Depois dos 50 dias escrita por Nanahoshi


Capítulo 1
Um presente, um pedido, um lembrete


Notas iniciais do capítulo

Esse texto fiz diante de uma ideia que surgiu nesse domingo de Pentecostes. Queria mostrar aos meus leitores como uma certa Pessoa aparece para mim...



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—Você tem mesmo que ir?

Jesus virou-se de frente para mim e me fitou docemente nos olhos. Ele trajava uma camisa branca simples, uma calça jeans escura simples e chinelos. Seu cabelo longo e ondulado estava preso num rabo de cavalo baixo, a barba bem feita e escura do mesmo tom emoldurava sua mandíbula e sua boca. Ele exibia um leve sorriso nos lábios queimados levemente róseos. Eu sabia que se ele os abrisse eu veria uma arcada dentária alva e perfeita que contrastava harmonicamente com seu tom de pele moreno-escuro.

—Eu já te expliquei. Papai me chamou de volta pra casa. Eu já fiz o que tinha que fazer por aqui.

Eu olhei tristonha para o chão e chutei a areia úmida. Sentiria muita falta das nossas conversas. Ele sempre fazia tudo parecer tão interessante, tão incrível e me mostrava os lados das coisas que eu jamais teria visto por mim mesma.

Senti algo quente rolando pela minha bochecha. Ergui instintivamente a mão para parar o que quer que fosse no meio da queda.

Uma lágrima.

—Ei, ei. – o nazareno se aproximou e colocou as duas mãos sobre meus ombros. – Não precisa chorar, está bem? Isso não é um adeus.

Eu assenti, mas as lágrimas ainda teimavam em escorrer.

Nesse instante, ouvi passos atrás de mim. Quando me virei, uma mulher de meia idade de pele escura, cabelos negros e ondulados e olhos muito azuis nos fitava com carinho. Trazia um embrulho nas mãos.

—Oi, mãe. – Jesus cumprimentou.

Ela alargou seu sorriso, leves rugas marcando o canto de seus olhos. Ela usava um vestido azul claro florido que escorria até seus pés, impossibilitando de ver o que ela calçava.

—Você já vai, meu Filho? – perguntou ela com uma voz calma e meiga.

—Já vou sim, mãe. Papai já está me esperando.

O desconforto e a saudade precoce tornou a apertar meu coração. Senti então os olhos do homem jovem sobre mim e ergui a cabeça. Ele me fitava novamente, aqueles olhos castanhos tão profundos que pareciam guardar o universo inteiro transmitiam uma segurança inimaginável. Ele se ajoelhou na areia sem tirar os olhos dos meus.

—Eu vou, mas isso não significa que eu vou te abandonar. De onde eu estiver, estarei sempre olhando por você. – ao dizer isso ele pousou a mão na minha cabeça. – E muito mais perto do que você imagina.

Eu sorri e limpei uma outra lágrima esfregando um olho.

—Dá pra me encontrar em qualquer tipo de lugar. Na figueira da sua casa, no peixe que seu pai pesca quando viaja com os amigos, no pão que a sua mãe coloca na mesa, nos animes que você adora assistir, nos livros que você guarda nas estantes do seu quarto, nas músicas que você escuta no caminho pra faculdade...

A medida que ele falava, senti uma felicidade estranha preenchendo meu coração. O vazio escavado pela saudade aos poucos desaparecia.

—Opa! – Jesus exclamou se colocando de pé de supetão.

Atrás dele, vindos de sabe Deus onde, estavam dois homens vestidos completamente de branco. Um era mais velho, com cabelo e barbas grisalhas, e trajava uma camisa social e calças de linho. Seus pés estavam descalços assim como os do outro, que por sua vez era moreno com os cabelos curtos castanho-escuros ondulados, uma barba muito parecida com a de Jesus, só que um pouco maior. Trajava uma camisa cavada larga e bermuda e trazia um pacote de papel pardo na mão.

—Yo! – cumprimentou Jesus, e avançou para abraçá-los.

—Vamos? – chamou o moreno.

Jesus assentiu.

—Ah, Moisés, antes de ir deixa eu só fazer uma coisinha.

Os dois se entreolharam e deram de ombros.

—Ok. – Moisés balançou a cabeça.

—Tudo bem. – Elias sorriu.

Jesus voltou-se para mim e voltou a se ajoelhar na areia da praia.

—Antes de ir eu preciso te dizer algumas coisas. Na verdade, quero te dar um presente e pedir um favor.

Eu pisquei e esperei em silêncio. Jesus virou o tronco e fez um sinal para que Moisés se aproximasse. O outro nem sequer precisou de outro comando: avançou na direção do nazareno e estendeu o embrulho que carregava. Uma vez nas mãos do Filho do Homem, ele o colocou nas minhas mãos.

—É sua. Sei que gosta bastante de ler. Então, faça bom uso.

Eu ergui a mão para rasgar o papel, mas a mão de Jesus cobriu a minha.

—Abra quando eu tiver ido, está bem?

—Tá. – eu disse sentindo um nó se formando na minha garganta.

—O favor que quero te pedir é... Bom...

Ele virou-se novamente para seus dois amigos e fez um sinal com a cabeça para Elias. Foi só nesse momento que percebi que havia mais alguém com os dois. Era um garotinho bem pequenino, não passaria de seus sete anos. Só que ele era... Diferente.

