível. Pelo que sei, esse você nunca leu, mas queria ler. 

Li o título da capa e soltei um gritinho. Depois pulei sobre meu tio para lhe dar um abraço. 

— Meu Deus tio! Eu estava atrás do volume único das Crônicas de Nárnia há muito tempo! Mas ele tava sempre muito caro... 

Tio Emanuel soltou uma outra risada, mas não foi a risada de trovão que ele sempre dava. Sua voz mudou, ficou menos grave, mais melódica, firme, e transmitia uma calma enorme. Olhei para cima e vislumbrei não o rosto do meu tio, mas o rosto de Jesus. Sufoquei uma exclamação de susto, mas no processo pisquei, e logo tornei a ver o rosto jovial do meu tio. 

— Nada de ler agora. - brincou minha mãe aproximando-se da mesa. – Vamos comer.

Voltei os olhos rapidamente para minha mãe, que falará a última frase com uma voz completamente diferente. A mesma voz que rira momentos antes. Vi Jesus debruçando-se sobre a mesma, usando uma camisa verde, jeans, o cabelo solto e a barba bem cortada. Ele pôs a forma com roscas sobre a mesa, que bateu com um estalido contra o tampo de madeira, me fazendo piscar e me encolher involuntariamente. Tornei a ver minha mãe no exato lugar em que Ele estivera. Meio desnorteada, ainda segurando meu exemplar de As Crônicas de Nárnia na mão, avancei cautelosa para a mesa. Meu pai puxou a cadeira para mim. Ao me sentar e agradecer, vi pelo canto do olho que ele avançava para a sua cadeira. Mas não era mais ele. Era Jesus de novo. 

Olhei estupefata Jesus se sentar à mesa, pegar sua rosca e parti-la ao meio, oferecendo uma metade para mim. Estendi o braço quase que em transe e, por um instante , olhei para o pedaço que Ele me estendia, mas quando voltei a erguer os olhos, era o rosto familiar do meu pai que me fitava docemente. Puxei o pedaço de rosca para mim e encarei o nada sem saber o que estava acontecendo. Foi aí que percebi que, bem na minha frente, sentava-se um convidado inesperado.

O garotinho pálido. 

Encarei-o enquanto ele sorria para mim com um pedaço de rosca na mão. Seus olhos não estavam mais azul-gelo: haviam se tornado permanentemente vermelho-fogo. Ele mordeu a rosca com gosto e mastigou. Quando terminou de mastigar, disse num sussurro:

— Em todos os lugares. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Depois dos 50 dias" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.