Seu cabelo era de um branco puro, sem reflexos prateados ou de qualquer outra cor. Sua pele era tão pálida que era possível ver algumas veias serpenteando sob ela. Seus olhos estavam circundados por olheiras roxas que ajudavam a ressaltar ainda mais seus olhos azul-gelo. Trajava um colete infantil azul escuro e shorts bege-acinzentados, e assim como os outros dois, estava descalço.

—Preciso que acolha ele. Pode parecer um garotinho exótico, mas ele vai te ensinar muita coisa... Mais especificamente, sete.

Jesus fez um sinal para que ele se aproximasse. Ele me olhou cauteloso e, bem devagar, largou a calça de Elias e se aproximou com passos hesitantes.

—Diga oi. – pediu o Nazareno colocando as mãos nos ombros do menino.

Ele olhou acanhado para o chão e disse:

—Oi.

Ao contrário do que eu imaginara, sua voz era viva e trazia um calor digno de uma criança. Senti todo o meu corpo esquentar com o cumprimento do garoto.

—Lembra do que combinamos? – o homem olhou sugestivamente para o pequenino.

Ele concordou com a cabeça.

—Muito bom, então agora pode ir.

Seus olhos glaciais se encheram d’água e ele baixou a cabeça. Cabisbaixo, o menino se afastou de Jesus e parou ao meu lado, agarrando-se na minha perna. Mesmo através da calça que eu usava, deu para perceber o quando o garoto estava febril, contrastando com sua pele extremamente pálida.

 Atrás de mim, senti uma aproximação e depois, uma mão leve e macia encaixou-se sobre meu ombro esquerdo. Eu olhei para trás e vi Maria dando-me um sorriso encorajador. Era a hora da despedida.

Sem dizer palavra, a mulher avançou até o Filho e o abraçou. Quando se separaram, ela entregou o embrulho para ele. Jesus sorriu de orelha a orelha, agradecendo a mãe.

—Obrigada, mãe. Isso vai ser ótimo para o momento.

Ele desembrulhou o estranho objeto, revelando um pão grande e redondo.

—Tinha me esquecido. – disse ele. – Tem mais uma coisa que eu quero te dizer.

Ele segurou o pão com as duas mãos e o partiu em dois. Repetiu o movimento até que tivessem sete pedaços. Então ele repartiu, dando um pedaço para cada um. No final, ele ficou com dois deles entre os dedos.

—Vou levar um pro Papai. – explicou ele fazendo um gesto para as fatias fofas.

Eu apenas baixei meus olhos para o meu pedaço tentando reprimir o choro. Por mais que o buraco tivesse diminuído, não mudava o fato de ele ter que ir embora.

—A última coisa era um lembrete: quando você for comer com sua família e seus amigos, pode apostar que eu vou estar lá.

Arregalei os olhos e o encarei.

—Mesmo? – perguntei insegura.

Ele assentiu e abriu um largo sorriso.

—Com certeza! – e com um gesto que lembrava um brinde, ele ergueu o pedaço de pão destinado à ele e depois colocou-o na boca. Todos repetiram o gesto.

—É isso aí, então. – ele avançou novamente na minha direção e, sem aviso ou sinal, me puxou para um abraço quente e reconfortante. Era como se tudo de bom que existia estivesse ali, me envolvendo.

—Eu amo você. Amo todos vocês. Nunca se esqueça disso.

Um soluço forçou passagem por minha garganta e eu ergui os braços para retribuir o gesto. Abracei Jesus com força, guardando cada segundo e cada sensação.

—Obrigada. Obrigada por tudo. Se não fosse por você... – eu não precisei concluir a frase. Todos sabiam o que Ele tinha feito.

Ele estreitou ainda mais o abraço e depois me soltou.

—Até logo, pequena.

Dizendo isso, ele se levantou e abraçou sua mãe novamente. Depois pousou a mão sobre a cabeça do menininho que confiara a mim e bagunçou seu cabelo.

—Juízo, hein? – ele disse em tom brincalhão.

O menino subitamente sorriu, um sorriso tão caloroso que tive a impressão de ver seu rosto de acender.

—Pode deixar.

Por fim Ele deu as costas e caminhou até onde Elias e Moisés estavam. Maria voltou a se posicionar ao meu lado, abraçando meus ombros com um braço. O garoto pálido agarrou-se novamente à minha perna direita e ficou observando os três homens se distanciando em direção ao mar. Quando seus pés tocaram a água, uma das coisas mais incríveis que presenciei em minha vida aconteceu.

Uma escada de água e espuma que lembrava um caminho cheio de curvas se ergueu a partir da superfície. Sem hesitar, Jesus pisou sobre o primeiro degrau e começou sua subida. Moisés foi logo atrás dele, deixando apenas Elias ainda na areia. O ancião observou-os por alguns segundos e virou-se para nós. Um sorriso fez sua boca coroada de pelos grisalhos se curvar de forma simpática, e ele avançou diretamente para mim. Parando diante de mim, ele ergueu a mão direita e cutucou minha testa com um pouco mais de força que o necessário para chamar a atenção de uma pessoa.

—Ei! – protestei cobrindo o lugar que ele cutucara com minha mão livre.

Ele soltou uma risada jovial.

—Vai ficar aí plantada feito uma árvore. Vá logo fazer o que Ele disse para você fazer!

E sem mais explicações seguiu Jesus e Moisés escada acima. Ainda massageando o lugar que Elias pressionara, uma pergunta se montou em minha cabeça:

“Fazer o que ele disse pra fazer...?”

 


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Quais foram suas impressões?



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